Pular para o conteúdo
InícioCarolina Maria de Jesus, pioneira da literatura marginal

Carolina Maria de Jesus, pioneira da literatura marginal

Em um tempo em que literatura era ofício de homens brancos, letrados e ricos, ela escreve, na primeira pessoa, sobre os seus pensares e sentires de mulher e mãe favelada, catadora de papel.

O que este artigo responde: Como Carolina de Jesus se tornou escritora? Qual o livro mais importante de Carolina de Jesus? Carolina de Jesus ficou rica? De quando é o livro Quarto de Despejo? Carolina de Jesus é conhecida internacionalmente? Carolina de Jesus tem só um livro publicado?

Não digam que fui rebotalho, 

que vivi à margem da vida.

Digam que eu procurava trabalho,

Digam ao povo brasileiro

que meu sonho era ser escritora,

para pagar uma editora.

mas fui sempre preterida.

mas eu não tinha dinheiro

Em 1958, o repórter Audálio Dantas estava na favela do Canindé, às margens do rio Tietê, em São Paulo, para uma reportagem sobre um parque infantil, quando se deparou com uma mulher negra de 43 anos que gritava:

“Onde já se viu uma coisa dessas, uns homens grandes tomando brinquedo de criança! Deixe estar que eu vou botar vocês todos no meu livro!”

Curioso, o jornalista foi atrás dela e descobriu uma escritora: Carolina Maria de Jesus, que ficaria conhecida mundialmente por Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, clássico da nossa literatura.

Lançado em agosto de 1960 pela Livraria Francisco Alves e editado oito vezes no mesmo ano, chegou a mais de 80 mil exemplares vendidos, numa época em que vendia-se, em média, quatro mil exemplares.

Revistas internacionais, como Life e Time, fizeram reportagens sobre Carolina e o seu livro. E, nos cinco anos subsequentes, Quarto de Despejo foi traduzido para 14 idiomas e alcançou mais de 40 países – começando por Dinamarca, Holanda, Argentina, França, Alemanha, Suécia, Itália, passando pela Tchecoslováquia, Romênia, Inglaterra, Estados Unidos e chegando à Rússia, Japão, Polônia, Hungria e Cuba.

Nele, suas reflexões sobre o cotidiano ingrato em que tenta sobreviver, catando lixo para sustentar, sozinha, seus três filhos. Sua vida de favelada, mãe solteira, com pouco estudo, criada no interior, que fora lavradora, migrara para São Paulo, tentara a profissão de empregada doméstica e vivia de catar papel, ferros e estopa no lixo.

O jornalista Audálio Dantas conta que Carolina tentara inúmeras vezes publicar seus manuscritos, buscara redações de jornais, editoras, vizinhos importantes até o pessoal do serviço social, mas não quiseram ouvi-la. Ele quis.

Assim, tomou contato com seus mais de 20 cadernos – haviam contos, poesias, romances, provérbios, pensamentos, peças teatrais, memórias, letras de música – mas deteve-se apenas em um diário, o do ano de 1955.

Carolina, há cerca de 15 anos, escrevia na tentativa imaginária de escapar das dificuldades diárias e de afastar o nervosismo que a tomava quando a fome era intensa:

“Enquanto escrevo vou pensando que resido num castelo cor de ouro que reluz na luz do sol. Que as janelas são de prata e as luzes de brilhantes. Que a minha vista circula no jardim e eu contemplo as flores de todas as qualidades”.

“Nas primeiras dez linhas lidas – conta o repórter -, percebi que aquilo tinha muito valor. Era um texto documental de muita importância. A letra dela era bastante razoável, fácil de ler, mas com todas as falhas de ordem gramatical. Mas neste caso, a gramática não tinha tanta importância.”

Dantas fez a primeira e bem-sucedida matéria sobre Carolina, que consistiu na apresentação da escritora, incluindo fotos, uma poesia e citações do diário, tudo exposto como depoimento e denúncia da situação vivida pelos pobres, a partir da perspectiva interna da favela.

Parte do material foi publicado em 1958, em uma edição do grupo Folha de S. Paulo e, no ano seguinte, na revista O Cruzeiro, inclusive com versão em espanhol. Houve grande repercussão.

Ao mesmo tempo, Dantas pediu a Carolina que retomasse o diário, o que ela fez de pronto. A ideia do livro coincidiu com o interesse da Editora Francisco Alves. Assim, a primeira edição de Quarto de Despejo traz 16 páginas relativas ao ano de 1955 e outras 153, além das ilustrações, de maio de 1958 a 1º de janeiro de 1960.

