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Da África, a reconstrução civilizatória

O pensamento de Jayro Pereira de Jesus

– PRIMEIROS NEGROS –

Jayro Pereira (Imagem: Reprodução)

“O terreiro é lugar de reconstrução civilizatória, da compreensão de uma visão de mundo a partir dos valores africanos.”

Quem defende este ponto de vista é o teólogo afro e professor Jayro Pereira de Jesus. Para ele, a apropriação desta ideia por todo mundo na sociedade é necessária para a superação do racismo e para a prática da civilidade, do respeito entre todos as pessoas, sempre.

“Antes da deportação dos africanos para as Américas, o colonialismo trabalhou com duas ações que a gente chama de apagão e arrastão ideológico. Os colonizadores trabalharam para o esvaziamento da forma como nós nos víamos e nos reconhecíamos, contaminando a nossa existência com outros valores, sobretudo com o maniqueísmo, a ideia do bem e do mal .”

O teólogo lembra que “a igreja católica foi uma parceira fundamental do colonialismo”, em um período em que se confundia relações sociais com religião – tudo muito parecido com o que assistimos atualmente, neste século XXI -, para que se estruturasse “armadilhas e arapucas” que persistem até hoje.

Corpo, território do sagrado

A ideia original de África é do corpo como território fundamental do sagrado. Quer dizer, a existência é concebida como ligada ao todo, ao Cosmo, à natureza.

Os orixás representam a construção do ser. Orixás têm a ver com subjetividade, com o que integra, estrutura, dá sentido, a partir de uma dinâmica civilizatória que alimenta a vida.

“Orixá não é algo esporádico, que de vez em quando aparece, vem, se manifesta e vai embora. Ele é o indivíduo, o homem, a mulher… Conceber o ser humano, do ponto de vista africano, é compreendê-lo como detentor de uma sacralidade existencial

Conceber o ser humano, do ponto de vista africano, é o que dá sentido à vida. Não tem a ver com vestir esta ou aquela roupa.”

Porém, arrancados do berço, arrancados de África, vimos nossa realidade ancestral virar incorporação, magia, limitada à visão perniciosa do bem e do mal.

“O Ocidente precisava corporificar a ideia do bem e do mal e quando sequestra o africano, o transforma em sinônimo de tudo que é o mal. E tudo que vem da Europa é do bem, é branco, é puro.”

Os negros foram colocados, por meio da violência, dentro de uma “humanidade concedida, insignificante”. E, como defesa, estratégia de resistência, para não perderem sua total identidade, buscaram formas alternativas de manutenção de poder – mesmo que relativo.

O tempo, entretanto, fez com que nos perdêssemos…

Reconstrução civilizatória

O que se vê nos terreiros é uma recriação afro diaspórica nada original. Ao mesmo tempo, é nos terreiros que estão guardados, de forma confusa, os saberes, princípios e valores africanos.

As comunidades de terreiro deveriam ser lugares de reposição civilizatória, mas se constituíram como espaços religiosos. Isso porque ialorixás e babalorixás (também chamados pais e mães de santo), na sua maioria, não têm consciência do estrago que o colonialismo fez:

“Eles têm uma visão muito pequena da complexidade civilizatória africana. É preciso compreender para se reconstruir, para reagir. É preciso consciência racional. Caso contrário, ficaremos cada vez mais adequados aos ditames do capitalismo, ao projeto político de opressão.”

Jayro Pereira propõe, inclusive, que ialorixás e babalorixás – nomes linguísticos que, na diáspora, viraram formas de poder – sejam renomeados como autoridades civilizatórias de matriz africana

Roda de samba em terreiro (Imagem: Jaime Miranda Santos)

O processo de iniciação – de “fazer o santo” (?) – que, para Jayro Pereira é um processo de “cosmologização”, por exemplo, seria um novo ponto de partida para compreendermos a visão de mundo através de valores africanos:

“Nem a expressão ‘fazer o santo’ deveria ser usada. Ela é reducionista e está a serviço do racismo estrutural, que é a banalidade. Pertence ao universo religioso de outra origem, que não africana. Não podemos agir como retroalimentadores do racismo que nos dá suporte para sobreviver, nos faz trabalhar com a ideia da vitimização. Só a consciência do que éramos, do que nos tornaram – e do que poderemos vir a ser – é libertadora.”

Pilhagem cristã

É fato que tradições religiosas como o catolicismo não têm nada de original. Tudo que se chama de teologia cristã, ocidental, foi pilhada dos outros, foi sugada do Oriente.

“E não foi só pilhagem material, foi pilhagem epistemológica (reflexão geral em torno da natureza, etapas e limites do conhecimento humano), pilhagem teológica, pilhagem filosófica. O colonialismo pegou tudo, subtraiu, reformulou e enfiou goela abaixo como verdade. E o movimento negro assimilou tudo!”

Quando se pensa a Filosofia Ubuntu, por exemplo, ela não é cartesiana – “Penso, logo existo!” -, mas traz reflexões mais profundas:

“Eu penso e logo me lembro dos que me antecederam, dos que estão aqui hoje e dos que haverão de vir. 

É por isso que eu existo.”

Invariáveis civilizatórias

Jayro Pereira considera fundamental que o Movimento Negro enfrente o que chama de “invariáveis civilizatórias”, uma referência à África como continente e não como país.

Para ele, a história de diversidade africana, de que a África não é um país, mas um continente, diverso, é uma alegação colonialista, racista, que sustenta e alimenta a intolerância religiosa.

Separar os orixás por filosofias não tem sentido

Até porque não existe diferença. São apenas formas gramaticais, linguísticas. Não é da essência, da substância em si. 

A concepção do orixá é constitutiva do ser, não importa a linhagem filosófica. O ser que não é religioso, mas cultural, civilizatório, que é uma dinâmica onde a vida se estabelece.

A função de ser africano é saber a sua contribuição civilizatória no engendramento da sua existência, da totalidade.”

O terreiro é lugar de reconstrução civilizatória.”

Assista a entrevista com Jayro Pereira sobre Teologia Africana, inspiração para este artigo, aqui. Baiano da Ilha de Itaparica, ele compreendeu dentro das igreja católica a grande armação que o catolicismo fez com os povos africanos e indígenas. Seminarista, na juventude, trabalhou na biblioteca de um mosteiro. Lá, o ponto de partida para o seu ativismo.

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Fonte: Cultne-Youtube 

Abril 2023

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2 comentários em “Da África, a reconstrução civilizatória”

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