Axé music, a tomada dos tambores
- Tania Regina Pinto
Trio elétrico de Bell Marques (Arte: Candido Vinícius sobre foto de Alfredo Filho/Secom)
A história da produção musical dos blocos afros, com reprodução parcial de texto da antropóloga Goli Guerreiro, sobre as transformações estéticas do samba-reggae a partir de mais uma apropriação da criatividade negra.
O que este artigo responde:
Qual a origem do axé music?
Qual a principal característica do gênero musical?
Samba reggae e axé music são a mesma coisa?
Axé music é apropriação da música negra?
Quais os instrumentos principais da axé music?
Qual a relação entre blocos aros e trios elétricos
Um olhar para a história da produção musical dos blocos afros, com reprodução parcial de texto da antropóloga Goli Guerreiro, sobre as transformações estéticas do samba-reggae a partir de mais uma apropriação da criatividade negra.
A axé music surge da apropriação da música percussiva dos blocos afros pelos trios elétricos, que canibalizaram repertórios e ritmos criados pelos negros da Bahia, a partir do diálogo com a música negra no mundo e, em especial, no continente africano.
Esta “musicalidade mestiça”, denominada erroneamente axé music, é “resultado de uma relação desigual entre os blocos dos trio e blocos afro”.
Interessados no acesso, em primeira mão, ao repertório dos blocos afro, pessoas ligadas aos blocos de trio começaram a investigar a cena afrobaiana, frequentar os ensaios, muitas vezes, munidos de gravador, podendo assim repassar para os diretores e produtores de seus blocos/bandas, o conteúdo dos repertórios bem como os nomes dos compositores que estavam fazendo sucesso nos espaços negros da cidade.
De posse dessas informações, os produtores compravam por quantias irrisórias os direitos autorais do compositor e, rapidamente, registravam as canções afro em discos.
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Exploração explícita
O ex-conselheiro do Olodum, Zulu Araújo, conta que “as bandas de trio esperavam as músicas estourarem nos blocos afro, pagavam uma merreca por elas e ganhavam muito dinheiro”.
“A gente fazia os festivais e as melhores músicas iam para as bandas de trio, quando a gente via a música já estava na rádio”, lembra. Isso aconteceu com canções como “Elegibô”, de Rey Zulu e Ytthamar Tropicália, “Madagascar Olodum”, de Rey Zulu, e “Faraó”, de Luciano Gomes dos Santos, entre outras, que antes de serem registradas por seus compositores foram gravadas pelas bandas de trio.
No formato da axé-music, as canções dos grupos negros nos das bandas de trio chegaram a vender até um milhão de cópias, enquanto os álbuns dos blocos afro alcançavam no máximo, a marca de cem mil cópias.
Autofagia
Para reverter este quadro, alguns dos mais importantes blocos negros optam por uma espécie de autofagia, nutrindo-se da própria carne – no caso, cortando a essência do que haviam criado!
Eles passam a adotar os procedimentos musicais das bandas brancas. Aderem à mescla das sonoridades dos instrumentos de percussão e harmonia, que implica uma redução do número de tambores da bateria. Isso porque o volume de som dos tambores abafa naturalmente a sonoridade dos instrumentos harmônicos utilizados pelo samba-reggae, como guitarra, baixo, teclado e sax.
Capturar os diferentes instrumentos através de um equalizador é, na verdade, a única maneira de diálogo, de conciliação, de universos sonoros tão distintos. Somente o recurso tecnológico das mesas de som e a habilidade do técnico que as opera, permitem a audição da harmonia ao mesmo tempo em que os tambores rufam.
Ara Ketu e Olodum
Utilizando sax, trompete, guitarra, baixo e teclado, estes dois blocos – nos primeiros anos da década de 1990 – criam suas bandas show dos blocos afro. Nelas, o número de tambores é reduzido para cerca de dez.
O espaço dos ensaios também se transforma: os pequenos palcos, montados nas quadras dos blocos, que abrigavam os vocalistas, abrem espaço para os músicos dos instrumentos harmônicos e para a mesa de som que os amplifica, além das caixas de som. A bateria acústica composta por, no mínimo, 100 tambores se mantém percutindo no piso da quadra.
No Carnaval, enquanto a bateria acústica percute no chão, a banda principal usa o palco ambulante munido de aparato eletrônico, o trio elétrico, tal como as bandas brancas.
Para diferenciar-se, o Ara ketu – primeiro a aderir a moda dos não negros – chamou o caminhão musical de “trem afro-elétrico”. E o Olodum seguiu o mesmo caminho.
O Ilê Aiyê, o Muzenza e Malê Debalê mantiveram suas características originais, usando exclusivamente percussão acústica na sua numerosa bateria e uma caminhonete para transportar a rainha do bloco e os cantores, durante os desfiles carnavalescos.
Preço da resistência
Por não aderirem à mestiçagem estética, Ilê, Muzenza e Malê ficaram à sombra do Olodum e do Ara Ketu, cujos discos elaborados no novo formato, alcançaram maior repercussão e suas bandas principais, uma maior penetração no mercado de shows.
