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Mulheres Matriz

Estrategistas na luta por liberdade

Por Sonia Abike Ribeiro

Mulheres na comunidade do Kabiria, onde são protagonistas  (Imagem: Katiane Bispo)

“Temos evidências nítidas de que organizações gestadas por mulheres e  homens  – e cuidadas por mulheres – formam espaços de preservação ancestral. E é delas, mulheres matricomunidades e  matricomunitárias, que surgem comunidades de terreiros e comunidades quilombolas.”

O assunto é matricomunidades: espaços constituídos por mulheres, para guardar o segredo sobre o sagrado para a manutenção da espiritualidade e da vida do povo preto em um momento de extremo controle, vigília e violação de direitos, o período da escravização.

O tema foi pesquisado, para trabalho acadêmico, pela socióloga Sonia Abike Ribeiro, apresentado na Universidade Federal do Vale do São Francisco (BA), em uma roda de conversa com as  mulheres da comunidade  que trabalhavam no entorno do Espaço Plural- Universidade,  apesar da resistência do meio, por seu estudo referenciar a oralidade – compreenda-se: escuta e cosmo percepção.

O artigo se baseia em entrevista da socióloga ao podcast  Conversa Afiada, em setembro de 2021. Foi lido e atualizado pela autora, que o assina.

Sonia Abike Ribeiro (Imagem: Divulgação)
Sonia Abike Ribeiro (Imagem: Divulgação)

A inspiração

As matricomunidades foram constituídas por pretas em parcerias com homens, que tinham maior mobilidade, mesmo cativas e cativos, e que, aproveitando de sua condição de “ livres”, criavam estratégias de resistência e permanência contra a escravização.

Entre elas, as chamadas “negras de ganho”, que vendiam quitutes nas ruas para fazer renda para sinhôs e sinhás; mulheres que trabalhavam nas grandes roças de cana de açúcar e viviam em senzalas; parteiras, responsáveis pelos nascimentos nas províncias que, assim, também sustentavam sinhôs e sinhás; escravizadas acompanhavam as sinhás em passeios e nas idas à igreja; mulheres reprodutoras…

Todas, mulheres pretas com uma vivência para além da casa grande e que, o tempo todo, buscavam contatar pretos e pretas nas senzalas, nos canaviais…

“O diálogo é o princípio da nossa existência.”

Aqualtune

A mãe de Ganga Zumba, Aqualtune, por exemplo, é a grande mentora, do Quilombo dos Palmares, que na sua criação é uma matricomunidade.

Aqualtune era uma escravizada reprodutora e “transitava” entre o sinhô, os sinhozinhos e os escravizados. Em outras palavras, era violada e violentada  na sua corporeidade para atender sexualmente a todos eles.

Nesse papel de ir-e-vir entre a senzala, a casa grande e as conhecidas como “casas de reprodução”, onde tinha de ficar à disposição dos homens -, Aqualtune concebeu atos revolucionários, como invasões a fazendas, insurgências e rotas de fuga – estudos indicam homens de sua confiança conheciam os caminhos para chegar até a Serra da Barriga, onde se instalou Palmares.

Aqualtune (Imagem: Reprodução)
Aqualtune (Imagem: Reprodução)

Mas, num primeiro momento, Aqualtune vai para Palmares com mais 40 mulheres e cria um espaço de acolhimento e cura para pretos e indígenas fugidos e brancos insatisfeitos com a coroa portuguesa.

Outras mulheres, que transitavam mais livremente, seguiram os passos de Aqualtune em ações semelhantes, fazendo surgir mais e mais matricomunidades.

Havia homens envolvidos na organização desses espaços, mas os cuidados principais ficavam sob responsabilidades das mulheres devido à sua maior mobilidade, inclusive por dentro da casa grande – várias escravizadas sabiam onde estava guardado o ouro, os alimentos,  as armas…

Segredo sagrado

Extremamente fechadas, as matricomunidades continham um embrião ancestral, espiritual, ao qual só tinham acesso mulheres pretas que guardavam o segredo sobre o sagrado para a manutenção da espiritualidade. Ao mesmo tempo, as matricomunidades eram o espaço de acolhimento, de cura, de cuidado, de alimento, de proteção e compreensão do ser escravizado.

Lá, as mulheres se recolhiam para parir suas filhas e  filhos que nasciam e aprendiam com as mais velhas e os mais velhos o compromisso de dar continuidade a todos os aprendizados, organizativos e espirituais, que as mulheres estavam gestando como princípio ancestral comunitário. Daí a expressão “embrião ancestral”.

Deste processo, Palmares e outros quilombos se constituem. Abdias do Nascimento afirma que onde havia um terreiro, nascia um quilombo.

Diferentes letramentos

Apesar de a expressão “letramento” ser um conceito construído pela branquitude, ela auxilia na explicação do que os povos africanos, escravizados, criaram em território nacional: uma comunicação criada pela cosmo percepção, muito além do que os olhos podem ver.

Quem guardou as cantigas para os orixás?

Alguém organizou um princípio, uma outra forma de comunicação – para além da palavra – e a catalogou pensando no futuro. E este conhecimento foi transmitido de geração em geração. 

Do silêncio ao tambor

A comunidade, forjada nos navios negreiros, usa signos, sinais…

Uma espada de São Jorge vira símbolo de comunicação, bem como uma batida de tambor, uma dança, o cheiro de uma comida…

“Como éramos cotidianamente vigiados e perseguidos, o silêncio também é transformado em um símbolo de comunicação, uma fala.
Escravizadas e escravizados necessitando se comunicar, promovem a escuta sensível. Até porque, dia a dia, era preciso proteger as matricomunidades.”

Uma preta velha ensinava: 

“Quando entrar na mata, observa a cantiga do sabiá. Se ele cantar, pulando de galho em galho, é porque ele não está confortável. Se ele canta em cima de um galho só, está tudo bem. Quer dizer, o pássaro ao cantar comunicava se havia perigo ou não”.

Os diferentes “letramentos” construídos por mulheres e homens pretos no período da escravização conseguiram fazer com que nos organizássemos coletivamente e ainda confrontássemos, como  agora, as verdades do Ocidente.

Resistência

Somos um corpo vivo, que nunca morre. Somos corpo-território. Nosso corpo é um corpo em movimento que reintegra  a terra e a terra passa a ser nossa terra. Mulheres e homens pretos fazem contraponto a tudo que a coroa portuguesa apresentava.”

Quando as mulheres saem do chão da casa grande e da senzala, os pretos constroem a comunicação pelas cosmo percepções, e rotas de fuga, e guardam segredos de sobrevivência

“Os ‘barcos do esquecimento’ – onde fomos separados para apagar nossa memória africana – não surtiram o efeito pensado pelos colonizadores. Isso porque eles não compreendiam a ideia de coo-existência, existência com cooperação. Eles não nos compreendiam. Trouxemos outras  linguagens…”

“Palmares foi contraponto à colônia portuguesa: apesar das diferentes etnias, construímos, a partir da afetividade, um território organizado, coletivo, participativo.”

Irmandades negras

A igreja católica – quando percebe a força das matricomunidades como espaço de organização e manutenção do patrimônio material e imaterial negro – tenta levar o mesmo princípio para dentro da instituição religiosa, gestada pela Coroa,  para promover o processo de aculturação.

Mas as estratégias das mulheres pretas foram além do esperado: no silêncio, elas organizaram cuidados, acolhimentos, usando as estruturas das institucionalidades colonizadoras preservaram e  mantiveram as culturas e espiritualidades negras vivas e atuantes, resguardando os  princípios africanos e as mulheres negras como matrigestoras. Irmandades negras, comunidades e favelas são exemplos de matricomunitárias.

Assim, mulheres negras estudam a história dos santos brancos e recontam as mesmas histórias, vinculando-as às histórias dos orixás africanos. Não é Iansã que vira Santa Bárbara, mas Santa Bárbara que passa a ser Iansã, que passa a ter a potência de Oya.

Oyá, por Breno Loeser (Imagem: Divulgação)
Oyá, por Breno Loeser (Imagem: Divulgação)

Quer dizer, as mulheres pretas recriam espacialidades dentro do universo da branquitude, para  manter os espaços espirituais negros, como estratégia de permanência e resistência da própria espiritualidade, a partir de um projeto de observação, pesquisa, escuta, da sua cosmo percepção, da transcendência do olhar.  E este projeto serviu durante determinado tempo.

Depois, compreendendo melhor a dinâmica da igreja católica, as mulheres pretas criaram espaços para alimentar o seu povo e, a cada dízimo coletado, tiravam um pouco para elas.

“Mulheres matricomunitárias,  durante a escravização negra, utilizavam espaços da branquitude, a serviço do seu povo.” 

*Sonia Abike Ribeiro é socióloga, professora, do Rio Grande do Sul, quilombola, mulher de terreiro, iniciada no batuque, umbandista e candomblecista, mestra em extensão rural.

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Julho de 2023

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2 comentários em “Mulheres Matriz”

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