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Axé music, a tomada dos tambores

– Tania Regina Pinto

Você já se perguntou como a Axé Music, com seus ritmos vibrantes e letras cativantes, se tornou um dos gêneros musicais mais emblemáticos do Brasil? Nascida nas ruas da Bahia, a Axé Music é mais do que apenas um estilo musical; é uma celebração da cultura afro-brasileira, uma fusão de ritmos que conta histórias de resistência, alegria e união. Vamos mergulhar na história desse gênero que faz todo mundo dançar, desde os blocos afros até os grandes palcos do mundo.

Um olhar para a história da produção musical dos blocos afros, com reprodução parcial de texto da antropóloga Goli Guerreiro, sobre as transformações estéticas do samba-reggae a partir de mais uma apropriação da criatividade negra.

A axé music surge da apropriação da música percussiva dos blocos afros pelos trios elétricos, que canibalizaram repertórios e ritmos criados pelos negros da Bahia, a partir do diálogo com a música negra no mundo e, em especial, no continente africano.

Esta “musicalidade mestiça”, denominada erroneamente axé music, é “resultado de uma relação desigual entre os blocos dos trio e blocos afro”. 

Interessados no acesso, em primeira mão, ao repertório dos blocos afro, pessoas ligadas aos blocos de trio começaram a investigar a cena afrobaiana, frequentar os ensaios, muitas vezes, munidos de gravador, podendo assim repassar para os diretores e produtores de seus blocos/bandas, o conteúdo dos repertórios bem como os nomes dos compositores que estavam fazendo sucesso nos espaços negros da cidade.

De posse dessas informações, os produtores compravam por quantias irrisórias os direitos autorais do compositor e, rapidamente, registravam as canções afro em discos. 

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Exploração explícita

O ex-conselheiro do Olodum, Zulu Araújo, conta que “as bandas de trio esperavam as músicas estourarem nos blocos afro, pagavam uma merreca por elas e ganhavam muito dinheiro”. 

Axé músic banda de trio elétrico
Trio Dragão da Folia (Arte: Candido Vinícius sobre foto de Reprodução/Portal MF)

“A gente fazia os festivais e as melhores músicas iam para as bandas de trio, quando a gente via a música já estava na rádio”, lembra. Isso aconteceu com canções como “Elegibô”, de Rey Zulu e Ytthamar Tropicália, “Madagascar Olodum”, de Rey Zulu, e “Faraó”,  de Luciano Gomes dos Santos, entre outras, que antes de serem registradas por seus compositores foram gravadas pelas bandas de trio. 

No formato da axé-music, as canções dos grupos negros nos das bandas de trio  chegaram a vender até um milhão de cópias, enquanto os álbuns dos blocos afro alcançavam no máximo, a marca de cem mil cópias.

Autofagia

Para reverter este quadro, alguns dos mais importantes blocos negros optam por uma espécie de autofagia, nutrindo-se da própria carne – no caso, cortando a  essência do que haviam criado!

Eles passam a adotar os procedimentos musicais das bandas brancas. Aderem à mescla das sonoridades dos instrumentos de percussão e harmonia, que implica uma redução do número de tambores da bateria. Isso porque o volume de som dos tambores abafa naturalmente a sonoridade dos instrumentos harmônicos utilizados pelo samba-reggae, como guitarra, baixo, teclado e sax.

Capturar os diferentes instrumentos através de um equalizador é, na verdade, a única maneira de diálogo, de conciliação, de universos sonoros tão distintos. Somente o recurso tecnológico das mesas de som e a habilidade do técnico que as opera, permitem a audição da harmonia ao mesmo tempo em que os tambores rufam.

Ara Ketu e Olodum

Utilizando sax, trompete, guitarra, baixo e teclado, estes dois blocos – nos primeiros anos da década de 1990 – criam suas bandas show dos blocos afro. Nelas, o número de tambores é reduzido para cerca de dez

O espaço dos ensaios também se transforma: os pequenos palcos, montados nas quadras dos blocos, que abrigavam os vocalistas, abrem espaço para os músicos dos instrumentos harmônicos e para a mesa de som que os amplifica, além das caixas de som. A bateria acústica composta por, no mínimo, 100 tambores se mantém percutindo no piso da quadra.

instrumentos harmônicos axé music
Instrumentos harmônicos à frente da bateria típica do samba reggae (Arte: Candido Vinícius sobre foto de Reprodução)

No Carnaval, enquanto a bateria acústica percute no chão, a banda principal  usa o palco ambulante munido de aparato eletrônico, o trio elétrico, tal como as bandas brancas.