“Não vou colocar guitarras nem teclados no Ilê só para tocar mais nas rádios. O Ilê não é uma banda. Nós somos uma entidade negra que tem uma banda, o que é muito diferente. Sempre fomos assim e não vamos mudar só para ganhar disco de ouro”, registrou Vovô, presidente do Ilê Aiyê, ao criticar a estratégia comercial daqueles blocos.
Um negócio
Mas a mestiçagem, baseada no diálogo entre linguagens musicais distintas, se configura como o elemento definidor da musicalidade soteropolitana, ao se expandir em direção aos espaços negros. E é neste contexto que as bandas produtoras de samba-reggae ascendem comercialmente e transformam o perfil dos grupos negros.
Produzir discos e shows, com direito a contrato e cachê, exige postura empresarial que inclui ter critérios de editoração, de direito autoral, de distribuição e de lançamento do produto musical.
A figura do produtor especializado, antes desconhecido, é incorporada ao staff das bandas afro para intermediar a sua atuação no mercado fonográfico e no mercado de shows. Tudo é negócio e pede estratégia mercadológica.
História cantada
A cantora baiana Daúde, nascida no bairro do Candeal, em Salvador, gravou uma canção significativa em seu CD Daúde # 2, em 1997, que metaforicamente descreve a relação dos blocos afro com o aparato tecnológico da indústria fonográfica.
“A indústria na Bahia é de ponta p’ra alegria
atrás da tecnologia só não vai quem não sabia
a indústria na Bahia é de ponta pro Orfeu
atrás da tecnologia só não vai quem já morreu
winchester não é rifle é disquete pra gravação
a fibra ótica é ótima mas não conduz percussão, meu irmão
afro Olodum multimídia sobe a rua p’ra avisar
que o beat do repique foi agora a praça samplear, se ampliar
Ilê Aiyê sintetizador da cultura black power plugado no ancestral
Muzenza não rimou (não rima) com chip mas vai à praça anunciar
você que vai p’ra avenida já quer saber do trio elétrico espacial no seu quintal
a indústria na Bahia dançando agora na órbita da Terra
atrás da tecnologia este reggae spacer invader
chegou o groove nas estrelas
a indústria na Bahia e na orla at orbi empinava um satélite
atrás da tecnologia arraia foguete, arraia Bahia.”
Na letra, a música Afro Olodum Multimídia, assinada por Lucas Santana e Quito, num jogo de palavras salienta os rumos tecnológicos desta produção, sugere o processo de desterritorialização da produção musical baiana e aponta uma certa incongruência no diálogo entre a linguagem percussiva e a eletrônica, entre outras leituras.
Indústria do axé!
Axé, força sagrada de cada orixá, que se revigora, no candomblé, com as oferendas dos fiéis e os sacrifícios rituais, a partir da formação de bandas mestiças, passa a ser sinônimo de muito dinheiro.
E, com este objetivo, nem o repertório musical escapa! Tudo se torna comum! As bandas brancas e negras se organizam e comercializam seus produtos como qualquer outro negócio no showbiz. Seus nomes estão nos elencos das gravadoras mais importantes e desfrutam de enorme popularidade.
A axé music se consolida como estilo no mercado fonográfico local e nacional. A mestiçagem musical se cristaliza.
Quando optam pela formação de bandas menores e deixam de se constituir apenas como blocos carnavalescos, os grupos negros se transformam em produtoras com sede própria, criando empregos diretos e indiretos durante todo o ano.
Segundo Ary da Mata, diretor da Casa do Carnaval, os blocos de trio foram os primeiros a se profissionalizar e a colher a fatia mais lucrativa desse setor da economia baiana, com a venda de vestimentas para os associados dos blocos e turistas, patrocínios, publicidade nos caminhões-palco e shows.
São os blocos de trio que impulsionam a “indústria do axé”, movimentando dinheiro no circuito de festas no Brasil com os “carnavais fora de época”, um novo filão do mercado que promove o consumo desta música e sua permanência nas paradas de sucesso em qualquer época do ano. Isso, a partir de 1992.
Sobre apropriação da cultura negra, leia também o artigo
Samba, da potência ao ato em nosso site.
*Goli Guerreiro, autora do texto original, “As Transformações Estéticas do Samba-Reggae”, é baiana de Salvador, pós-doutora em antropologia e escritora. Autora de “A trama dos tambores — a cena afro-pop de Salvador” e “Terror e aventura — tráfico de africanos e cotidiano na Bahia”, entre outros. De seu segundo pós-doutorado em Letras, resultou seu primeiro romance, “Alzira está morta – Ficção histórica no mundo negro do Atlântico”, vencedor do Selo Literário João Ubaldo Ribeiro. Edita o blog www.terceiradiaspora.blogspot.com sobre repertórios culturais do mundo negro.
O artigo que publicamos parcialmente, com pequenas edições, está no site Buala, com data de 21 de fevereiro de 2012 e tem 17 páginas, incluindo fontes de pesquisa.
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