Pular para o conteúdo

Educar africano

– Primeiros Negros

Gravura de griot, tradicional orador africano que transmite conhecimentos ancestrais à comunidade (Reprodução)

Um caminho para ampliar o pensar, enxergar outros pontos de partida, resgatar modos de manter-se preta, preto, prete, apesar da escola, do currículo eurocêntrico, imposto pelo Ocidente.

“É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança.”

(provérbio africano)

Há mais de 500 anos, se repete uma história que tem como centro a Europa. Uma história inventada, mentirosa, de desqualificação do povo africano em seu próprio continente e no mundo. É isso que se ensina, dia a dia, nas salas de aula para as nossas crianças, nossos adolescentes, nossos jovens. O ambiente escolar está contaminado pelo racismo. O currículo escolar faz parte da estrutura do racismo nacional.

A proposta, aqui, é chamar atenção para práticas do berço da humanidade que podem servir à escola que queremos construir, mas também à educação que podemos vivenciar com nossas crianças em família, entre amigos, na nossa rua, comunidade, na vida. Uma educação que sirva de contraponto ao que se aprende na educação formal. Uma educação que ensine a pensar, a questionar, que respeite os saberes de todos, incluindo os que são entendidos como aprendizes. 

Nenhuma pessoa aprende e se desenvolve somente a partir dos valores da sua família nuclear, mas, também, se relacionando com toda a comunidade. Pretos, no Brasil vivenciaram, a partir da escravização, a família pelos laços da afetividade. E foi assim que sobrevivemos, resistimos, re-existimos e vamos voltar a vir a ser. 

A diferença fundamental na educação que nossas crianças pretas recebem e o que estamos propondo, além do como, se refere ao ponto de partida: nossa história não começa no século XV com a escravização e o Ocidente não é o centro do mundo.

Filósofos, para o Ocidente, são só os que passaram pela faculdade. Dizer que a filosofia é atributo do Ocidente é uma mentira criada para invalidar outras existências.

Filosofia é história. E história é poder. Ressignificar nossa história é reconstruí-la. A África é o berço da humanidade, das primeiras invenções, da primeira universidade, das filosofias, das ciências, da matemática…

Leia o artigo sobre as per ankhs, casas da vida.

Trilha educativa

A Educação que resgata a África e todo o seu saber recebe várias nomes, que contemplam algumas diferenças:

Nos propomos a transitar por elas, buscando identificar as melhores práticas educativas em família e/ou no ambiente escolar. Por exemplo, a Educação Afrocêntrica tem a ver com o Mulherismo Africana que, diferente do Feminismo Negro, não coloca a questão de gênero à frente da questão racial.

O Mulherismo Africana é um convite para olhar a partir do nosso paradigma de localização, é pensar a mulher a partir das yabás, as orixás femininas, suas potências. O Mulherismo se refere, muito, a servir e pensar a coletividade.

yabás, Ewá, Obá, Nanã, Iemanjá, Iansã, Oxum
Referência às Yabás ou ao Mulherismo

Educação afrocêntrica tem a ver com respeito aos que vieram antes, os mais velhos, todos os mais velhos (não é o “honrar pai e mãe” cristão), valorizando a escuta ancestral, a sabedoria, que conta da nossa história de antes – quem não sabe de onde veio, não sabe para onde vai.

No entender da África, a ciência é filha do mito e a filósofa Katiúscia Ribeiro explica:

Mito é diferente de logos. Logos é materialidade, entende a realidade sem o mito. Só é real o que é concreto, o que eu consigo ver a partir da minha razão. O mito é alimento natural da nossa existência e elemento vital em nossas verdades. Mito é narrativa existencial. A cultura é o nosso sistema imunológico”.

A trilha que propomos é, por exemplo, ensinar Matemática a partir de África, do osso de lebombo – o ‌artefato‌ ‌matemático‌ ‌mais‌ ‌antigo‌ ‌do‌ ‌mundo,‌ ‌datado‌ ‌de‌ ‌35.000‌ ‌antes da Era Comum, ‌feitos‌ ‌em‌ ‌uma‌ ‌fíbula‌ ‌de‌ ‌um‌ ‌babuíno‌, ‌utilizado‌ ‌como‌ uma ‌espécie‌ ‌de‌ ‌‌calculadora‌‌ ‌- e não de Pitágoras, de 570 antes da Era Comum! Quer dizer, não exclui, mas vem depois.

Filosofias africanas antes e filosofia grega depois, até porque a segunda repete as narrativas das primeiras, só mudando o nome e a cor da pele dos personagens. A fonte da filosofia grega está nas filosofias e na mitologia africanas.

