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Haiti, o preço do pioneirismo
Protesto próximo a casa oficial do primeiro ministro, em Porto Príncipe, Haiti, 7 de agosto de 2023 (Foto: Richard Pierrin/AFP)
Século XXI, o povo negro do primeiro e único país a conquistar a liberdade e a independência, há mais de 220 anos, ainda paga por sua ousadia.
O Haiti tem uma história recente de tragédias – naturais e construídas – que levam o país de 11,5 milhões de habitantes ao caos. É a terra que treme, os ventos que se deslocam em alta velocidade, epidemias, ocupações externas, missões humanitárias mal sucedidas…
O que este artigo responde:
- O Haiti é o país mais pobre do mundo por que é um país de negros?
- O que a questão racial tem a ver com a miséria do Haiti?
- Por que o Haiti é o país mais esquecido do planeta?
- O que aconteceu no Brasil na época da rebelião do Haiti?
- Qual é a história do Haiti?
- O que é haitianismo?
- Qual a influência dos EUA no Haiti?
- Qual a ajuda do Brasil para o Haiti?
EDUCAÇÃO PARA ALÉM DA ESCOLA
Em 2010, por exemplo, ano em que a missão das Nações Unidas se preparava para deixar o Haiti, um terremoto e um furacão atingiram a ilha do Caribe, deixando 220 mil mortos, 1,5 milhão de desabrigados e praticamente metade da população em situação de insegurança alimentar aguda.
Na primeira metade de 2024, grupos armados ameaçaram uma guerra civil e exigiram a renúncia do primeiro-ministro Ariel Henry. O líder da aliança dos grupos armados – que muitos classificam como gangues – afirma que é o povo do Haiti quem deve escolher quem vai liderá-lo.
Nada mais justo. Ariel Henry, quando assumiu o poder em julho de 2021 – depois do assassinato do presidente Jovenel Moïse -, prometeu convocar eleições e não o fez. Ele não queria deixar o poder. Sua renúncia acontece em 12 de março de 2024, depois de ser impedido de voltar ao país, após uma viagem ao Quênia, em busca de ajuda das forças de segurança.
Quanto ao cenário na ilha, permanece o mesmo dos últimos três anos: grupos armados, em 80% das ruas na capital Porto Príncipe, incluindo o aeroporto; instabilidade política; metade da população assolada pela fome, pela violência generalizada e ausência de liderança.
A perspectiva de uma operação de intervenção internacional está cada vez mais distante. Uma nova missão foi autorizada pelo Conselho de Segurança da ONU – Organização das Nações Unidas em outubro de 2023, mas nenhum país se ofereceu para liderar.
Ao mesmo tempo, a história registra que missões da ONU nem sempre são totalmente humanitárias. Em outras palavras, ajuda internacional não é sinônimo de paz.
Efeito americano
O Haiti, ao longo do século XX, teve de lutar contra o legado da ocupação norte-americana, de 1915 a 1934. Uma ocupação que não fez bem ao país – de acordo João Fernando Finazzi, doutor em Relações Internacionais e pesquisador da história haitiana -, pois extinguiu o exército nativo, substituindo-o por um exército nos moldes dos EUA, armamentista e ditatorial.
A influência americana contra a estabilidade do Haiti também se evidencia em 1991, quando de um golpe militar promovido por pessoas do exército haitiano. “Depois se descobriu que boa parte dessas pessoas estava na lista de pagamentos da CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos”, lembra Finazzi.
Como se não bastasse, em 1994, os mesmos EUA lideraram uma intervenção com 20 mil fuzileiros navais para reconduzir o presidente Jean-Bertrand Aristide, deposto da Presidência, e continuaram no país alguns anos, ainda, equipando e treinando policiais e juízes.
A mão estendida
A partir dos anos 1990, a ilha passa a ser alvo de uma série de atuações de organizações não governamentais internacionais, as chamadas ONGs, diante de um quadro de desigualdade e miséria profunda.
Mas, se de um lado, as ONGs vão ao país para ajudar a população; de outro, assumem papel de Estado, o que torna o país cada vez mais dependente de ajuda externa.
No centro da situação do Haiti – diagnostica Jake Johnston, que estuda o Haiti para o Centro de Pesquisa Econômica e Política de Washington D.C – está um contrato social quebrado, um Estado que não é responsável ou não representa a própria população:
“Nos últimos 30 anos, assistimos à externalização do Estado haitiano. Mesmo antes do terremoto de 2010, 80% dos serviços públicos eram controlados por organizações sem fins lucrativos, igrejas, bancos de desenvolvimento e setor privado. O Estado não está presente na vida das pessoas. A segurança foi terceirizada para tropas estrangeiras. Até as eleições foram financiadas, concebidas e, em última análise, legitimadas, por intervenção externa”.