Para diferenciar-se, o Ara ketu – primeiro a aderir a moda dos não negros – chamou o caminhão musical de “trem afro-elétrico”. E o Olodum seguiu o mesmo caminho.

O Ilê Aiyê, o Muzenza e Malê Debalê mantiveram suas características originais, usando exclusivamente percussão acústica na sua numerosa bateria e uma caminhonete para transportar a rainha do bloco e os cantores, durante os desfiles carnavalescos.

Preço da resistência

Por não aderirem à mestiçagem estética, Ilê, Muzenza e Malê ficaram à sombra do Olodum e do Ara Ketu, cujos discos elaborados no novo formato, alcançaram maior repercussão e suas bandas principais, uma maior penetração no mercado de shows.

Não vou colocar guitarras nem teclados no Ilê só para tocar mais nas rádios. O Ilê não é uma banda. Nós somos uma entidade negra que tem uma banda, o que é muito diferente. Sempre fomos assim e não vamos mudar só para ganhar disco de ouro”, registrou Vovô, presidente do Ilê Aiyê, ao criticar a estratégia comercial daqueles blocos.

Um negócio

Mas a mestiçagem, baseada no diálogo entre linguagens musicais distintas, se configura como o elemento definidor da musicalidade soteropolitana, ao se expandir em direção aos espaços negros. E é neste contexto que as bandas produtoras de samba-reggae ascendem comercialmente  e transformam o perfil dos grupos negros.

Produzir discos e shows, com direito a contrato e cachê, exige postura empresarial que inclui ter critérios de editoração, de direito autoral, de distribuição e de lançamento do produto musical. 

Ara Ketu Vida

A figura do produtor especializado, antes desconhecido, é incorporada ao staff das bandas afro para intermediar a sua atuação no mercado fonográfico e no mercado de shows. Tudo é negócio e pede estratégia mercadológica.

História cantada

A cantora baiana Daúde, nascida no bairro do Candeal, em Salvador, gravou uma canção significativa em seu CD Daúde # 2, em 1997, que metaforicamente descreve a relação dos blocos afro com o aparato tecnológico da indústria fonográfica.

A indústria na Bahia é de ponta p’ra alegria

 atrás da tecnologia só não vai quem não sabia

 a indústria na Bahia é de ponta pro Orfeu 

atrás da tecnologia só não vai quem já morreu

winchester não é rifle é disquete pra gravação 

a fibra ótica é ótima mas não conduz percussão, meu irmão

afro Olodum multimídia sobe a rua p’ra avisar 

que o beat do repique foi agora a praça samplear, se ampliar

Ilê Aiyê sintetizador da cultura black power plugado no ancestral

Muzenza não rimou (não rima) com chip mas vai à praça anunciar

você que vai p’ra avenida já quer saber do trio elétrico espacial no seu quintal

a indústria na Bahia dançando agora na órbita da Terra 

atrás da tecnologia este reggae spacer invader

chegou o groove nas estrelas

 a indústria na Bahia e na orla at orbi empinava um satélite

 atrás da tecnologia arraia foguete, arraia Bahia.

Na letra, a música Afro Olodum Multimídia, assinada por Lucas Santana e Quito, num jogo de palavras salienta os rumos tecnológicos desta produção, sugere o processo de desterritorialização da produção musical baiana e aponta uma certa incongruência no diálogo entre a linguagem percussiva e a eletrônica, entre outras leituras.

Indústria do axé!

Axé, força sagrada de cada orixá, que se revigora, no candomblé, com as oferendas dos fiéis e os sacrifícios rituais, a partir da formação de bandas mestiças, passa a ser sinônimo de muito dinheiro. 

E, com este objetivo, nem o repertório musical escapa! Tudo se torna comum! As bandas brancas e negras se organizam e comercializam seus produtos como qualquer outro negócio no showbiz. Seus nomes estão nos elencos das gravadoras mais importantes e desfrutam de enorme popularidade.

A axé music se consolida como estilo no mercado fonográfico local e nacional. A mestiçagem musical se cristaliza.

Quando optam pela formação de bandas menores e deixam de se constituir apenas como blocos carnavalescos, os grupos negros se transformam em produtoras com sede própria, criando empregos diretos e indiretos durante todo o ano.

Segundo Ary da Mata, diretor da Casa do Carnaval, os blocos de trio foram os primeiros a se profissionalizar e a colher a fatia mais lucrativa desse setor da economia baiana, com a venda de vestimentas para os associados dos blocos e turistas, patrocínios, publicidade nos caminhões-palco e shows

São os blocos de trio que impulsionam a “indústria do axé”, movimentando  dinheiro no circuito de festas no Brasil com os  “carnavais fora de época”, um novo filão do mercado que promove o consumo desta música e sua permanência nas paradas de sucesso em qualquer época do ano. Isso, a partir de 1992.

Sobre apropriação da cultura negra, leia também o artigo
Samba, da potência ao ato em nosso site.

*Goli Guerreiro, autora do texto original,  “As Transformações Estéticas do Samba-Reggae, é baiana de Salvador, pós-doutora em antropologia e escritora. Autora de “A trama dos tambores — a cena afro-pop de Salvador” e  “Terror e aventura — tráfico de africanos e cotidiano na Bahia”, entre outros. De seu segundo pós-doutorado em Letras, resultou seu primeiro romance, “Alzira está morta – Ficção histórica no mundo negro do Atlântico”, vencedor do Selo Literário João Ubaldo Ribeiro. Edita o blog www.terceiradiaspora.blogspot.com sobre repertórios culturais do mundo negro. 

O artigo que publicamos parcialmente, com pequenas edições, está no site Buala, com data de 21 de fevereiro de 2012 e tem 17 páginas, incluindo fontes de pesquisa.

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Axé Music: A Revolução Musical da Bahia que Conquistou o Mundo

A Axé Music, gênero musical que emergiu na Bahia na década de 1980, é o resultado da fusão entre a música percussiva dos blocos afros e os ritmos dos trios elétricos. Este gênero, muitas vezes descrito como uma “musicalidade mestiça”, reflete uma relação complexa e desigual entre as tradições musicais afro-brasileiras e a indústria musical mainstream. A apropriação dos repertórios e ritmos criados pelos negros da Bahia pelos trios elétricos, que “canibalizaram” essas criações em busca de sucesso comercial, marca a origem da Axé Music. Apesar dessa apropriação, a Axé Music ascendeu comercialmente, transformando o perfil dos grupos negros e promovendo uma nova forma de expressão cultural que celebra a riqueza da herança africana no Brasil.

O que é Axé Music? Axé Music é um gênero musical que surgiu na Bahia, caracterizado pela fusão da música percussiva dos blocos afros com os ritmos dos trios elétricos, celebrando a cultura afro-brasileira.

Como a Axé Music se originou? Originou-se da apropriação da música percussiva dos blocos afros pelos trios elétricos, que incorporaram repertórios e ritmos afro-brasileiros, criando uma nova expressão musical.

Qual é a importância dos blocos afros para a Axé Music? Os blocos afros são fundamentais para a Axé Music, pois forneceram a base rítmica e cultural sobre a qual o gênero foi construído, representando a essência da criatividade negra na Bahia.

Como a Axé Music impactou a indústria musical? A Axé Music impactou a indústria musical ao alcançar sucesso comercial, transformando o perfil dos grupos negros e promovendo uma maior visibilidade da cultura afro-brasileira no cenário musical nacional e internacional.

Quais foram os desafios enfrentados pelos criadores da Axé Music? Os criadores da Axé Music enfrentaram desafios relacionados à apropriação cultural e desigualdades na indústria musical, lutando para manter a autenticidade de suas expressões culturais diante da comercialização de sua música.