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13 de Maio de 1888, do ponto de vista negro

“O Barco”, da artista Grada Kilomba, em Lisboa, foi criado como “metáfora para produzir um novo futuro”. (Foto: Nuno Fox/Lusa)

Com a palavra, o professor  Marcos Queiroz, do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa, que em seu trabalho foca o campo do Direito  e das relações raciais.*

O espaço de tempo que nos separa da abolição da escravidão é muito menor do que os mais de quatro séculos durante os quais esse regime de tortura e terror para milhões de africanos, negros brasileiros (chamados ‘crioulos’) e povos indígenas. Foram mais de 400 anos entre o desembarque dos primeiros africanos raptados e a Lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888 – uma história que começa oficialmente em agosto de 1444, em Portugal, quando saem dos porões de um navio 235 homens, mulheres e crianças para serem leiloados.

Não há por que celebrar o 13 de maio.

É preciso, neste e em todos os dias, trabalhar a cultura da lembrança para que os fatos que fizeram esse dia existir em 1888 nunca mais se repitam. 

É preciso, neste e em todos os dias, trabalhar a cultura da lembrança para que seja aplicada a Justiça Restaurativa não só aos africanos em diáspora, mas à própria África que foi devastada teve roubada sua força de trabalho e criação.

A cultura da lembrança é fundamental para, inclusive, compreendermos quem somos, porque  vivemos o que vivemos hoje, bem como os efeitos que este regime teve e tem sobre a nossa existência, sobre o Brasil construído pelos que vieram antes e pelos que, até hoje, desfrutam de privilégios criados por este regime de exclusão.

Segundo estudo do historiador Patrick Manning, da Universidade de Pittsburgh, nos EUA, em 1600 a população nas regiões tropicais da África era de 50 milhões de pessoas. Em 1800, tinha caído para 20% e em 1900, 10%. Quer dizer, a África cresceu em ritmo menor devido à drástica perda populacional durante séculos e até hoje mantém altos índices de emigração e mortalidade.

A escravização negra não raptou, traficou e escravizou pessoas negras de forma aleatória. A escravização negra teve escala industrial incomparável, organizada, sistematizada, envolveu dois oceanos – Atlântico e Índico – e quatro continentes!

Como escreve Laurentino Gomes em seu primeiro livro da trilogia  Escravidão, na página 130, escravizar negros era mais barato, havia africanos em abundância e estavam bem adaptados a doenças, sem contar o saber africano, como  praticar agricultura em larga escala, mediante uso de enxada e outras ferramentas; adaptação ao trabalho pesado, experiência na criação de gado, além de serem hábeis mineradores de ouro  e pedras preciosas.

O Brasil dos colonizadores europeus foi construído por negros e, naquele 13 de maio, depois de assinada a ridícula “lei da libertação”, de exatas três linhas, o povo negro seguiu vivendo a tragédia humanitária que lhe foi imposta à base de muita humilhação, violência, crueldade, dor, sofrimento.

“Livre”, porém, impedido de existir, de alimentar seu corpo e seu espírito, em condição de miséria, marginalidade, perseguição permanente. Nem praticar religião e cultura próprias nem ocupar espaços sociais e geográficos.

: : Leia sobre a legislação criada para impedir os negros de ter documentos, comprar terras, estudar, orar, existir em As Leis e o Racismo.

E, fora as leis, a vida real negra, os 13 de maio que se seguiram depois, até o atual: as marcas da escravidão são feridas abertas no povo negro, ainda.

A grande contradição

Todo país tem um período sombrio. O do Brasil é o da escravidão – um dos maiores crimes da história da humanidade – e, para esconder a vergonha do protagonismo, criou-se uma narrativa (leia-se: história que não se sustenta) em que os fatos são relativizados, postos em dúvida e até negados.

É um projeto deliberado de reinterpretação da história, com objetivos políticos, de manutenção no poder sem qualquer sentimento de culpa. E uma prova é o nome da pessoa que entra para a história do Brasil como ocupante da Presidência da República, de 2018 a 2022 no máximo, espera-se), declaradamente racista e que fala de negros em arroba.

Como encarar o fato de que os poderosos – de ontem e de hoje – não existiriam se não fossem os negros?

Como encarar o fato de que este Brasil não existiria se os negros não o tivessem construído?

Nunca fomos preguiçosos, vagabundos, vadios… Ao contrário.

Nas lavouras de cana-de-açúcar e nas minas de ouro e diamante, nossos ancestrais eram tratados como máquinas de trabalho – trator, arado, um equipamento qualquer de produção agrícola…

O que teria sido da África sem o tráfico de escravos para a América?

Teria evoluído – indicam as estatísticas que toda uma economia de trocas regionais em crescimento na época anterior à chegada dos portugueses vigoraria – uma economia que foi desmantelada para favorecer o comércio de cativos. Faltava gente branca para o trabalho!

A escravização do povo negro foi a solução para a confortável existência do povo branco: faltava gente para as embarcações, para trabalhar nas terras férteis, para transformar os recursos naturais das novas terras em riquezas europeia, para substituir a população indígena, que estava morrendo, dizimada por doenças dos brancos e guerras… Para tudo, uma única solução? Escravidão negra – registra o livro Escravidão nas páginas 108 e 109.