Gangues políticas?
O pesquisador João Finazzi também vê, na ajuda internacional, uma estratégia política, para perpetuar problemas e criar mecanismos de dependência. E Jake Johnston complementa o seu ponto de vista:
“As políticas implementadas por atores estrangeiros, como as Nações Unidas, com a ajuda de uma ‘elite local’, deslocaram o Estado haitiano, deixando o país em instabilidade contínua. E o cidadão comum do país tem muito pouco a ver com isso, embora seja o mais afetado”.
A violência estrutural infligida à grande maioria da população é resultado da quebra do contrato social – um povo sem água potável, sem eletricidade, sem acesso à educação, aos serviços de saúde e aos serviços básicos em geral, sistematicamente excluídos dos processos políticos. Essa dinâmica é o que alimenta esses grupos armados.
“Boa parte dos grupos armados do país, também, tem vínculos diretos com membros da elite política econômica haitiana e estrangeira, ligados à economia global e às cadeias de abastecimento dos Estados Unidos”, denuncia João Finazzi. E eles estão cada vez mais unidos!
Um ditado popular no país resume bem a situação:
“Há gangsters de sandálias e gangsters de gravata.”
Missões humanitárias
O Haiti é território marcado pelo fracasso de missões humanitárias.
Em 2004, uma briga entre grupos armados justificou a ida de uma missão de paz da ONU para a ilha do Caribe, a Minustah – Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti, liderada pelo Brasil.
Na época, o Brasil enviou 37 mil militares. O país estava à beira de uma guerra civil. O então presidente Jean Bertrand Aristide havia sido expulso por uma população revoltada com a crise econômica. Gangues e milícias disputavam o poder em confrontos violentos, em uma situação muito parecida à de 2024!
Ao final de 13 anos, a Minustah saiu do Haiti alardeando um falso sucesso! Hoje se sabe que não foi bem assim, comenta Finazzi:
“A missão teve as suas conquistas. Alguns grupos armados foram contidos. Aconteceu a promoção de acordos de paz. Mas houve, também, uma série de problemas para o povo haitiano”.
Minustah, o legado
O brasileiro Neno Garbers, que há 12 anos vive e estuda o país, em entrevista à jornalista Natuza Nery no podcast O Assunto, afirma que o país “ficou mais esquecido depois da saída da missão de paz da ONU” e é cirúrgico na sua avaliação:
“A missão deixou uma bomba relógio no país e saiu”.
De acordo com Neno, a maioria dos investimentos foi na área bélica. Não se pensou em reinserção das pessoas na sociedade:
“O foco era o desarmamento, a desarticulação das gangues e a estruturação da polícia nacional. Só que o investimento, durante 13 anos, não chegou a 10% na polícia nacional”.
Os gastos do Brasil com a Missão ultrapassaram R$1,9 bilhão, segundo resposta do Ministério da Defesa a requerimento apresentado pelo jornal O Estado de S. Paulo sob a Lei de Acesso à Informação.
O terror
“Tiveram casos de violência sexual promovida por soldados da Minustah, que não foram investigados… Casos de cólera, introduzidos no Haiti por tropas nepalesas” – detalha João Finazzi.
A liderança brasileira, no início, não queria se engajar em ações armadas mais intensas. Mas a resistência se dissipa a partir de 2005, quando é criada a operação “Punho de Aço”, comandada pelo general Augusto Heleno Ribeiro, chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência no Governo Bolsonaro (2019-2023).
Os excessos cometidos pelo Exército brasileiro se referem a ações a tiros a esmo de helicóptero, civis mortos durante troca de tiros entre soldados e gangues … – situação muito “familiar” em território nacional.
Um dos casos mais controversos aconteceu em 6 de julho de 2005: 440 militares invadem a favela de Cité Soleil, uma das principais da capital; mil militares bloqueiam os principais acessos, deixando um saldo de sete horas de batalha, 22 mil disparos e 60 civis mortos.
O passado no presente
O Haiti consegue a sua independência com a única revolta bem sucedida de pessoas escravizadas na América e vence também o exército de Napoleão Bonaparte! Como um país que tem essa história, se torna tão dependente de ajuda externa?…
João Finazzi responde:
“O Haiti, até hoje, paga o preço por essa rebeldia… Logo que a revolução se consolida, é condenado ao ostracismo internacional”.
É um fato histórico, notável, primeiro e único da história moderna: uma rebelião de escravizados bem sucedida expulsa os colonos e conquista, ao mesmo tempo, liberdade e independência política. Mas, na época, as notícias sobre essa revolução vitoriosa foram abafadas.
O sucesso da rebelião gera um fenômeno que fica conhecido como “haitianismo”: o medo que surgiu entre as elites das colônias europeias de que uma onda de rebeliões ecloda no mundo.
