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Samba, da potência ao ato

- Tania Regina Pinto

O samba teve no rádio o veículo de afirmação do sambista e na escola de samba a trincheira para defender-se de sua situação marginal, imposta. É pelo samba, também, que o negro busca a liberdade – desde sempre. Poder ir e vir, sem correntes nem chibatas.

O samba teve no rádio o veículo de afirmação do sambista, da sambista em busca da profissionalização – sempre é bom lembrar a “sagrada” e “profana” Elza Soares. E, na escola de samba, a trincheira para defender-se de sua situação marginal, imposta.

É pelo samba, também, que o negro busca a liberdade – desde sempre. Poder ir e vir, sem correntes nem chibatas, de pandeiro na mão, de terno e gravata, sem distinção de gênero, sem impedimentos para o amor, cantando, batucando, interpretando canções – como afirmava Jamelão – em verso e prosa.

Ritmistas em desfile de escola de samba do Carnaval do Rio de Janeiro, 1965. (Foto original: Arquivo Nacional / Fundo Correio da Manhã)
Foto original: Arquivo Nacional / Fundo Correio da Manhã

Os desfiles de rua – principal atração do carnaval, produto tipo de exportação que movimentou R$ 3,8 bilhões na economia do Rio de Janeiro só em 2020 e gera milhares de empregos –  são resultantes de um processo que envolve a colonização do país, a proletarização de ex-escravizados, a redefinição social do negro no contexto urbano brasileiro e a sua permanente exploração.

 

Leia também: Quando a gente nasce negro, é tudo para ontem

 

Segregação e apropriação

Quando começaram oficialmente, em 1933, promovidos pela Prefeitura, os desfiles carnavalescos,  o que se deu com uma mão, se tirou com todas.

O prefeito de então liberou ajuda em dinheiro para algumas escolas de samba e “introduziu” a obrigatoriedade da ala das baianas e a proibição de instrumentos de sopro – sempre a necessidade de controle, a segregação e a apropriação.

Hilária Batista de Almeida, "Tia Ciata", uma das tias baianas mais conhecidas, em 1854. A alas das baianas é uma referência à importância dessas senhoras para a organização do carnaval do Rio de Janeiro. (Foto: Divulgação do Acervo da Organização Cultural Remanescentes de Tia Ciata - ORCT)
Hilária Batista de Almeida, "Tia Ciata", uma das tias baianas mais conhecidas, em 1854. A alas das baianas é uma referência à importância dessas senhoras para a organização do carnaval do Rio de Janeiro. (Foto: Divulgação do Acervo da Organização Cultural Remanescentes de Tia Ciata - ORCT)

Em nome de uma tradição inexistente – as escolas de samba existiam há apenas três anos -, a ala das baianas torna-se obrigatória porque elas já eram um símbolo carioca, por seus dotes culinários e religiosos.

Quanto à proibição do uso de instrumentos de sopro, estratégia em nome da chamada “censura estética” – só podiam ser tocados por quem tem formação musical.

Sambistas não eram considerados artistas.

E, mesmo depois que conquistaram tal status, os cachês continuaram menores, como se fossem artistas de segunda classe.

Canto negro

Nos enredos, predominava o contar a própria história, negra, a música, a religiosidade, as crenças. Era a oportunidade de o povo preto refletir sobre si mesmo, reafirmar os próprios valores, resgatar a raiz, conectar-se à sua ancestralidade.

E, à primeira vista, ao serem reconhecidas pela Prefeitura, as escolas de samba acreditavam que este era o caminho para a igualdade com equidade – expressões não correntes à época, mas presentes, por exemplo, no primeiro samba-enredo que se tem notícia, Homenagem, de Carlos Cachaça.

O samba homenageava os grandes poetas, mas chama atenção para a diferença entre as “rimas ricas da cultura letrada, eternizadas, e os versos rudes do sambista, que duram um instante, “nascem e morrem”, mas se unem na festa do “povo varonil” – quem diria! -, num “desejo incontido, do samba querido, a glória elevar”…

Um lugar ao sol

No carnaval, os negros adquiriam, alegoricamente, o status negado o ano inteiro. A sociedade que nos olhava – e ainda nos olha – como desordeiros, marginais, nos via lindamente trajados, organizados e não resistia em nos aplaudir.