Vale ler Legado Roubado, livro de George G.M. James, da editora Ananse.

Outro feminino

Conceber a energia do feminino para além do gênero é também a pegada que propomos nesta trilha. Os africanos são os primeiros seres vivos a responder:

  • “Qual é a origem da vida?”
  • “Qual a origem da existência?”

E a resposta é o FEMININO, é MAAT, deusa preta, símbolo de justiça, ética e também compreendida como centro, princípio vital; útero mítico, oceano cósmico, águas primordiais.

Nas filosofias africanas, o feminino não é uma questão de gênero, mas sistema de equilíbrio da realidade, estabilizador do mundo, garantia de continuidade, o sacro poder que fertiliza a tudo.

Maat
Escultura de Maat, a deusa egípcia da Justiça (Reprodução)

Maat é a água que tudo fertiliza: águas matriciais, o útero cósmico, gera a si mesmo e as suas continuidades, fertiliza a humanidade. Não é homem nem mulher, é um princípio. Maat é o todo e o nada. Somos o todo. Logo, somos Maat e ela é o nosso coração cósmico – ensinam as filosofias africanas.

Saiba mais sobre a deusa responsável pela manutenção da ordem cósmica e social no artigo sobre Maat, a origem da vida.  Ela gesta o Cosmos, o mundo, a natureza e doa às mulheres o elemento feminino capaz de gestar os filhos na materialidade.

Em passado recente, acreditava-se que só havia um sexo, o masculino, considerado superior (perfeito), por possuir mais calor vital, enquanto o feminino era considerado um gênero masculino inferior (imperfeito), por possuir menos calor vital. Somente no século XVIII – diante do cenário de mudanças políticas, sociais e econômicas – se constituiu uma nova maneira de se pensar o homem e a mulher com base na diferença sexual. Quer dizer, é o Ocidente que cria a categoria mulheres!

Assim como inventa a ideia de raças humanas – mais que contestada pela ciência – e cria um modelo de humanidade, a partir da filosofia grega, que estabelece que só existe quem pensa?! O que mostra uma outra face do racismo, a subjetividade.

Escola no terreiro

Na baiana Salvador, a historiadora e doutora em Educação Vanda Machado desenvolveu um projeto político pedagógico, ao qual deu o nome de Irê Ayó caminho da alegria, em yorubá -, no terreiro de candomblé Ilê Axé Opô Afonjá, uma escola afrocentrada, pública, Escola Municipal Eugênia Anna dos Santos.

Um dos pressupostos do Projeto Irê Ayó, que começa em 1998 , é de que “nunca é tarde para buscar aquilo que ficou para trás”, explica Vanda Machado. Sua ideia é trabalhar a herança cultural de matriz africana e transformar as relações entre negros e não negros, contribuindo para a formação de sujeitos autônomos, solidários e coletivos.

Assim como inventa a ideia de raças humanas – mais que contestada pela ciência – e cria um modelo de humanidade, a partir da filosofia grega, que estabelece que só existe quem pensa?! O que mostra uma outra face do racismo, a subjetividade.

Pele da cor da noite, Vanda Machado
Pele da cor da noite de Vanda Machado (Editora da Universidade Federal da Bahia)

A somar-se aos valores africanos tradicionais à experiência do terreiro, a historiadora propõe destacar a importância do negro brasileiro nas artes, como a de Aleijadinho, Castro Alves, Machado de Assis, Pixinguinha e Cartola, além de contribuições em áreas como as ciências humanas e medicina, como o geógrafo Milton Santos, o psiquiatra Juliano Moreira e a psicanalista Virgínia Leone.

As práticas

A experiência afro escolar de Vanda Machado pode ser acessada através dos vários livros que tem publicado. Entre eles, Irê Ayó: uma epistemologia afro-brasileira, sobre a lógica diaspórica, afro-brasileira, em contraposição à epistemologia colonizadora, e Pele da cor da noite, com base nas experiências pessoais da autora. Neste livro, ela conta, ainda, a filosofia da educação praticada no projeto, que parte do tradicional para perceber o contemporâneo, entendido aqui como um prosseguimento dinâmico do passado.

Para ler com as crianças, A Galinha Conquém, um conto africano que remete à necessidade de boa convivência entre as pessoas e com o meio ambiente e Ilê Axé – Vivências e Invenção Pedagógica – as Crianças do Opó Afonjá, com lendas e mitos criados e adaptados para aprendizagem de ciências e arte, para crianças de 7 aos 14 anos.

