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Nossa coroa, nosso poder

– Tania Regina Pinto

Xênia França (Foto: Lucas Lima/Risca Faca)

Cabelos black power, trançados e dreadlocks são parte da identidade do povo preto, símbolo de resistência. São nossa coroa, nosso poder.

Tudo é cultura, história, resistência. Meu cabelo não nega a flexibilidade, a criatividade, a força, o poder do meu povo, bem como nossa capacidade de se recriar, se reinventar, resistir e seguir vivendo. Mesmo assim, alguém plantou – e, lamentavelmente deu certo – a ideia de que meu cabelo é: duro, rebelde, ruim, difícil!!!

Sempre soube que rebeldia é sinônimo de desobediência, indisciplina, revelia. Mas os meus cabelos, ao contrário, são obedientes, dóceis…

Se os quero trançados, os tranço e eles ficam assim meses até. Se quiser alisá-los, aliso-os… Se quiser armados, soltos… eles ficam… Se quiser concentrá-los em um turbante, aceitam sem resistência…

Se preferir usar só uma faixa, num coque, eles também não se opõem…
Maria Clara Araujo, Rael da Rima e Xênia França

Tem muita gente que não acredita, ainda. Aí, ou vai colocando a “mão grande” nas minhas e nas madeixas de muitas negras e negros, ou pede “gentilmente”, mas não aceitando um “não” como resposta… É aquele “posso?” – já invadindo! Então, gente, não pode.

Não importa se a minha religião não permite ou se eu não quero porque não quero, ou porque não gosto, ou porque vai desarrumar…

Não estamos em exposição nem à disposição.

Ah, e o nosso cabelo é sempre de quem o ostenta – seja natural ou comprado. Daí não me dou ao trabalho de responder “se é meu mesmo”.

Você pode estar pensando: Que bobagem! Por causa de um cabelo?! Pois quem enfrenta isso, no dia a dia, não acha.

Inveja oculta

Mas quem dera a relação do mundo branco com o cabelo negro se limitasse à “turma do toque”. Tem a “galera da beleza oculta”, a “galera da inveja branca” e a “galera do racismo estrutural”. Todas se confundem, mas o modus operandi é diferente. Aqui, um parênteses:

Inveja branca é uma expressão racista que remete à ideia de que tudo que é branco é bom, puro. Quer dizer, ‘inveja branca’, na cabeça de um racista, é a inveja sem maldade.

Mas todo mundo sabe que inveja não tem cor, né? Inveja é ciúme, cobiça, cupidez.

Então, a “galera da inveja branca” é aquela que sempre que nos encontra diz: “queria tanto ter o cabelo igual ao seu”. Ou, ainda: “queria ter nascido negra”. Aí, eu arremato:

“E também sofrer o preconceito que eu sofro, né?”
– neste dia, estou aborrecida mesmo – e essa galera leva um susto.

Aqui, cabe mais um parênteses:

Gente, eu amo ser negra. Tenho plena consciência de toda potência ancestral que carrego em mim. Mas estes detalhes do cotidiano, quando sabemos que o preconceito, a discriminação, que o racismo está no ar que respiramos – vamos combinar que a maioria do povo preto nem esgoto tem à disposição –, acabam fazendo variar muito o meu humor.

Por isso, comento que, dependendo do meu estado de ânimo, respondo de um jeito ou de outro.

Sempre brinco dizendo que sou uma ‘velhinha moderna’ e convivo com muita gente jovem – de todas as cores -, que ama a minha cabeleira farta e muita gente idosa – de todas as cores – que vive indignada, não se conforma com liberdade de expressão tão explícita.

Toda semana, eu encontrava uma tia minha na rua. Ela tem quase 80 anos, foi “educada” a conter, controlar os “cabelos rebeldes” (?!) – como insistem algumas propagandas de produtos de beleza, ainda! Quando a gente ia se aproximando, ela já falava:

“Eu vi o seu cabelo de longe! E pensei: quem é aquela louca? Ah, é a Tania.
Quando você vai cortar?”

E a conversa atravessada se repetia toda vez  – até que aconteceu a pandemia.

Assim é o racismo estrutural – em alguns momentos,
nos transforma em algozes de nós mesmos, sem que percebamos!

Nosso cabelo solto, armado, incomoda demais a “galera da beleza oculta”.