A polícia – que prendia qualquer um de pele escura que segurasse um instrumento com tarraxa – abria alas para que o povo preto, reunido, em massa, desfilasse, sambando e cantando…

Desfile da Estação Primeira de Mangueira. Carnaval de 1957. (Foto: Arquivo Nacional / Fundo Correio da Manhã)
Desfile da Estação Primeira de Mangueira. Carnaval de 1957. (Foto: Arquivo Nacional / Fundo Correio da Manhã)

Ingenuamente, acreditamos que o carnaval era um ato de auto afirmação negra, um prenúncio da integração.

Ingenuamente, acreditamos que o ser humano, no esplendor de sua manifestação cultural, estivesse sendo visto e percebido em sua humanidade.

Naquele momento, nos desfiles, os valores se invertiam. Mas eram apenas minutos de magia do carnaval.

Vida real

A inocência, a sede de paz, a pureza de coração, talvez, tenha nos impedido – e ainda hoje nos impeça – de ver que seguíamos sendo sugados em nossas riquezas.

Assim, os enredos que falavam de nosso existir foram substituídos por temas nacionais, segundo normas cada vez mais restritivas nos regulamentos – ele nos “ajudavam” com verba – , e assistimos o emergir da indústria do carnaval.

Cartola no desfile da Mangueira, durante o Estado Novo (Foto: Wikimedia Commons)
Cartola no desfile da Mangueira, durante o Estado Novo (Foto: Wikimedia Commons)

O samba fascina, conquista audiência e cobiça. Escola de samba vira Grêmio Recreativo por influência (ou imposição) de um delegado de polícia. E, a partir de 1935, todos os grêmios são solicitados a colaborar com a propaganda patriótica, produzindo enredos de amor pelo Brasil, seus símbolos e glórias.

Questão de gênero

Com o samba, gênero musical, a história não é diferente na intenção. Na sua cronologia, o ano de 1916 é um divisor de águas entre o que se poderia considerar folclore e o que era classificado como cultura popular.

Compreenda-se:

Folclore = produção anônima, coletiva, mantida pela tradição oral

Cultura popular = produto individualizado que, no Brasil, coincide com a modernização das cidades

Em síntese: samba é folclore, sem dono, sem autoria.

Imagem original: Danse de la Battuca à St. Paul. Ferdinand Denis. Paris, França: Firmin Didot frères et Cie, 1846.

Só que não. Samba é dança – “sapateado nos pés, pelos homens, e nos quadris, pelas mulheres”, na definição de Donga, autor, em registro, do primeiro samba gravado, “Pelo Telefonee música, herdeiro dos batuques ancestrais da África e da semba angolana – umbigada que se dança aos pares. Samba é cultura negra!

Mas proibida de manifestar-se, de acontecer!!!

“Fazer um samba” – como se diz hoje -, só era possível com licença especial da polícia…

Donga inclusive, em entrevista para a imprensa carioca, descreve a atmosfera social da época:

“As perseguições não tinham quartel. Os sambistas eram cercados em suas residências pela polícia, eram levados para o distrito e tinham seus violões confiscados (…), os pandeiros eram arrebatados

João da Baiana conta que foi preso, enquadrado no crime de vadiagem. E a prova do delito foi justamente o seu pandeiro, apreendido pela polícia mesmo depois que ele foi liberado.

Resistência

Para compor o cenário destes tempos do início do século XX, vale recriar o clima em que se deu o aparecimento do primeiro samba, considerado um marco na história da música popular brasileira, registrado no livro “Carnavais de Guerra – o Nacionalismo no Samba”, de Dulce Tupy:

Como em toda história do negro no Brasil, as reuniões e os batuques eram objetos de frequentes perseguições policiais ou de antipatia por parte das autoridades brancas, mas a resistência era hábil e solidamente implantada em lugares estratégicos pouco vulneráveis.”

