Ativista, formadora de opinião, fez a revolução dos cabelos e das sapatilhas. Representatividade importa e ela é a primeira bailarina – posto mais alto em uma companhia de ballet – do histórico Dance Theatre of Harlem, em Nova York, Estados Unidos, a primeira bailarina negra brasileira a ter seu cabelo natural estampado na capa da revista americana Pointe, especializada em dança.
O que este artigo responde: Quem é Ingrid Silva? Por que Ingrid Silva é importante na dança? Como é ser uma bailarina negra? Qual é o impacto das sapatilhas cor da pele na dança? O que são as sapatilhas cor da pele? Como as sapatilhas cor da pele beneficiaram Ingrid Silva? Além de suas realizações na dança, o que mais Ingrid Silva fez? Qual o pioneirismo de Ingrid Silva? Ingrid Silva é ativista?
Novembro de 1988
Nasce Ingrid dos Santos Oliveira Silva, na zona norte do Rio de Janeiro, filha mais velha de Maureny dos Santos Oliveira e Cláudio Santos da Silva. É dia 24.
1996
A garota Ingrid, 8 anos, tem seu primeiro contato oficial com o balé na Vila Olímpica da Mangueira, onde pratica esportes e coloca sapatilhas para participar do projeto Dançando para não Dançar.
E não para mais…
Conquista bolsas integrais na Escola de Danças Maria Olenewa e no Centro de Movimento Deborah Colker. Aos 17 anos, após audição para o Grupo Corpo, é convidada convite para a estagiar na companhia.
Verão de 2007
De volta ao Dançando para não Dançar, tem a oportunidade de dançar para Bethânia Gomes – primeira bailarina do Dance Theatre of Harlem -, em visita ao projeto.
Ao perceber o talento de Ingrid, Bethânia sugere que enviem um vídeo dela para a seleção de alunos do curso intensivo de verão no Dancing Through Barriers, em nova York – em português “Dançando Através de Barreiras”, escola de balé de um renomado programa americano de educação artística e engajamento comunitário.
Vídeo feito, enviado e vaga conquistada – “200 meninas fizeram o teste, só eu não fiz pessoalmente, mas fui escolhida”, orgulha-se Ingrid.
Janeiro de 2008
Tem início a jornada da bailarina negra nos Estados Unidos da América. Ela faz os três meses de curso, participa de uma audição presencial com o coreógrafo Arthur Micthell – primeiro bailarino afro-americano do New York City Ballet -, fundador do Dance Theatre of Harlem, e é convidada a integrar o corpo de baile do Dance Theatre of Harlem’s Dancing Through Barries Ensemble, a companhia jovem da instituição.
2012
Com a entrada de Virginia Johnson – um ícone da dança clássica na América e uma das primeiras bailarinas negras nos Estados Unidos – como nova diretora artística do Dance Theatre of Harlem, Ingrid é escolhida para compor a nova formação oficial do corpo de baile da companhia.
2014
Ingrid Silva torna-se a primeira bailarina da instituição, o posto mais alto em uma companhia de ballet.
Junho de 2017
A Pointe Magazine, especializada em balé e uma das maiores revistas de dança no mundo, estampa na capa a foto da primeira negra, bailarina, brasileira, com seu cabelo natural.
Mas voltemos ao Rio, onde começa essa história…
Dona Maureny, mãe de Ingrid, sempre cuidou de ocupar os dias de seus filhos, para que não ficassem brincando na rua. Daí, todos terem crescido no projeto social da Vila Olímpica da Mangueira, praticando esportes variados.
Nesta época, criança, Ingrid já imitava os passos quando via uma bailarina na televisão. “Ela ficava na pontinha do pé, segurando em móveis”, lembra Maureny, que decidiu colocá-la para dançar, como contou em entrevista para o podcast Negra Voz.
A mãe, que plantava arroz no Espírito Santos, se quer poderia imaginar que, passados pouco mais dez anos, sua filha seguiria os mesmos passos de muitos bailarinos clássicos negros, como a também carioca Mercedes Baptista – a primeira bailarina negra a integrar o corpo de balé do Teatro Municipal do Rio de Janeiro.
Esta outra bailarina pioneira, certa vez, em entrevista, lembrou de seus tempos de Municipal, uma experiência forjada no racismo:
“Eu me vi de repente excluída de tudo. Nem que pusesse um capacho cobrindo meu rosto me deixavam pisar em cena. Só uma vez atravessei o palco usando sapatilhas de pontas e, ainda assim, lá no fundo.”
Como de nada adiantou ela participar e ser aprovada naquele concurso dificílimo, também a convite, partiu para os Estados Unidos.
Na outra América
Em Nova York, Ingrid teve de se reinventar a cada dia para não desistir. Ela não estava preparada para enfrentar o frio nem a xenofobia, o preconceito contra estrangeiros.
Mas o pior foi não falar inglês – a sua comunicação com os professores era impossível. Ela sabia todas as coreografias, mas sempre dançava atrás. E ainda foi vítima de um episódio de assédio sexual.
Sua rotina – além de trabalhar para o próprio sustento -, além de tudo, incluía um tratamento especial com as suas sapatilhas de ponta, um processo conhecido como “pancaking”. Isso porque a maioria das marcas só oferecia opções de sapatilha para pessoas de pele clara, tons claros.
“Quando era criança e chorava, as professoras brigavam comigo, meu pai ficava preocupado e dizia para eu parar de dançar. Seria mais fácil. Mas eu sempre encontrava uma maneira de sofrer menos, não queria parar”, disse Ingrid, em entrevista à revista Marie Claire.
“Mas, em Nova York, pensava quase todos os dias em jogar tudo para o alto, me sentia sozinha. Mas minha mãe, que é durona, dizia:
‘Aqui não tem nada para você, seu destino está ai!’.”
Ingrid encontrou o que chama de “mecanismos para amadurecer” – aprendeu a “pegar mais leve” consigo mesma. Não fez terapia, mas está no seus planos estudar psicologia para ajudar outros bailarinos a segurar a pressão.
Nos palcos
Uma vez envolvida no Dance Theatre of Harlem, passo a passo, com esforço, Ingrid vai colecionando histórias e solos, papéis principais, em espetáculos de dança, em suas cinco temporadas com a companhia.
Mas ainda há muito a conquistar, como projetou na entrevista ao Negra Voz:
“Eu gostaria de dançar não só com a minha companhia, mas em lugares em que não se veem bailarinas negras… Todo mundo tem que sair daqui e ir pra algum lugar, porque o Brasil não vê a mulher negra como bailarina clássica.”
Como artista convidada, Ingrid já se apresentou com o Dançando Para Não Dançar, no Brasil; Armitage Gone! Dance e Francesca Harper Project, nos EUA. E trabalhou com coreógrafos renomados como Arthur Mitchell, Donald Byrd, John Alleyne, Darrel Grand Moltrie, Francesca Harper, Robert Garland, David Fernandez, Carol Arrmitage, Deborah Colker e Rodrigo Pederneiras.
Jornada da rainha
Em 2017, Ingrid assume o posto de embaixadora da marca Activia na campanha Journey to your Dream, que conta a sua trajetória de superação no mundo do balé. A campanha ganhou diversos prêmios internacionais.
“Eu sempre achei que a dança era um sonho meu e, agora, eu estou muito feliz de poder compartilhar um pouco da minha vida e do meu mundo com você. A dança realmente mudou a minha vida.”
Ingrid, também, foi escolhida pela cantora americana Alicia Keys para estrelar a campanha She Is a King – propaganda realizada para a venda de uma jaqueta que celebra personagens femininos com histórias de fibra e superação.
No vídeo, Ingrid percorre as ruas de Nova York nas pontas dos pés e vestindo a clássica roupa de bailarina. Ao encontrar Ingrid em uma escadaria, Alicia Keys repassa a jaqueta que traz os dizeres “She is a King” para Ingrid, que segue andando pela cidade e, em seguida, repassa a jaqueta mais uma vez para uma mãe que brinca com a filha em um parque.
Em 2020, Ingrid é uma das estrelas da campanha da Nike sobre a urgência de todos terem as mesmas oportunidades – um vídeo gravado dentro de um teatro em que ela divide cena com outro dançarino negro, Alex. A narração é de Serena Williams, que a chama de “menina prodígio”.
Na época, ela disse:
“Sempre quis ser médica… mas a dança foi mais forte e acabou me conquistando. É uma responsabilidade imensa porque pela primeira vez uma bailarina negra está em uma campanha da Nike. Eu já estou fazendo história e abrindo caminhos!”
E, em tempos de pandemia, Ingrid segue fazendo história, se apresentando para arrecadação de fundos, em resposta ao impacto da pandemia de coronavírus na comunidade da dança.
Dança que a levou à Jamaica e a Honduras, em 2014, como embaixadora cultural para os Estados Unidos, participando de workshops.
Ingrid aparece no filme Maré, Nossa História de Amor, de 2007.
Projetos pessoais
Fora do balé, Ingrid aproveita sua posição de destaque à frente a companhia de dança americana para criar movimentos de inclusão e representatividade.
Ela é cofundadora da plataforma EmpowHerNY que, desde 2018, conecta diferentes mulheres para que troquem experiências, façam descobertas, contem suas histórias, inventem e se reinventem.
“É uma plataforma global para mulheres que visa o empoderamento feminino. As pessoas falam: ‘vou dar voz à mulher’. Não, cada uma tem a sua voz. A gente só precisa de veículos que nos escutem e nos ajudem a nos conectar com o outro. O EmpowHer New York veio para isso. Sempre achei que era muito importante criar um espaço em que nos sentíssemos seguras, em que inspirássemos umas às outras, em que tivéssemos oportunidades.”
Nos últimos anos, Ingrid também tem-se destacado por seu ativismo contra o racismo no universo da dança. Em 20 de março de 2020, junto com os amigos, também bailarinos, Fábio Mariano e Ruan Galdino, lançou o @BlacksinBallet, plataforma social digital, para criar um ambiente inclusivo para bailarinos.
“O Blacks in Ballet é a primeira plataforma online que traz visibilidade para bailarinos clássicos globalmente, de várias etnias e lugares. Falamos sobre presente, passado e futuro, e discutimos vários tópicos… Temos um grande apoio dos profissionais de dança e uma grande demanda. Nosso intuito é criar cursos de verão, bolsas de estudo, para que essas pessoas tenham oportunidades em outros países, de irem para outros lugares, aperfeiçoarem seus trabalhos”, projeta.
Em 2018, em entrevista à revista Claudia, a bailarina denunciou a dificuldade que as companhias de dançam têm de se abrir para a diversidade. Passados mais de dois anos, ela reconhece que houve avanços, mas – na sua avaliação – tudo acontece muito lentamente, ainda.
Sapatilhas cor da pele
Um exemplo do ritmo das conquistas para bailarinos negros e negras são as sapatilhas, instrumento de trabalho. Ingrid – e outras que têm a cor da pele parecida, semelhante, próxima à sua – gastam muitos doze dólares ao longo da vida profissional para pintar suas sapatilhas de marrom ou bronze, a cor da pele negra:
“Eu demorei um ano e pouco conversando com a marca que eu uso, para que a customizassem para mim. Eles foram bem resistentes porque disseram que não tinha mercado para isso, mas eu sou consumidora há mais de 12 anos. Uso a mesma sapatilha porque não é como sapato, quando você acha uma (marca) boa é essa mesmo para o resto da vida.”
Ela venceu na negociação. Mas a empresa customizou a sapatilha só para ela. Quer dizer – e a conclusão é de Ingrid -, “o resto do mundo não tem acesso! E isso é problema porque tem mercado, tem procura, mas eles acreditam que não existe essa diversidade”.
Look pensado
No Dance Theatre of Harlem, o ativista e coreógrafo Arthur Mitchell , desde que fundou a companhia em 1969, estabeleceu o uso de sapatilhas cor da pele:
“No balé clássico, as bailarinas usam meia-calça e sapatilha cor de rosa para criar uma linha contínua na silhueta. Quando cheguei a Nova York, via que as meninas da companhia pintavam as sapatilhas de marrom. Arthur Mitchell entendia que a meia e a sapatilha rosa cortavam a silhueta das negras ao meio. Então incentivou os bailarinos a usar a cor exata de suas peles”, conta Ingrid que, ao chegar, simplesmente adicionou esta imposição à sua rotina.
Mas quando postava sobre pintar as sapatilhas, na verdade, ela estava fazendo política, lançando a pergunta: Por que ninguém fez uma sapatilha para negros até hoje?! Muita gente não sabe, mas a combinação sapatilha rosa e meia rosa foi criada por o balé ser uma arte elitista .
Misty Copeland – primeira bailarina da história da ópera de New York -, no programa The Today Show , chegou a comentar que “comprar sapatos que vêm em apenas uma cor, ‘rosa europeu’, diz muito sobre a falta de diversidade histórica do balé e envia uma mensagem subjacente aos jovens bailarinos”.
Primeiro passo
A primeira sapatilha de ponta que combinasse minimamente com a pele negra começou a ser produzida em larga escala só no ano de 2017, pela marca Gaynor Minden. Como os registros das primeiras sapatilhas de ponta da história datam de 1820, isso significa que levou quase 200 anos para que as bailarinas negras tivessem um modelo pensado para elas.
Mais recentemente a Freed of London anunciou a sua colaboração com a BalletBlack para criar as primeiras sapatilhas de ponta de diversos tons de pele no Reino Unido.
É, a ideia ganhou visibilidade, virou notícia, mas que o mercado não pense que está tudo bem, que não precisa fazer mais nada – avisa Ingrid:
“É a mesma coisa que achar que todos os negros são iguais. As tonalidades disponíveis (três ou quatro) não funcionam para todo mundo. Isso sem falar que cada bailarina usa uma marca diferente. Existem 30 grandes marcas de sapatilhas espalhadas pelo mundo e só duas estão dando voz à diversidade. Ótimo, primeiro passo”.
“Falta aumentar a gama de tons. Falta incluir as meias-calças cor de pele. Falta muitas marcas aderirem. Falta investimento. Falta pesquisa” – enumera. “Eles acham que não existe consumidor negro. O mundo da dança é muito diverso, e é melhor que todos se acostumem com isso”.
“Tem de ser como a linha de maquiagem da Rihanna, Fenty Beauty, que revolucionou o mercado de beleza nos últimos anos. Eles estudaram, investiram, criaram 60 cores de base, com diferentes tons de fundo e estão sendo copiados por todo mundo”, compara.
As sapatilhas de Ingrid, as da época em que ela mesma as pintava, desde setembro de 2020, fazem parte do acervo do Museu Nacional de Arte Africana Smithsonian, nos Estados Unidos.
Click final
I – “Coloca esse bumbum pra dentro.”
II – “Eu não acho que o corpo negro é um corpo para balé.”
III – “Cabelo de preto não combina com dança.”
Estas são algumas das inverdades que negros e negras que querem mostrar a arte da dança, da vida, da liberdade, com seus corpos, escutam à exaustão e, muitas vezes, até que desistam do sonho.
O “defeituoso” biotipo negro que não se encaixa na dança – negros são muito pesados para o ballet (?!) – e a cultura negra que não cruza com a leveza eurocêntrica que a atividade exige – danças africanas são tão brutas (?I) – estão entre as absurdas justificativas.
Ingrid acredita que se suas professoras tivessem se comportado assim com ela, talvez estivesse no balé contemporâneo, que é o que acontece com a maior parte dos dançarinos. O curioso é que seu ativismo começa na sua identidade visual.
Quando pequena, ela nunca teve oportunidade de usar o seu cabelo natural, mas em Nova York, começou a pensar em transição capilar. Depois, fez um corte, deixou o cabelo crescer e “redescobri a minha identidade e negritude”, lembra.
“No Brasil, nem sabia o que era isso. Não por viver em uma bolha, mas porque não tinha muita representatividade à minha volta. Sempre existiu racismo, eu sabia o que era, mas não tinha achado a minha própria voz. Depois que tive a mudança visual, deu um click, era o momento de falar, me posicionar.”
“No Brasil, as pessoas falam coisas ofensivas como brincadeira, e não são. É difícil perceber quando estamos sendo discriminados. Obviamente sempre soube que era a única negra da sala. Depois que cheguei aos Estados Unidos mudei, porque as pessoas aqui são incansáveis, brigam constantemente por respeito.”
A reação de algumas pessoas não foi boa. Muitos não gostaram, mas ela se impôs, virou referência e, hoje, mesmo no palco, pode posar de rainha com seu cabelo black power, tranças, do jeito quequiser. É conquista do seu talento, do vigor da sua dança, da sua ancestralidade, de seus movimentos alongados e precisos.
Entre quatro paredes
Ingrid está casada há dez anos. Seu marido, Fernando, é brasileiro – mas eles se conheceram nos EUA e, desde setembro de 2020, estão grávidos.
Leia o depoimento de Ingrid Silva em Resistência na Ponta dos Pés, no Sem Mordaça.
Fontes: Revista Cláudia, Ingrid , Wikipédia, Glamurama, El País, Super Interessante, Hypeness, Pointe Magazine
Bela reportagem. Adorei.
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