Brasil sem negros?

Perguntado sobre como seria o Brasil se não houvesse ocorrido a escravização dos seres humanos nascidos no continente africano, o professor Marcos Queiroz deixou evidente a quase impossibilidade de se pensar o país que vivemos hoje:

 “Esta é uma pergunta central para pensarmos quem somos e de difícil resposta porque a escravidão foi, talvez, o evento fundacional da sociedade brasileira, juntamente com o ataque e o extermínio dos povos indígenas que viviam no território que hoje se chama Brasil.”

O Brasil foi o país que recebeu praticamente metade dos escravizados raptados em África – cerca de 45% dos 12 a 14 milhões de africanos que vieram para as Américas.

Há um número sempre citado na historiografia que, até 1850 – ano em o tráfico negreiro se torna proibido –, de cada 100 pessoas que chegavam no Brasil, 86, 87 pessoas eram africanas traficadas e, depois, contrabandeadas.

A Lei n. 581, de 4 de setembro de 1850, conhecida como Eusébio de Queirós, reprime o tráfico de africanos no Império, mas apenas para responder às pressões britânicas que queria a extinção da escravidão no país.

A expressão “para inglês ver”, aliás, nasce com esta lei nunca cumprida, nunca levada a sério.

Nas Américas, o Brasil é o último país a abolir a escravidão, o que mostra o enraizamento da instituição escravocrata na sociedade, mas não sem luta.

Fatos & Versões

A Inglaterra, na época, era praticamente o centro do sistema internacional, defendia o fim da escravidão, e o Brasil, além da lei “para inglês ver”, para justificar a expansão da exploração da mão de obra escravizada no seu interior forjou uma visão específica da sua própria escravidão, de que aqui a escravidão era benigna!

E se construiu uma imagem diplomática – forjada pela casa grande, pelos intelectuais senhoriais e pelo Império num contexto de abolição e de pós abolição -, se criou uma ficção de que a escravidão no Brasil era diferente da escravidão no sul dos Estados Unidos, diferente do Caribe.

Basta pensar na publicação do livro Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre, que empresta à essa visão uma legitimação sociológica e antropológica de que o Brasil, de fato, tinha uma escravidão singular, na qual negros, brancos e indígenas conviviam de maneira harmônica. Visão que se mantém presente no imaginário nacional apesar de esta narrativa, ao longo da história, ser permanentemente contestada pelos intelectuais negros e por parte da historiografia brasileira:

“A escravidão no Brasil, como nos demais lugares, foi absolutamente desumana, absolutamente selvagem, absolutamente incivilizada e tinha na sua base, como qualquer sistema escravocrata, a negação da humanidade do outro – no caso de pessoas africanas e pessoas negras.”

: : Saiba mais a respeito no artigo Democracia Racial: Fato ou Fake?

Todo preto se chama Resistência

O Brasil se constituiu, na sua Independência, garantindo a manutenção e expansão da escravidão, e do latifúndio, mas não sem resistência negra permanente, de todos os tempos, como historia Marcos Queiroz.

“Nossos ancestrais em nenhum momento se conceberam como pessoas escravizadas. A partir do momento que foram jogados nos navios negreiros, resistiram e resistiram e resistiram. Buscaram maneiras de fugir, de negar aquele sistema de opressão. As revoltas nas Américas foram uma constante, uma tônica desse período.”

Que se lembre o Quilombo dos Palmares, no Brasil, que dura praticamente todo o século 17 e é a grande pedra no sapato do colonialismo português nas Américas, o grande processo de resistência, que contesta o sistema.

Palmares é uma nação criada por negros fugidos de vários engenhos do Nordeste, um vasto território do tamanho de Portugal, que se espalhava desde o rio São Francisco, a oeste, até o cabo de Santo Agostinho, no litoral, a leste.

Por isso, o 20 de Novembro importa – é uma data que remete e reflete a nossa resistência, a partir da execução do líder negro Zumbi, em 1695. Manter na memória brasileira o 20 de Novembro é contar da nossa disposição para a luta, da nossa força, para nós mesmos e para toda a sociedade brasileira.

Um outro exemplo é a Revolução Haitiana, que emerge na história, entre 1791 e 1804, e resulta na Declaração da Independência do Estado Haitiano, a “Pérola das Antilhas”, que determinou o fim da escravidão na parte francesa na ilha espanhola de São Domingos.
 Ao promoverem a própria libertação, os negros lançaram uma questão aos líderes do mundo ocidental:

Vocês vão continuar a desenvolver sua marcha na história baseados na escravidão e no tráfico negreiro?

A revolução haitiana propunha um outro caminho, mas o mundo escolheu manter-se no terror. E, com o medo branco – presente até hoje, que o digam as chacinas, onde se dispara mais de 1.500 tiros para matar menos de dez negros -, tudo ficou pior para os escravizados, com a escravidão “rejuvenescendo” em lugares como o sul dos Estados Unidos, Cuba e no próprio Brasil.

Mesmo assim, a luta por existir em plenitude se mantém viva e presente no cotidiano das plantações, nos engenhos de açúcar nas fazendas e nas cidades brasileiras. A historiografia, inclusive, vem resgatando a importância das mulheres na resistência à escravidão, tanto na cidade como no campo. Muitas vezes, eram elas as mensageiras e articuladoras das ideias de liberdade.

O hoje

Pensar as principais questões do debate racial no Brasil, implica associação com questões do passado. Vive-se um momento de crise econômica, crise política, crise de ideias, com uma esfera pública voltada para o negacionismo, para o falseamento dos fatos… Não há que se falar em democracia no Brasil sem pensar como questão primeira o direito dos grupos não brancos.

Tudo que se entende como democracia, direitos fundamentais, direitos sociais ficam em suspenso quando se analisa a realidade concreta vivida pelas populações negra e indígena no Brasil.

Cinco anos depois da Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã, acontece a chacina do Carandiru, depois a chacina de Vigário Geral, da Candelária – com 8 meninos assassinados a tiros enquanto dormiam junto à Igreja, no centro do Rio Janeiro, sem que ninguém tenha sido punido um ano depois do massacre e de estar entre os acusados três policiais militares – e outras, sem fim!

“Que democracia é essa que permite que pessoas sejam assassinadas em procedimentos sumários, muitas vezes nem visibilizados para o povo?”

– pergunta Marcio Queiroz.

E é ele quem responde:

“A questão racial no Brasil envolve todos os brasileiros. Está no âmago da democracia republicana que todos sejam tratados com consideração e respeito. Em termos demográficos, a população não branca é maioria no Brasil. Não há como o país almejar ser democrático se a sua absoluta maioria não é tratada com o mínimo de respeito.”

Na encruzilhada, Laroiê

Para o professor Queiroz, no entanto, precisamos de mais que representatividade, inclusão, espaços de poder para algumas pessoas. “É central refundar aquilo que entendemos como estado-nação. Fundar, talvez pela primeira vez, um país democrático… Falamos de violências que aconteceram no passado, mas a violência racial continua fundando a nossa ordem social…”

Deturpar a nossa memória nacional e a própria memória da sociedade ocidental – indica Marcos Queiroz – é de interesse de quem se beneficia desse sistema, da forma como essa ordem é regulada:

“Vivemos em um dos países mais desiguais da América, em que mais de 600 mil pessoas morreram numa pandemia em menos de dois anos, quando todos sabíamos que poderíamos ter tido um número de mortes bem menor. Vivemos em um país em que as pessoas passam fome, lutam para ter um trabalho precarizado, uma sociedade disfuncional, que relativiza o nosso passado de violência para atender interesses de quem lucra com a miserabilidade alheia.”

Há uma arquitetura no discurso nacional difícil de desmontar. Mas a ideia de ‘democracia racial’ já não se sustenta. Esta é a encruzilhada histórica que estamos vivenciando hoje: se o Brasil vai escolher continuar e aprofundar a sua barbárie ou se vamos produzir um novo pacto social, escutando todos aqueles que sempre estiveram de fora ou fizeram parte do pacto com seus corpos violentados.

Avanços

É preciso olhar a trajetória do movimento negro, as legislações que se conseguiu aprovar para enfrentar o racismo, como a lei que prevê o estudo da cultura afro e das diásporas africana e indígena nas escolas, aprovada em 2008, para resgatar a contribuição destes povos para a formação brasileira.

: : Conheça, colabore, com nosso projeto PN Educação, do qual este artigo faz parte, com propostas de conteúdo para atividades didáticas.

Mas não bastam leis. É preciso investir na formação de profissionais, engajamento do poder público, incentivando a sua aplicação.

Outra questão é garantir pessoas negras em espaços de decisão no Brasil para reconstrução de debates sobre o nosso passado. E já temos os quadros que se formaram, oriundos da lei de cotas raciais nas universidades.

E é preciso, ainda, “barrar a destruição do presente”, destaca Marcos Queiroz. “Não adianta ir para escola ensinar sobre escravidão, colonialismo e resistência negra, se a cada 23 minutos morre um jovem negro no Brasil. O debate do passado sem discutir as condições presentes, materiais, de vida da população negra, tem um limite. Não adianta de nada se a população negra continua sendo chacinada”.

E Marcos Queiroz encerra a entrevista com um esclarecimento, casa haja dúvidas:

“Olhar criticamente o passado não é apenas uma questão de acerto de contas, de deleite pessoal, de revelação pessoal, é uma questão de se reconstruir, visando a reconstrução da sociedade em que vivemos. A memória individual nos ajuda a emancipar a nossa subjetividade, mas também estabelece compromissos com o futuro”.

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* Texto construído a partir de entrevista dos repórteres Natália Silva e Victor Lacombe para o podcast Café da manhã, da Folha de S.Paulo, intitulado “O que foi (e o que não foi) a escravidão no Brasil”, no ar em de 19/11/2021 + livro “Escravidão”, do escritor e jornalista Laurentino Gomes, escritor e jornalista e outros pensares da Redação.

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