Pioneiríssima na capital paulista, é a primeira a criar e presidir uma escola de samba, primeira a colocar uma comissão de frente só de mulheres na avenida e primeira sambista a ter uma estátua!!!
O que este artigo responde:
Qual é a primeira escola de samba de São Paulo?
De quem é a estátua na praça da Liberdade em São Paulo?
Qual a importância de Madrinha Eunice para o samba paulistano?
Qual o nome de Madrinha Eunice?
O que Madrinha Eunice fazia para viver?
Madrinha Eunice era casada?
São Paulo, capital, bairro do Cambuci, 9 de fevereiro de 1937, Deolinda Madre, nascida piracicabana, cria a primeira escola de samba da maior cidade do país, a Sociedade Recreativa Beneficente Esportiva Escola de Samba Lavapés, um símbolo do carnaval paulistano.
Compositora, carnavalesca, mulher de terreiro, quitandeira, ativista do movimento negro, independente, em 1936, conhece o carnaval da Praça Onze, no Rio. Se encanta pela Unidos de São Carlos – uma escola vermelha e branca do Rio de Janeiro, atual Estácio de Sá -, junta amigos e familiares e cria a versão vermelha e branca paulistana. Mas o primeiro desfile só acontece 18 anos depois, em 1955, no Parque Ibirapuera.
Mulher do axé
Madrinha Eunice era mulher de reza forte. Frequentadora assídua de festas religiosas, como a de Bom Jesus de Pirapora, e festejos carnavalescos, como o do Brás, mantinha um terreiro de quimbanda. A resistência – através do sagrado, da ancestralidade – estava no foco do seu viver.
“Negra do partido alto” e, ao mesmo tempo, da raiz das baianas do acarajé, empreendedoras dos tempos da escravização, que assumiram a luta para comprar a liberdade roubada dos negros, garantiram o sustento de senhores de escravos e financiaram terreiros de candomblé.
Seu Exú era Veludo, patrono da escola de samba Lavapés:
“A gente aprende, com Madrinha Eunice, que fazer carnaval, não é só a brincadeira, mas é também o louvor aos orixás”, destaca Carminda Mendes André, pesquisadora do Instituto de Artes da Unesp e uma das idealizadores do documentário “Lavapés: Ancestralidade e Permanência“.
Leia o artigo Exú, a figura mais controversa do panteão africano: Jesus no Culto aos Orixás, a mediação entre o humano e o divino, o consciente e o inconsciente, o caminho.
Ativista
Economicamente independente, madrinha Eunice foi inspirada e inspirou gerações de mulheres a buscarem o mesmo:
“Ela ensinou muito para as mulheres que se pode viver sem precisar de ninguém, cuidando de seus filhos, cuidando de sua família, com bastante luta e tranquilidade”, comenta sua neta Rosimeire Marcondes.
Para a pesquisadora Carminda Mendes, a vivência de Madrinha Eunice mostra um “feminismo muito forte em solo nacional“:
“Normalmente, quando a gente começa a falar sobre o movimento feminista, vamos muito nos anos 1960, nos Estados Unidos, com as mulheres brancas… E quando a gente se depara com a história da Madrinha Eunice vemos a história de uma mulher que não se submeteu, por exemplo, a se manter com o marido, porque tinha a sua própria história. Era uma mulher de espírito independente”.
Estátua
Piracicabana, cidade do interior de São Paulo, Madrinha Eunice nasce em 14 de outubro de 1909 e sai de sua cidade natal aos 11 anos de idade para morar na capital do estado, no bairro da Liberdade, onde, aliás, está sua estátua, a primeira de uma mulher negra e sambista.
Por todo simbolismo de seu existir para a comunidade negra, o local foi o escolhido para a instalação da sua reprodução em bronze, uma obra de aproximadamente 1,70 m de altura e 60 cm de largura.