O medo dos escravocratas era de que os escravizados na Europa e nas Américas se sentissem motivados a fazer o mesmo – o que aconteceu na Jamaica, em 1831, e no Brasil, em 1835, com os malês.
No Brasil, inclusive, o pavor de uma rebelião negra fez aprovar uma lei, em 1835, determinando que todos os africanos e descendentes suspeitos de se envolverem com revoltas fossem condenados à morte ou exilados para a África.
Leia o artigo Felicidade Guerreira das rebeliões negras, sobre a Revolta dos Malês e o retorno dos rebelados à África.
“Há 200 anos o mundo tem medo do impacto da revolução haitiana. O que se tem visto ao longo da história do Haiti é a resistência do seu povo. Resistência aos modelos econômicos dominantes, às potências imperialistas do mundo. E o Haiti é punido por essa resistência.” (confirma o economista Jake Johnston)
Os Estados Unidos se mantêm deliberadamente cegos sobre a real situação do Haiti para dar vazão às suas ambições, à sua sede de controle político. E esconder a responsabilidade na criação da realidade que existe na ilha é de extrema importância para os políticos americanos. Até porque a conta chega para eles cada vez que um imigrante chega à fronteira.
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Outro dado da realidade é que o Haiti não foi reconhecido diplomaticamente pelas grandes potências da época, lá em 1804 – a França demorou 20 anos para reconhecer a ilha como Estado e só o fez a partir do momento em que exige que se pague uma indenização!?
Hoje, de acordo com cálculos do jornal New York Times tal indenização seria equivalente a quatro vezes o PIB do Haiti, uma quantia enorme, que o país demorou mais de um século para pagar.
Perguntas que ficam:
- E quanto à indenização das vidas negras roubadas de África?
- E quanto à indenização pelo trabalho escravo que garantiu a riqueza das grandes potências?
- Quanto custa a vida de uma pessoa raptada, traficada, vítima de toda sorte de maus tratos?…
É a mesma lógica – insana – da carta de alforria…
Conheça essa história em detalhes no artigo Haiti, a primeira e única revolução negra gloriosa por independência e liberdade.
Soluções haitianas
O brasileiro Neno Garbers, há 12 anos no país, comenta sobre a força da micropolítica do Haiti com redes de solidariedade potentes, grupos de brigada em várias regiões para se defender das gangues…
O que confirma a tese de Jake Johnston, sobre os haitianos apresentarem as soluções para os seus problemas:
“O apoio externo tem o efeito de minar os esforços de base.
A relação do Haiti com a ajuda humanitária deve ser alterada para que seja produtiva e sustentável a longo prazo. É preciso ouvir a sociedade, colaborar com ela e responder às suas necessidades”.
Na opinião do economista, existem duas questões principais que comprometem o enxergar soluções para o Haiti:
- A noção de Estado falido utilizada para justificar a crença, historicamente enraizada, de que o país não pode governar a si próprio.
- A promoção da ideia do “Estado dependente” com a intenção de explicar o que causou a situação atual.
Estas mentiras escamoteiam, escondem, a verdade e são capitaneadas pela política externa dos EUA, pelo colonialismo francês, pelas Nações Unidas e a longa história de intervenções internacionais.
Na prática: Quais são os efeitos a longo prazo de se importar todos os alimentos doados em vez de adquiri-los localmente?
Jake Johnston dá um exemplo:
“Prejudicar os agricultores locais ao colocá-los fora do mercado. E com isso contribuir para a migração do campo para a cidade que provoca superpopulação na capital, espalhando um estilo de vida e até obrigando esses trabalhadores a deixarem o país”.
Vários grupos no Haiti, durante os últimos dois anos, pediram que se criasse um conselho de transição. Alertaram que a violência estava aumentando. Teria sido muito mais fácil abordar o assunto se esses pedidos tivessem sido ouvidos, comenta Johnston:
“Se os haitianos se unirem e criarem uma nova estrutura governamental, qualquer ajuda externa será como eles a definirem”.
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Fontes: Wikipédia, BBC, Exame, O Sul, Spotify – O Assunto
Escrito em 20 de março de 2024
Escrever, para mim, é um ato político. Não por acaso, desde os 11 anos, queria ser Jornalista. Depois de muitos anos somei ao jornalismo a Educomunicação, com especialização em Gênero e Sexualidade. Idealizadora do primeirosnegros.com, cresço, dia a dia, gestando edições, artigos, pensares. Em essência, sou alguém que busca conexões espirituais, vivências…Leitora voraz, amante da escrita própria e da escrita alheia, louca por palavras e seus significados mais profundos. Assim estou na vida, gota, escorrendo livre pelos caminhos.
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