Eu participo de um trabalho voluntário com um grupo de idosas, todas brancas. Quando eu chegava, antes da covid-19, semanalmente, também, uma mesma senhora, da 4ª idade, me cumprimentava dizendo: “Você é tão bonita! Tem um sorriso tão lindo, mas este seu cabelo esconde tudo isso.”

Juro que ouvi esta frase por uns dois meses, pacientemente, respondendo com o meu “sorriso tão bonito”, até que consegui dar um basta, com uma pergunta simples:

–  “Sabe por que eu uso o cabelo assim?”

–  Ela, imediatamente, respondeu: “Não!”, espantada.

–  “Porque eu gosto.”

Apropriação

É comum surgirem debates sobre apropriação cultural quando pessoas não negras decidem usar cabelos black power, tranças, dreads, turbantes, twistes, coquinhos…

Considero importante refletirmos sobre isso – sem fechar questão -, compreendendo que nossos panos, penteados, trançados, são símbolos da nossa identidade, sinais de resistência, de fortalecimento, de reconciliação com meus traços fisionômicos, com a minha negritude.

Quando ostento meu cabelo natural não estou na moda.

Quando ostento meu cabelo natural, eu conto ao mundo quem sou, faço a reconexão com a minha ancestralidade, imponho a minha visibilidade a todos que sempre insistiram em não me ver!
É ato político, cultural, histórico!

Adinkra Duafe
Adinkra Duafe: símbolo ancestral de origem dos povos Acã (da África Ocidental). Representa as virtudes atribuídas ao feminino: prudência, calma, afeto, amor eterno, paciência e carinho.

Neste refletir, inclua-se tudo que, ao longo da nossa existência – desde sempre – nos foi roubado, a começar pela nossa liberdade.

Tudo que é do preto vira do Brasil e perde a identidade racial, do jeitinho luso-brasileiro sonhado desde sempre.

Estes dois olhares – acredito – já tornam compreensível a resistência que se tem pela apropriação de símbolos que resgatamos, o tempo todo, em nome do próprio existir.

Nunca é demais insistir na história que nos foi imposta: sem direito à identidade, moradia, língua, crença, família, costumes, vontade, ancestrais, fomos arrancados, sequestrados, de nossas raízes.

Sem dúvida que esta conversa passa também, e obrigatoriamente, pela questão econômica – todos sempre ganharam muito dinheiro, construíram impérios, conquistaram terras às custas do povo preto e de suas riquezas. Mas este é tema para outro dia.

Bela aparência

Durante anos, colocaram na nossa cabeça que nossa cor, cabelo, tudo em nós era sinônimo do sujo e do feio. E acreditamos que para ter “boa aparência” tínhamos que nos adaptar. E nos adaptamos para conseguir o pior emprego, o pior salário, as piores condições de vida. Mas a resposta…

Basta olhar as estatísticas.

Manchetes

Não adiantou homens e mulheres negros se “ajustarem” com cabelo bem curtinho, alisado, preso ou escondido em um lenço para agradar os brancos.

Por muito tempo não conseguimos enxergar a nossa bela aparência  e vivíamos, inclusive, camuflados em roupas que não dessem destaque à cor da nossa pele!

E quanto mais reflito, a cada linha que escrevo, percebo os requintes de crueldade desta tragédia que marca a história da África dentro do Brasil.

De cabelo alisado

Eu fui criada em um salão de beleza para negros, no Salão Mocambo – mocambo é refúgio, quilombo!

Minha mãe, Zezé, era a dona – empreendedora nos anos 1950 !!! E ela criou as duas filhas alisando o cabelo de mulheres negras, com ferro quente e produtos químicos.

Adolescente, eu me rebelei! Queria meu cabelo grande, natural, como Angela Davis, ativista do partido dos Panteras Negras, de autodefesa do povo negro dos Estados Unidos. Por ‘estranha’ sorte, as clientes não se rebelaram.

Elas eram a nossa garantia de sobrevivência econômica.

Aí, a crueza da situação! Nós, negros, atuando como agentes de contenção da própria liberdade de existir – de novo -, vítimas de uma lavagem cerebral da qual nossos tios, pais e avós ainda guardam reminiscências.

Foi assim. E não só no centro da capital paulista, onde minha mãe tinha seu quilombo da beleza.
Foi assim no mundo fora do continente africano.