Um desses lugares era a casa da baiana Hilária Batista de Almeida, tratada como Tia Ciata, babalaô-mirim respeitada, casada com o médico negro João Batista da Silva, que se tornaria chefe de gabinete do chefe de polícia no governo Venceslau Brás.

Casa de Tia Ciatada, 1941, Rio de Janeiro. (Reprodução)
Cidade Nova, 1941. No final dos anos 1910 e início dos anos 1920 o número 119 da Rua Visconde de Itaúna — que desapareceu com a abertura da Av. Presidente Vargas — na Praça Onze, abrigou a casa da Tia Ciata, local onde nasceu "Pelo Telefone", marco fundador do samba. (Foto: Reprodução)

Esta casa – na rua Visconde de Itaúna, 117, defronte da praça 11 de Junho (hoje, avenida Presidente Vargas) – simboliza toda a estratégia de resistência musical à marginalização do negro no pós-abolição.

Na sala de visitas, realizavam-se bailes (polcas, lundus etc), músicas e danças mais “conhecidas e respeitáveis”. Nos fundos, samba de partido alto ou samba raiado, com a elite negra da ginga e do sapateado.

Também nos fundos, a  batucada dos negros mais velhos, com elementos religiosos. Como define Dulce Tupy:

Metáfora viva das posições de resistência adotadas pela comunidade negra.

Quer dizer, o samba nunca foi mera expressão musical de um grupo marginalizado, mas um instrumento efetivo de luta para afirmação do povo negro na vida brasileira.

O avanço contido

“Pelo Telefone”, gravado em 1916, foi um grande sucesso popular, estourou no Carnaval de 1917 e deu a largada para o samba começar a pesar na balança musical e comercial, até tornar-se, nos anos 1930, 1940, o gênero de maior popularidade em todo país.

Donga, Pixinguinha e João da Baiana (Acervo Sérgio Cabral / MIS-RJ)
Donga, Pixinguinha e João da Baiana, compositores de "Pelo Telefone" (Foto: Acervo Sérgio Cabral / MIS-RJ)

Mas candomblé e umbanda continuariam reprimidos pela sociedade branca e cristã – apesar do espaço obrigatória das baianas no samba!

Expressões da cultura afro-brasileira como jongo – música e dança com fundamento religioso de origem quimbunda, dos bantos –, também, permaneceriam encobertos pela cortina do preconceito.

Lugar de mulher é…

A mulher negra, ainda, enaltecida em verso-e-prosa no meio do samba teria limitado seu direito de expressão nas escolas.

Gingar sim, ostentar o estandarte sim, rodar a baiana sim, animar passistas e ritmistas com sua beleza e samba no pé, sendo até chamada de rainha, sim, mas ser a “voz” da agremiação no comando do samba enredo, fazer parte da ala dos compositores, NÃO.

Como contam Elza SoaresDona Ivone LaraLeci BrandãoGrazzi do Brasil e outras, o samba é machista, não está acostumado a dor voz para a mulher nem nas rodas de samba. Aliás, sempre tocam em tom masculino.

Dona Ivone Lara (foto: Reprodução / Itaú Cultural)
Dona Ivone Lara (Foto: Reprodução / Itaú Cultural)

É isso, ainda hoje, contam-se nos dedos as intérpretes de samba-enredo, as comandantes dos carros de som nos desfiles de carnaval, as responsáveis pelo andamento do samba-enredo enquanto a escola passa.

Mesmo assim samba é resistência. E a prova é que ele se reinventa dia a dia.

É samba de roda da Bahia, batuque de São Paulo, samba urbano carioca, partido alto – em sua expressão mais sincera, de improviso e criação, é samba de terreiro – com mais atabaques e reboladinhos, samba canção – próximo à seresta, bongô e salseada…

É a verdade de um povo, ancestralidade. Não é uma manifestação estática, paralisada no tempo, dialoga com outros ritmos e, assim, mostra toda a sua potência.

 

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