Sistema de equilíbrio da realidade, águas primordiais, ética, justiça, sabedoria, o feminino para além do gênero, princípio vital
O que este artigo responde: Quem é Maat? Qual é a origem da vida? Qual é a base da ciência espiritual africana? Quem é a deusa da Justiça? Qual é a diferença entre Maat e Isis? O que representa a pena de Maat? Onde aparece a representação da pena de Maat?
Qual é a origem da vida?
Qual a origem da existência?
Os africanos são os primeiros seres vivos a responder estas questões.
E a resposta é o FEMININO, é MAAT.
Maat é a origem da vida. Nascemos com o coração de Maat, que é dado na gestação, pela gota de sangue da nossa mãe. Lá, estão todas as formas de concepção de mundo.
Maat é a experiência da própria existência. É o oceano cósmico, o princípio criativo, de tudo e de todas as coisas.
Ela é a base da ciência espiritual africana, a ordem cósmica divina – vida, natureza, herança espiritual, o todo. Não é uma ideia racional, mas o sentir-equilibrar-percorrer. Por isso, o coração é o elemento fundamental de Maat.
Deusa da ética, da retidão, da verdade e da justiça – em oposição ao pensamento colonial – , ela entende que o coração deve ser mais leve que uma pena…
Na sua representação, carrega uma pena de avestruz no seu ori (cabeça), que mede nossa conexão matéria-espírito – uma referência aos sentimentos que devemos guardar na alma. Maat ou Ma’at foi encontrada pela primeira vez em Kemet, no antigo Egito. E é uma deusa preta, uma jovem deusa preta, o feminino na sua pulsão pura.
Princípio vital
Maat não tem a ver com identidade de gênero, sexo biológico. Não é homem nem mulher, é um princípio, é a garantia de continuidade, o estabilizador do mundo, o sacro poder que fertiliza tudo.
Útero mítico, oceano cósmico, águas matriciais, gera a si mesmo e as suas continuidades. Tudo é uma coisa só – indivíduo e cosmos. Tudo faz parte, tudo é em si. Tudo é incluso. O ser é o todo. O todo é o ser. Logo, somos Maat e ela é o nosso coração cósmico.
Do ponto de vista original, africano, é impossível dissociar a concepção do ser da realidade espiritual. Tudo que existe está relacionado: somos a própria experiência acontecendo de forma constante. Somos seres interconectados com o todo.
Gestar
O verbo de Maat é gestar. Ela gesta o Cosmos, o mundo, a natureza e doa às mulheres o elemento feminino capaz de gestar os filhos na materialidade. E é permanente o processo de gestar a continuidade, para além de parir crianças.
A reflexão africana sobre a concepção do ser parte de uma realidade composta de duas realidades complementares: útero cósmico se refere à energia do feminino (não ao útero biológico), de gerir, de gestão, de permanência, continuidade. Não tem a ver com ser mulher.
A perspectiva africana inclui, ainda, ressignificar o que existe. Nós aprendemos vivendo e não sendo estudados como coisas. Trata-se de presença, sentimento, conexão, integração, coletividade no lugar da individualidade como propõe a sociedade ocidental.
Pessoa
Ser mulher é uma invenção – leia o artigo Educar africano. A feminilidade perpassa o ser humano. Todos somos espiritualidade e a espiritualidade é a dimensão real que impacta a realidade física e vice-versa. Toda a forma de pensar passa pelo coração.
René Descartes, considerado “pai da filosofia moderna”, lançou a ideia – abraçada pelo Ocidente – de que só podemos ter certeza de que existimos porque somos capazes de pensar. Ou seja, que para ser racional, é preciso ser desconectado do espírito. E resumiu sua tese com a frase: “Penso, logo existo”.
Só que razão com consciência + espírito + coração – como ensinam as filosofias africanas – é o que conta da nossa existência como ser integral. A racionalidade não dimensiona quem somos.
E mais: não precisamos de religiosidade para viver nossa espiritualidade. O tempo todo somos espíritos. O ser em si é o espírito. Pensar é sentir. Nós somos a experiência do sentir.
Para as filosofias africanas, não se pode separar pensamento de emoção. Ambos estão necessariamente conectados. É daí que obtemos conhecimento. Razão e emoção, juntas, nos dão o entendimento intuitivo das coisas.
“Cada um é o microcosmo do Universo. O Universo existe em nós. Estudando e conhecendo a si mesmo, você conhece o Universo.”
(Marimba Ani, antropóloga, mais conhecida por sua obra Yurugu, uma crítica abrangente da cultura e pensamento europeus)
Mãe cósmica
A palavra ‘mãe’ surge da raiz ‘ma’, de Maat, mãe cósmica. Matrigestão é a perspectiva do feminino como um sistema organizativo para pensar a realidade do mundo não a partir do pátrio poder, do poder masculino. A cultura da África é matrifocal, matrigestora, matricentralizadora. E esse “matri” – vale insistir – não advém de mãe, mas de Maat.
Para a deusa, existem duas estradas a serem percorridas pela humanidade: aquela dos que procuram viver Maat, em conexão ancestral, e dos que vivem as paixões mundanas.
A noção de terra integrada vem de Maat, como sinônimo de verdade, justiça, retidão, ordem, equilíbrio, harmonia, reciprocidade. Mas é também algo muito mais amplo e multifacetado: é uma ética em conformidade com o cosmos. Maat é a representação suprema da ordem divina na Terra, equilíbrio não simétrico, princípio da complementaridade.
Isis não é Maat
Que não se confunda Maat com Isis, as duas são deusas africanas, têm representação parecida – com suas asas abertas -, mas papéis bem diferentes nas filosofias africanas.
Isis tem o chifre de uma vaca – animal sagrado para os keméticos, os antigos egípcios – e, no meio dele, um sol, referência ao primeiro deus, o deus Rá. Ela é a deusa da fertilidade, enquanto Maat, com sua pena na cabeça, é a deusa da justiça tem a pena da justiça.
Os keméticos acreditam no Juízo Final e na Vida Eterna e a pena da justiça de Maat aparece no papiro do Juízo Final, que traz a representação do coração de um morto colocado de um lado da balança e da pena de Maat no outro. A lógica é simples: se a pena da Justiça pesar mais que o coração, quer dizer que a pessoa foi boa em vida e irá para o mundo de Osiris, da Vida Eterna. Se o coração pesar mais, significa que a pessoa não foi muito boa e não viverá para sempre.
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Fonte: Curso Filosofias Africanas – Ajeum Filosófico, aula Feminino, Humanidade e Meio Ambiente em África, com a filósofa Katiúscia Ribeiro e a socióloga Sonia Abike; Marimba Ani e a Visão Africana do Mundo, Afrike, Bárbara Carine – Instagram
Escrito em outubro de 2023. Atualizado em 19 de agosto de 2024
Que maravilhosa escrita.
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Material mutissimo significativo. Grato.