Nos impuseram “padrões europeus” e nós engolimos
e engolimos e engolimos…

Constrangimento

Além de emprego x cabelo natural ainda ser uma questão que pode comprometer o estar empregado ou não, ter trabalho ou não, todos, negros e negras, temos consciência do risco da rejeição, inclusive por parte dos mais velhos da família – como já comentamos – e do constrangimento que a situação toda provoca.

Minha irmã Rute e eu, quando crianças, éramos bolsistas em um colégio de freiras católicas. E minha mãe cuidava muito da nossa “boa aparência”.

Tínhamos que parecer limpas e a “solução” era manter
nossos cabelos trançados, presos ou alisados, “saudáveis”.

Criança negra brava

Hoje, avós, sabemos que as crianças continuam sendo humilhadas,  discriminadas, tratadas de maneira diferente por conta de seus cabelos – e com apoio de péssimas professoras!

Mais que os outros pais, temos de estar presentes no cotidiano escolar, lutando por uma educação inclusiva.

E isso não vai ter passado quando nossas crianças de hoje entrarem no mundo corporativo, onde sobram executivos que consideram que o nosso cabelo não empresta profissionalismo à nossa aparência, não agrega valor.

Em outras palavras, o “estímulo” à adaptação estética de profissionais competentes, independentemente da área em que se atue, continua e não sabemos até quando.

Registre-se o ocorrido há 15 dias com a cantora e compositora Laís Raquel, no Distrito Federal, em Brasília. Ela deixou de assinar um contrato para cantar em uma festa de casamento porque a noiva queria que ela alisasse o cabelo.

E a cliente justificou: “Alisar para ficar melhor nas fotos”
e porque no seu casamento “tudo teria que estar perfeito”.

Laís Raquel contou a história no Instagram, a rádio CBN fez reportagem, mas ela optou por não denunciar o caso com base na Lei 7716/89, de crime de racismo.

Na corte

Nos Estados Unidos, desde 2019, em estados como Califórnia, Nova York e Nova Jersey, a Lei Crown
proíbe a discriminação pelo tipo de penteado,
não só no ambiente de trabalho, como nas instituições
de ensino.

Martelo e balança justiça

Antes da Lei Crown, os afro-americanos, durante décadas,
tentaram resolver o problema nos tribunais, sem sucesso.

Um dos casos emblemáticos aconteceu no Alabama. Uma jovem foi aprovado para trabalhar no serviço de atendimento ao cliente de uma empresa, o único entrave eram os seus dreadlocks, que deveriam ser cortados, pois “tendiam a ficar desarrumados”.

A Comissão de Igualdade de Oportunidades no Emprego entrou com uma ação, perdeu. Recorreu, perdeu de novo. Ia tentar uma última vez, mas a Suprema Corte não quis analisar o caso. Simples assim.

“Autodegradação”

Mas este não é um problema só de mulheres. Malcolm X, ativista dos direitos dos afro-americanos, em um capítulo de sua autobiografia, publicada nos anos 1960, conta da primeira vez em que usou produto químico para alisar o seu cabelo:

“Foi meu primeiro grande passo para a autodegradação: quando suportei toda essa dor (ao jogar cloro no couro cabeludo), literalmente queimei minha pele para que meu cabelo se parecesse ao de um homem branco.”

Por isso, o diretor de cinema Spike Lee decidiu que em Malcolm X (1992), o filme sobre a vida do ativista, o primeiro ato de rebeldia em sua conversão fosse voltar a exibir seu cabelo natural.

Tranças históricas

Não se sabe ao certo desde quando os negros trançam seus cabelos, qual o momento histórico.
Mas existem registros de viajantes europeus que exploraram a África por volta de 1400 e relatavam em seus diários e cartas à beleza dos penteados de homens e mulheres nos diversos reinos.

Em 5 a.C., o historiador e geógrafo grego Heródoto elogiava
a estética do povo que vivia ao redor do Nilo.

E no Museu Egípcio do Cairo é possível encontrar uma peruca toda trançada, do século 14 a.C., típica de oficiais de guerra.

Peruca encontrada em fevereiro 1929 a norte do Templo de Hatshepsut junta da múmia de Nany, a filha do rei Painedjem I. Feita de tranças de cabelo natural moldadas com cera de abelha. Foto: Metropolitan Museum of Art.

Além do 1 + 1

Com a gente tudo é grande demais. Lamentável que nossa história só faça parte do currículo escolar, por determinação das leis 10.639/03 e 11.645/08ainda não cumpridas.

Há sabedoria embutida na nossa cabeça 
e que se reflete nos nossos cabelos!

É questão matemática, de feixe de paralelas, frações, diagonal do quadrado, altura do triângulo equilátero, proporcionalidade, formas circulares, padrões fractais, rotação, reflexão de imagens, translação, progressão aritmética.

Está tudo enraizado na produção dos nossos trançados. São saberes e conhecimentos, passados de geração em geração, que estão chegando à academia, com o nome de etnomatemática.
Trança nago

As primeiras teses a colocar o trançar cabelos afro para além da estética, são de mulheres negras: a educadora e matemática Gloria Gilmer, em 1999, e a doutoranda em Ciências Sociais e pesquisadora de relações étnico-raciais Luane Bento dos Santos, em 2013.

Elas explicam que cada divisão de mechas capilares traduz diálogo com noções matemáticas e propõem um novo jeito de aprender, uma nova prática educativa, um novo olhar para a disciplina.

E, desse modo, pelas tranças, também, derrubamos mais
uma invenção racista, a da nossa “inteligência curta”.

Tecer tranças exige destreza, cálculo, perspectiva, cuidado e um profundo senso estético. É exemplo de força intelectual, cultural, estratégica…

Em cada desenho um símbolo, uma rota de fuga, códigos… É a nossa história sendo ressignificada.

É assim que protestamos contra a permanente opressão. Temos muito a ensinar, a compartilhar!
Trazemos a marca da generosidade.

Reencontro

Quando escolhi escrever sobre nosso cabelo não passou pela minha cabeça imersão tão profunda em minha própria história, nossas dores, descobertas, atrocidades e barbárie vivida, a desumanidade a nós imposta. Quantos será já pensaram nisso?!

O povo negro foi colocado no limbo, à margem, no não-lugar
– mas nós tínhamos um lar!

E para a conquista de um novo lar, em nós, temos pequenas e grandes coisas a fazer, todas de profundidade imensa, que exigem a cicatrização de feridas ainda abertas.

Uma dessas coisas é a que os salões de beleza chamam de transição capilar – sim, continuamos falando de nossos cabelos! E eu escolho chamar de ruptura com estereótipos.

Do zero

Eu fiquei careca três vezes na vida. A primeira vez foi, aos 15 anos, por vontade – o ingresso na militância negra. As outras duas vezes, depois dos 50, foi para tratar um câncer. E quando meus cabelos começaram a crescer, grisalhos, pensei:

“E agora? Só velhinha usa cabelo grisalho natural.
Vão achar que sou avó de meu filho! Ele era adolescente.”

E dado da realidade: quimioterapia e tinta para cabelos não resulta em encontro feliz. Além disso, na minha cabeça, impossível imaginar alisá-los.

O jeito foi encarar o espelho e as muitas críticas, até que somaram-se a elas os comentários do povo espantado: “Seu cabelo virou moda!”

Mas, repito, meu cabelo nunca será moda!

É a moldura do meu rosto, a minha coroa, a minha força, a minha saúde.

Transição capilar

Imagino que sair da química, do alisamento, a caminho do cabelo natural, é ainda mais tenso do que o que vivi, pois implica também sair do conforto da aceitação social, profissional, familiar, para a experiência do autoamor.

A cura da humanidade passa, obrigatoriamente, pela autoaceitação, pelo acolhimento, por inclusão, respeito.

Cada gesto negro de resgate é atitude em favor da sociedade inteira. Nossa integridade é parte essencial para a construção do mundo onde queremos viver.

Aqui um último parênteses:

A decisão sobre usar os cabelos naturais, alisados, trançados, com dreads, cacheados, do jeito que for, é exclusivamente de quem os ostenta sobre a própria cabeça. Se não perguntarem, por favor, não manifestem opinião sobre como preferem o nosso cabelo. É uma atitude destrutiva. Estamos no poder sobre nosso corpo e nossa cabeça. A preferência é individual. Meu cabelo, minhas regras.

Transgredir, ressignificar, é decisão pessoal, intransferível.

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3 comentários em “Nossa coroa, nosso poder”

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