Inaugurada em 2 de abril de 2022, na praça da Liberdade, a escultura de Madrinha Eunice é a primeira, de mulher, do projeto do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH), da Secretaria Municipal de Cultura, voltado ao reconhecimento da ancestralidade africana na capital, imortalizando personalidades negras em criações realizadas por artistas negros.
A escultura de Madrinha Eunice – dançando com saia rodada, turbante, colares e pulseiras – tem a assinatura da artista visual Lídia Lisboa, criadora de um trabalho de ação sociopolítica.
Liberdade
Desde a imigração japonesa, teve início o apagamento da origem preta do bairro da Liberdade. Também por isso, também, a importância da presença ostensiva da imagem de Madrinha Eunice por lá, como parte do reconhecimento das raízes africanas da cidade, um modo de recontar a história de São Paulo a partir do nosso ponto de vista, trazendo à tona nossa memória ancestral.
Escravizados, seus pais – Mathis Madre e Sebastiana Franco do Amaral – retomaram a liberdade com cartas de alforria. E a menina cresceu nas imediações do bairro que lembrava seus pais.
Frequentou a escola até o quarto ano. Depois, largou os estudos para vender limão em uma banquinha. Batalhou muito e chegou a ter quatro barracas grandes pela região central da cidade, fato que contribuiu para o estreitamento de seus laços com a comunidade. Mais uma na história do empreendedorismo negro de todos os tempos.
Com o seu negócio, mantinha três cômodos que alugava em uma casa na rua da Glória, onde havia sempre entre oito e dez hóspedes.
Aos 20 e poucos anos, conheceu Francisco Papa, o Chico Pinga, com quem se casou. Algumas décadas depois, separou-se dele. Motivo? Ele quis que ela escolhesse entre ele e a escola. Ela escolheu o samba.
Eterna presidenta
Madrinha Eunice presidiu a escola de samba Lavapés até seus últimos dias. “Foi embora cantando” – ela morreu devido a complicações da diabetes aos 87 anos, em abril de 1995 -, como lembra Rosemeire Marcondes, que a sucedeu na presidência da agremiação:
“Liderança formidável, sempre lutou pela oficialização e pelo reconhecimento do carnaval. Foi um dos baluartes do samba, a primeira mulher negra, independente, avante do seu tempo, naquela época de 1930, de Getúlio Vargas, da ditadura, ela lutou, lutou e conseguiu”.
O artigo Madrinha Eunice e Geraldo Filme: memórias do carnaval e do samba paulistas, assinado pelo antropólogo Vagner Gonçalves da Silva, conta que a Sociedade Recreativa Beneficente e Esportiva Lavapés Pirata Negro, além de ser a escola de samba mais antiga de São Paulo ainda em atividade, teve participação decisiva na oficialização do Carnaval Paulistano e contribuiu para a união das escolas de samba.
A Lavapés foi inovadora e ousada. Isso porque na época de sua criação, eram os “cordões carnavalescos”, com foliões mascarados, que dominavam a cena, e não as “escolas de samba”.
Os primeiros sambas-enredo – chamados samba-tema na época – surgiram nos desfiles de São Paulo nos anos 1950. E lá estava Madrinha Eunice pioneira fazendo parceria com Chico Pinga, Popó e Doca no samba “São Paulo Antiga”. Ela adorava compor.
Berço do samba
Nos seus mais de 80 anos de existência, a Lavapés foi sete vezes campeã do Grupo Especial – de 1950 a 1953, de 1956, 1961 e 1964 -, época em que a disputa das escolas de samba da cidade foi unificada.
As vitórias – comenta-se – tiveram a ver com a chegada de Popó, um sambista carioca que veio morar em São Paulo e logo se envolveu com a Lavapés. Com ele, se implantou o casal de mestre sala e porta bandeira e a comissão de frente.
É da Lavapés, inclusive, o pioneirismo de levar para a avenida a primeira Comissão de Frente Feminina das escolas de samba de São Paulo.
O batuque paulistano, também, é herança da Lavapés, a partir do Tambor de Pirapora e as Batidas das Festas para Nossa Senhora do Rosário e para São Benedito, trazidos pelas mãos de escravizados e ex-escravizados.
Grandes nomes do samba desfilaram na Lavapés e de lá saíram para fundar suas escolas, como Carlão do Peruche, fundador da Unidos do Peruche; José Jambo Filho, o Chiclé, presidente da Vai-Vai; Inocêncio Mulata, que refundou a Camisa Verde e Branco, e Seo Nenê, fundador da Nenê de Vila Matilde.
Ciclo de derrotas
A disputa do carnaval é oficializada em São Paulo em 1968 e tem início o ciclo de derrotas da Lavapés: 3° lugar, em 1968 e 1969; 4° lugar, em 1970; primeiro rebaixamento em 1971, com um 7º e último lugar.
Durante 3 anos, a Lavapés ficou no segundo grupo das escolas paulistanas, retornando ao grupo principal em 1974, disputando, pela última vez, com as grandes do carnaval de São Paulo, em 1975.
Entre 1976 e 1978, a escola esteve no grupo de acesso até que sofreu mais uma queda, passando para o Grupo 1 em 1979; Grupo 2, em 1980 e 1981, até o Vaga Aberta, o último grupo do carnaval paulistano na época, sendo retirada da disputa de 1984 a 1987, quando volta a desfilar, oscilando entre os grupos inferiores.
Marco Zero do Samba
Em 2007, a Lavapés fica em quarto lugar do Grupo 3 da UESP – União das Escolas de Samba Paulistanas (o que equivale à quinta divisão do Carnaval Paulistano), sendo promovida para o Grupo 2.
Em 2010, ocorre a fundação do Marco Zero do Samba, projeto de autoria de Camilo Augusto Neto, atualmente diretor da UESP. E, em 2015, a Lavapés vence um carnaval depois de 15 anos.
Após a posse do ator e ativista cultural Aílton Graça, em 2019, como presidente da Lavapés, a escola foi rebatizada como Lavapés – Pirata Negro. Além disso, acontece a mudança de local dos ensaios – sai da região central da cidade para o Jabaquara, na zona sul.
Para o carnaval de 2020, a Lavapés – Pirata Negro trouxe como enredo “O mundo a partir da África e o tambor que faz a gira girar”, se sagrando campeã. Em 2022 – passada a pandemia de covid 19 -, a escola conquista o 3° lugar no grupo Acesso 1 de Bairros, com o enredo “Mamãe Oxum – A Deusa do Amor, o ventre da humanidade, traz as boas novas na primavera”.
Em 2023, vice-campeã no Acesso 1 de Bairros com “Iemanjá e o encontro das águas”, se prepara para, em 2024, com “Oxossi, o guardião popular”, desfilar pelo grupo Especial de Bairros.
Nome de prêmio
Em 13 de dezembro de 2023, o nome de Madrinha Eunice consagra o próprio ativismo com a criação do Prêmio Madrinha Eunice de Consciência Negra, proposto pelo mandato coletivo Quilombo Periférico.
O prêmio será entregue durante as atividades oficiais do Mês da Consciência Negra, novembro, todos os anos, na Câmara Municipal de São Paulo, destacando projetos que combatem o racismo e promovem uma cidade mais inclusiva.
Madrinha?
Deolinda Madre ficou conhecida como Madrinha Eunice por batizar dezenas de crianças – teve 41 afilhados, pelas contas de sua neta. Não podia ter filhos.
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Fontes: Agência Brasil, Terra, Quilombo Periférico, Wikipedia-Madrinha Eunice, Madrinha Eunice-Lavapés , Sagres Online, Claudia Alexandre, doutora em ciência da religião, pesquisadora de mulheres negras no samba e integrante do coletivo Acadêmicas do Samba
Escrito em janeiro de 2024