O jornalista trabalhou sobre os manuscritos, respeitando a escrita original.

Mais que escritora, Carolina se considerava uma artista. Em 1961, por exemplo, ela lançou um disco com o mesmo título de seu primeiro livro, onde interpreta 12 canções de sua autoria. Não vingou. 

Um símbolo

“Carolina Maria de Jesus violou os códigos que sustentavam a desigualdade social no Brasil e sofreu os efeitos do rompimento com a continuidade. Não por acaso a chamaram de difícil, insubmissa, petulante, geniosa, atrevida, rebelde, transgressora, ousada, explosiva, agressiva, arrogante, desafiadora e, mais tarde, com seu sucesso em declínio, de fracassada, vítima e louca. Mas chamaram-na também de terna, alegre e corajosa”

Escreve a psicóloga Marília Novais da Mata Machado em seu artigo acadêmico Os escritos de Carolina Maria de Jesus: determinações e imaginário.

Na época de Carolina, mais do que hoje, a literatura era ofício de homens brancos, letrados e, com raras exceções, ricos e em posição social elevada, pois escrever já era atividade pouco rendosa.

E não bastasse isso, seu livro refletia as determinações de raça, classe social, escolarização, profissão, procedência, sexo e idade da autora – escreve a psicóloga Marília Novais da Mata Machado em seu artigo.

Para a psicóloga, “com Carolina aconteceu o improvável, o indeterminado e o inesperado”. Houve o sucesso nacional e internacional de Quarto de Despejo e suas consequências: a instituição de movimentos em prol do desfavelamento, o incremento do fluxo da literatura produzida por mulheres, o incentivo a sonhos e projetos de ascensão social pela escrita, o receio de uma deturpação literária, já que, aparentemente, qualquer um podia escrever.

Pouca gente, na época, percebeu a singularidade do caso Carolina Maria de Jesus. Mas seu nome hoje ostentado em ruas, creches, abrigos, associações, bibliotecas, escolas e até na recém inaugurada Central Mecanizada de Triagem para reciclagem de lixo de São Paulo.

Seu projeto de vida, no entanto, era bem mais simples, como escreveu a própria Carolina:

“O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possível. Eu não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir em favela”.

Viver o sucesso

O sucesso de Quarto de Despejo deslumbrou Carolina, mas também a deixou apreensiva. Sentiu-se usada. Foi assediada, todos a queriam de algum modo. Desconhecidos lhe pediam dinheiro. E ela mostrou-se uma mulher generosa: ajudou retirantes, deu teto a desabrigados, assistiu à família. E, ainda, realizou o seu sonho da casa própria.

Deste período surgiu, em 1961, Casa de Alvenaria,  também compilado por Audálio Dantas, mas que teve uma única e tímida edição. Neste livro, é possível acompanhar o que aconteceu com sua vida desde a assinatura do contrato com a editora para a publicação de Quarto de Despejo, a saída da favela, a compra da casa num bairro de classe média, as angústias na nova posição… Como afirma Marília Novais, Carolina “expôs-se muito e, por isso, foi consumida e descartada”.

Curioso observar que o fim de seu sucesso no Brasil confundiu-se com o fim do período populista, antes do golpe militar de 1964. No exterior, entretanto, seus livros continuaram a ser lidos regularmente.

Carolina tinha confiança no próprio talento e, por conta própria, depois que o sucesso arrefeceu, publicou, em 1963, o romance Pedaços da Fome e Provérbios, sem sucesso.

No mesmo ano, empobrecida, foi morar em um terreno que comprou no bairro de Parelheiros, na região sul de São Paulo. Lá, plantava e criava galinhas. Passou por inúmeras dificuldades até que, em 1966, teve de vender a casa de alvenaria.

Mas seus filhos continuaram os estudos. Não se passava fome como no tempo da favela e ela conseguiu terminar a construção da casa de Parelheiros.

As manchetes nos jornais da época, no entanto, apostavam no pior e criaram uma história paralela ao que aconteceu na sua vida real, anunciando:

“Carolina de Jesus deixou a casa de alvenaria e voltou a catar papel em São Paulo” (Jornal do Brasil, 1966); 

“Carolina de Jesus quer viver com os indígenas” (Folha de S. Paulo, 5/2/1970) 

“Após a glória, solidão e felicidade” (Folha de S. Paulo, 29/6/1975)

“Carolina: vítima ou louca?” (Folha de S. Paulo, 1/12/1976)

Depois do estrondoso sucesso, Carolina morreria pobre e praticamente esquecida em fevereiro de 1977.

Em seu enterro, o jornalista Audálio Dantas e o prefeito de Embu-Guaçu, além dos familiares.

Vida pós a morte

A morte de Carolina não foi o ponto final para a escritora. Dois anos antes, em 1975, ela entregou a duas jornalistas francesas um manuscrito, livro de reminiscências da infância e da adolescência, que, traduzido para o francês com o nome de Journal de Bitita, foi publicado em 1982 – primeiro naquele país e quatro anos depois vertido para o português com o título de Diário de Bitita.

Nos anos de 1980, ainda, a Rede Globo de Televisão preparou o “Caso Verdade: de catadora de papéis a escritora famosa”. Na mesma época, a Livraria Francisco Alves lançou a décima edição de Quarto de Despejo.

Passada a ditadura militar, os movimentos negro e feminista reconheceram Carolina como pioneira. Nos anos 1990, dois professores universitários ajudaram a redescobrir a autora: o historiador paulista José Carlos Sebe Bom Meihy e o cientista social norte-americano Robert M. Levine, que há anos utilizava os escritos de Carolina em suas aulas.

Os dois publicaram  o livro Cinderela Negra: A Saga de Carolina Maria de Jesus, da editora UFRJ, e editaram duas coletâneas de inéditos da escritora enfatizando a sua singularidade:

 “Ser negra num mundo dominado por brancos, ser mulher num espaço regido por homens, não conseguir fixar-se como pessoa de posses num território em que administrar o dinheiro é mais difícil do que ganhá-lo, publicar livros num ambiente intelectual de modelo refinado, tudo isto reunido fez da experiência de Carolina um turbilhão.”

Em 1996, Meihy e Levine publicaram, também, Meu estranho Diário e Antologia Pessoal que haviam sido previamente organizados pela autora. Esses dois livros surgiram quando Carolina já vinha sendo homenageada no Brasil e no exterior, onde ela nunca deixou de ser lida e estudada, sobretudo nos EUA, onde Quarto de Despejo, traduzido como Child of the Dark, é utilizado nas escolas.

Graças também a Levine e Meihy, muitos manuscritos de Carolina foram microfilmados (1996) e estão disponíveis na Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

Teses de doutorado a tomaram como tema e muitos estudos sobre sua obra foram publicados, especialmente nos Estados Unidos.

O cineasta Jeferson De, da Trama Filme, realizou documentário curta-metragem com Zezé Motta no papel da escritora (2003).

Quarto de Despejo foi reeditado em Cuba (1989), na Alemanha (1983, 1993) e no Brasil (1993). Casa de Alvenaria na França (1982, 1984) e nos Estados Unidos (1997, 1998). Diário de Bitita foi traduzido na Espanha (1985).

A Câmara Municipal de Sacramento (MG), cidade onde Carolina nasceu em 14 de março de 1914 – mesmo dia, mês e ano de Abdias do Nascimento –  e morou durante sua infância e adolescência, outorgou-lhe o título de cidadã honorária em 2001.

Quarto de Despejo foi selecionado para o vestibular da UFMG, em 2001, e da UnB, em 2004, conquistando maior reconhecimento para toda a literatura marginal.

Fontes: Artigo “Os escritos de Carolina Maria de Jesus: determinações e imaginário”, da psicóloga Marília Novais da Mata Machado, doutora pela Universidade de Paris Norte, Paris XIII,  e mestre pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; Mundo Educação, Jornal Hoje em Dia, Agência Brasil, outraspalavras.net, Carta Capital

Escrito em 27 de julho de 2014. Atualizado em março de 2024

6 comentários em “Carolina Maria de Jesus, pioneira da literatura marginal”

  1. Pingback: Ser negra nas artes visuais • Primeiros Negros

  2. Morei em uma rua no bairro de Cipó, município de Embú-Guaçu. Não nasci lá, mas desde os 4 ou 5 anos, estava lá escrito Rua Maria Carolina de Jesus. Hoje com os meus 53 anos, sei que foi homenagem Carolina Maria de Jesus. A curiosidade é qual o motivo de mudar o nome dela na rua ? De toda forma grande história dela.

  3. Pingback: Erika Hilton: o poder negro de uma política trans

  4. Pingback: Sankofa

  5. Pingback: Conceição Evaristo por Conceição Evaristo

  6. Pingback: Abdias do Nascimento, um pioneiro revolucionário

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *