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Racismo Estrutural: os caminhos da exclusão

-Edmar Neves

O racismo estrutural que se traduz em discriminação, preconceito, injúria, leis e práticas que conspiram para o não existir do povo preto.

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Embora a legislação brasileira defina  o racismo como crime inafiançável, comprovar  a sua  prática na Justiça continua a ser o maior desafio para as vítimas..

Caminhos da exclusão definem a cor da superioridade e da inferioridade.

Caminhos da exclusão escolhem  quem tem direito a ser visto como humano.

Caminhos da exclusão determinam gente que deve ser tratada como objeto,  ferramenta de trabalho.

Caminhos da exclusão  apontam vida e morte. Mas caminhos da exclusão  deixam rastros, fome, gritos, miséria, horror e violência

Situação 1: a carne mais barata do mercado

A gerência do mercado Atakadão Atakarejo, no bairro de Amaralina, em Salvador (BA), acusou dois homens negros, Bruno Barros da Silva e seu sobrinho, Ian Barros, pelo roubo de carne e acionou traficantes da região para “resolver” o problema. Os corpos negros foram encontrados, sem vida, no porta-malas de um carro.

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Este é um caso de duplo homicídio,  injúria racial, preconceito, discriminação ou racismo? Com certeza, homicídio – os dois homens foram assassinados. Quanto ao peso da cor da pele das vítimas no crime, não há como provar. Aí, a genialidade do racismo estrutural, via legislação.

A lei, ora a lei

A injúria racial está prevista no artigo 140, parágrafo 3º, do Código Penal, que estabelece a pena de reclusão de um a três anos e multa. E injuriar é ofender a dignidade ou o decoro utilizando elementos de raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.

Em geral, o crime de injúria está associado ao uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima. Um exemplo recente de injúria racial ocorreu no episódio em que torcedores do time do Grêmio, de Porto Alegre, insultaram um goleiro de raça negra chamando-o de “macaco” durante o jogo.

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Já o crime de racismo, previsto na Lei nº 7.716/1989, implica conduta discriminatória que visa a atingir uma coletividade indeterminada de indivíduos, a integralidade de uma raça.

Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, entradas sociais em edifícios públicos ou residenciais, elevadores ou escadas; negar ou obstar emprego em empresa privada, são algumas das situações que se enquadram como  crime de racismo, que  é mais amplo do que o de injúria.

Por injúria racial, o crime prescreve em oito anos. Quer dizer, deixa de existir. Já o crime de racismo é inafiançável e imprescritível, conforme determina o artigo da Constituição Federal.

Mas segue o desafio de comprovar o crime, responsabilidade da parte da nossa sociedade que detém o poder – seja pela cor da pele, pelo poder financeiro ou político – e segue promovendo a morte da população negra em escala industrial.

A marca da ignorância

Situação 2: não confunda preconceito e discriminação

O preconceito é uma opinião preconcebida sobre determinado grupo ou pessoa, sem qualquer informação ou razão. O racismo é a crença de que existem raças superiores e raças inferiores. Já a discriminação é a ação baseada no preconceito ou no racismo, em que o indivíduo recebe um tratamento injusto apenas por pertencer a um grupo diferente.

Quer dizer, entre o (pré)-conceito e a  discriminação, a diferença está na atitude. Ninguém pode impedir uma pessoa de ser preconceituosa. Mas existem leis que proíbem esta mesma pessoa de transformar o seu pensar em ato.

Padres católicos, por exemplo, eram preconceituosos e ao naturalizarem a escravidão negra, com apoio institucional da Igreja Católica, forçando batismos, proibindo a manifestação religiosa de outras religiões, transformaram o preconceito em ato. Nos dias de hoje, seriam acusados de discriminação racial, de acordo com a lei que proíbe o racismo. Estariam todos na cadeia, sem chance de liberdade!

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Parece uma contradição, mas a ignorância – o não-saber que caracteriza todo preconceito – é outra das marcas dos caminhos de exclusão, do racismo estrutural, que funciona como um sistema, uma engrenagem, muito bem concebida para impedir, inclusive, que a história do primeiro continente, do primeiro homem, da humanidade, seja contada desde seu marco zero.

Que não se confunda preconceito com discriminação, que é a atitude deliberada de exterminar o existir físico, social, econômico, intelectual, pleno de um povo.

O racismo se estrutura ao dar sustentação a todas essas práticas, sendo o conjunto de costumes, instituições, leis, normas e sistemas de representação cultural que reafirmam a superioridade branca e a inferioridade dos não brancos.

Sem discriminação de idade ou sexo

Situação 3: tragédia cotidiana

21 de setembro de 2019. Ágatha Félix, 8 anos, está voltando para casa com a mãe, de lotação, na cidade Rio de Janeiro. Na parada na comunidade da Fazendinha, para desembarque de alguns passageiros, passa uma moto, a PM desconfia dos motoqueiros e atira. O tiro acerta Aghata pelas costas.

18 de maio de 2020. O estudante João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, morre durante operação conjunta das polícias Federal e Civil do Rio de Janeiro no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. A família e testemunhas afirmam que policiais chegaram atirando na casa onde João brincava com seus primos e os amigos. Ele foi atingido na barriga.

Setembro de 2020 – Um ano da morte de  Ágatha e a plataforma Fogo Cruzado divulga um novo relatório no qual escancara a existência de outras 28 crianças vítimas da violência armada, baleadas, no Grande Rio. Oito delas não resistiram e morreram.

19 de novembro de 2020, véspera do Dia da Consciência Negra, São Paulo. João Alberto Silveira Freitas e sua mulher  fazem compras  a na rede de supermercados Carrefour. Ele se desentende com um dos funcionários, é levado para fora da loja  por três seguranças e é,  espancado até a morte diante de uma plateia que grava a cena da vida real, mas não impede o crime. Voz praticamente solitária, a da esposa que tenta  ajudá-lo.

Um ano antes, dez dias depois do 20 de Novembro, contra a discriminação racial, na favela Paraisópolis, na capital paulista, centenas de jovens são massacrados em um baile funk na comunidade. No meio da madrugada, a PM invade a festa com bombas de gás e balas de borracha. Nove pessoas morrem pisoteadas.

Segundo o Atlas da Violência no Brasil, de 2019, baseado em dados do Ministério da Saúde, 75% das vítimas de homicídio eram pessoas negras.

Vida e morte

E toda essa gente, preta, é vítima do racismo estrutural. Racismo que abrange mais que questões de identidade ou relacionadas à subjetividade. Até porque a objetividade dos números expõe as nossas feridas, nossas veias abertas. Por mais que insistam, nem todos morremos.

Levantamento do Departamento Penitenciário Nacional, em 2017, registra que 63,6% da população carcerária é negra.

No contexto da pandemia de covid-19 – realidade 2020/2021 -, as taxas de desemprego têm aumentado em todo o país para todo mundo, mas com maior ênfase para a população negra. Isso, desde 2012, quando começou a pesquisa do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Segundo especialistas consultados pelo UOL, a crise provocada pelo coronavírus atingiu principalmente atividades econômicas com maior participação de negros, como comércio e construção civil.

No segundo trimestre de 2020, o primeiro completo sob os efeitos da pandemia, a taxa de desemprego geral ficou em 13,3%, segundo a Pnad – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE. Ao analisar o dado de acordo com a cor da pele, a taxa de desemprego de pretos ficou em 17,8%, de pardos, 15,4%, e de brancos, 10,4%.

E negros e negras, de novo, estão em primeiro lugar nas estatísticas quando o assunto é morte.

Homens negros são os que mais morrem por covid-19: são 250 óbitos pela doença a cada 100 mil habitantes. Entre os brancos, são 157 mortes. Entre as mulheres, as que têm a pele preta também morreram mais: foram a 140 mortes por 100 mil habitantes, contra 85 por 100 mil entre as brancas. Os dados são do levantamento da ONG Instituto Polis, que analisou casos da cidade de São Paulo entre 01 de março e 31 de julho de 2020.

Outro levantamento, do IBGE, mostra que mulheres, negros e pobres são os mais afetados pela doença. A cada dez pessoas que relatam mais de um sintoma da covid-19, sete são pretas ou pardas. Padrão que se explica por desigualdades sociais e pelo racismo estrutural.

Os  números refletem todos os males que o sistema racista causa em nós, negros e negras – somos privados de saúde, emprego, vida e até de saber quantos somos, quem somos, como estamos. A prova é a defasagem dos números, nossa separação em pretos e pardos…

Situação 4: Privilégio branco e racismo reverso

Mas que não se pense que somos nós o problema, apesar de termos clareza do que é preciso ser feito para solucioná-lo, por meio da conscientização sobre o que é o privilégio branco e a branquitude.

Tais expressões – “privilégio branco” e “branquitude” – não têm nada de pessoal, contra os seres humanos que nasceram com a pele clara, mas que insistem em chamar de “branca”.

“Privilégio branco” e “branquitude” denunciam caminhos de exclusão exatamente porque favorecem uma cor, privilegiam uma cor, e são sinônimo de exploração colonial, exploração de terras, exploração de povos, exploração de corpos não-brancos, exploração de mão-de-obra não branca, apropriação de vidas não-brancas…

Candidato acusado de fraldar cota racial em concurso do INSS em Juiz de Fora
Candidato acusado de fraldar cota racial em concurso do INSS em Juiz de Fora. (reportagem: G1).

A expressão “privilégio branco” chega a ser redundância. Isso porque o privilégio é branco. Isso porque não existe privilégio negro. E como não existe privilégio negro, por consequência, não existe racismo reverso – outra expressão que confunde a branquitude.

Não existe racismo reverso porque os negros não possuem poder político ou econômico para perseguir ou excluir pessoas brancas de qualquer processo social, empregatício, de acesso à saúde..

Nenhuma lei foi criada no Brasil proibindo pessoas brancas de frequentarem escolas públicas, como ocorreu com a Lei nº 1 de 1837, que impedia “escravos e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos” de estudar…

Pessoas brancas não foram impedidas de comprar propriedades, como os negros antes e depois do fim da escravidão.  Em 1850, mesmo libertos ou nascidos livres, a Lei 601 negava a eles o direito de ter moradia própria. Isso explica como fomos parar nos morros.

Saraus literários e musicais, entre outras práticas culturais de pessoas brancas nunca foram proibidas. Mas jogar capoeira, carregar instrumento de percussão, era prisão prevista no primeiro Código Penal do Brasil, de 1890, criado exatamente para conter a liberdade assinada em 1888.

Situação 5: Resistir e ocupar!

Os negros nascem livres. São sequestrados, escravizados, libertos e a Constituição de 1988 garante: Todos são iguais perante a lei. Só que não. Ainda não.

Até mesmo os que hoje maldizem as cotas raciais já foram favorecidos por elas, quando os contemplados eram brancos. E isso não faz muito tempo: em 1968, a aprovação da Lei  5.465, também conhecida como ‘Lei do Boi’, garantiu  cotas nas escolas técnicas e nas universidades para os filhos dos donos de terra.

Isso, apesar de 17 anos antes, em 1951, o Estado brasileiro ter admitido a existência do racismo em nossa sociedade, com a aprovação da Lei 1390, que tornava crime a discriminação racial e ficou conhecida como “Lei Afonso Arinos”.

E, entre a resistência da branquitude e a resistência da negritude, se passaram 100 anos da lei da abolição, para que o racismo se tornasse se tornasse crime inafiançável e imprescritível.

 O primeiro passo foi a ‘Lei Caó’ – n° 7.437/1985, é alterada no ano de 1989.

Racismo dá cadeia, mas não há racista preso. E aí voltamos ao privilégio branco – a maioria dos delegados, juízes e advogados são brancos. A Justiça é racista. A Polícia é racista. O Poder é racista. Mas somos e seremos sempre  resistência! De Zumbi dos Palmares à Frente Negra Brasileira, resistimos. De Antonieta de Barros a Leci Brandão, resistimos. De Madame Satã a Erika Hilton, resistimos.

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Mesmo vivendo em uma sociedade que se construiu com nossa escravização, com nossa exploração, com nossa exclusão e com nossa morte, seguimos resistindo. Mesmo que nossos corpos sejam considerados descartáveis, que nossa cultura seja considerada inferior, que nossas feições sejam consideradas feias, seguimos resistindo.

Resistimos. E é assim que existimos. E é assim que seguimos as pegadas dos mais velhos e mantemos nossa ancestralidade viva. Quando nos libertamos, nos realizamos, libertamos e realizamos os que vieram antes. O que nos move é o resgate de sentido de existência, é o resgate de poder para o nosso povo.

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Com a Redação

Fontes:

Racismo estrutural (livro) – Silvio de Almeida

Racismo reverso, BBB, e outras histórias – Tempero Drag

https://cnj.jusbrasil.com.br/noticias/195819339/conheca-a-diferenca-entre-racismo-e-injuria-racial -Conselho Nacional de Justiça