Leia também a entrevista com Bárbara Carine Soares Pinheiro, idealizadora da Escola Afro-brasileira Maria Felipa, também em Salvador, e a sugestão de livros infantis para a biblioteca das nossas crianças.

Ocidente x África

No quadro abaixo, mais diferenças para nossa reflexão e mudança prática de como interagir, educar, compartilhar saberes com as nossas crianças:

Europa, África

Educação Eurocêntrica   x   Educação Afrocêntrica

Penso, logo existo – só razão.

X

Sinto, logo co-existo. Nem só razão nem só sentimento. É preciso equilibrar. Quando pensar, sinta.  Alinhe seus desejos.“O coração precisa estar mais leve que uma pena”, ensina a deusa Maat, que guarda a ética do existir africano.

Cosmo visão, condicionada à razão, recheada de pré-conceitos

X

Cosmo percepção, ligada ao sentir

Ponto de partida: mente

X

Ponto de partida: coração

O Ocidente cria a ideia de que não podemos dar o que não recebemos, tornando inviável nosso existir. Isso não é real.

X

A Filosofia Ubuntu ensina: eu sou porque nós somos. Cada um é porque todos nós somos. Exemplo: todo mundo é feminino porque todos trazem o corpo da mãe em si, o sangue da mãe.

A “pedagogia do eu”, ocidental, é a “pedagogia da nuca”, da “transmissão do saber”, da hierarquia, do “saber” mais ou menos.

X

Tudo para nós é círculo, é roda. A circularidade potencializa nos enxergarmos. Sentar em roda, permite o olhar-se, porque tudo em nós comunica. Aprendemos com os mais novos e com os mais velhos.

A hora é do Ocidente.

X

O tempo é africano, está em nós. Somos corpo e alma, em diálogo permanente, atemporal.

Literatura – só vale o que está escrito.

X

Oralitura, saber ancestral, provérbios, mitos e literatura – leia o Mito do Espelho no final deste texto.

O ser racional é desconectado do espírito.

X

Nossa espiritualidade é de co-existência com todos os seres viventes, para além dos terreiros, dos templos, das instituições. É mais que religiosa. O corpo é parte do espírito.

Individualismo, egocentrismo

X

Estrutura social, política e valorativa da comunidade como projeto civilizatório

A ideia de morte, de fim, de apocalipse, é eurocêntrica, cristã.

X

Oxumaré é o símbolo da continuidade e da permanência. É a cobra arco-íris. Rege o princípio da multiplicidade da vida e o transcurso entre vários destinos. O fim não existe: é começo e meio, começo e meio, começo e meio…

Apocalipse, fim do mundo

X

O futuro é ancestral, vivo. Nossa sombra é o nosso ancestral e quando ele não aparece é porque está em nós. Na vida, nunca estamos sós.

Barganha religiosa

X

A natureza é o nosso lar. Co-existimos em harmonia com o ambiente – água, terra, fogo, ar – e todos os seres viventes.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . .

O Espelho da Verdade

No princípio havia uma única verdade no mundo: Orum ayê – “céu” e terra, duas realidades fazendo parte de um processo simbiótico, que se complementa, se retroalimenta

Entre eles, Orum e Aiyê, havia um espelho. Conta o mito que tudo que se mostrava no Orum materializava-se no Aiyê. Ninguém tinha dúvida de nada. Tudo do mundo espiritual acontecia no mundo material.

Naquele tempo, vivia no Aiyê, uma jovem muito trabalhadora que se chamava Mahura. Dia e noite, ela ajudava a mãe a pilar inhames. Um dia, inadvertidamente, ela perdeu o controle do movimento ritmado da mão do pilão, que caiu e tocou forte no espelho, espatifando-o em pedaços que se espalharam para todos os lados.

Mahura saiu desesperada para se desculpar com Olorum, o criador do Universo. Qual não foi a sua surpresa quando o encontrou deitado, tranquilo, à sombra do Iroko, a floresta dos orixás. 

Olorum ouviu as desculpas de Mahura com toda a atenção e, ao final, informou que, dado aquele acontecimento, não existiria mais uma verdade única:

 “De hoje em diante, quem encontrar um pedacinho de espelho em qualquer parte do mundo, estará encontrando apenas uma parte da verdade”.

Fontes: Puc-Rio, homem e mulher, Bahia – Gov, Livros – Vanda Machado, Ifes-Edu, Curso Filosofias Africanas – Ajeum Filosófico, live Instagram professora Sonia Abike, 19/9/2023, primeirosnegros.com

Outubro 2023

Compartilhe com a sua rede:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *