Pais Pretos Presentes
– Primeiros Negros
Humberto Baltar e seu filho Apolo (Imagem: Arquivo Pessoal)
Existem várias maneiras de paternar, de ser homem, de ser pai, de se estar em família.
Aquele homem que acredita que o seu papel é o dos 3 P’s – protetor, provedor e procriador – precisa entrar em contato com o novo significado dos 3 P’s – Pais Pretos Presentes!
“O homem presente é o que todo papel é papel de pai. Na pandemia, chegamos a uma taxa de 40% de divórcios porque o homem entendia que o cuidado da casa não era papel dele, o cuidado das crianças não era papel dele… O distanciamento era tão grande que muitos homens não sabiam trocar uma fralda, o tipo sanguíneo do filho, se ele era alérgico ou não, os remédios que tomava…”
“Existem várias maneiras de paternar, de ser homem, de ser pai, de se estar em uma família… Um dos medos que eu tinha, quando minha esposa ficou grávida, era de não conseguir ser um pai carinhoso, zeloso, amoroso, porque eu não tive isso. Meu pai recebeu a caixinha do mundo de que homem não chora, não mostra fraquezas… Ele não falava comigo sobre sentimentos, dúvidas e angústias. Não existia essa dimensão afetiva, e, quando meu filho nasceu, fiquei inseguro se poderia ser um pai carinhoso, porque na nossa cultura fala-se muito que não podemos dar aquilo que não recebemos. Mas eu passei a conversar com outros pais e fui percebendo novas possibilidades de amar e ser amado pelo meu filho…”
“É preciso contato. É preciso estar junto. É preciso tirar a armadura do pai invencível, provedor, seguro e abraçar as incertezas, abraçar a própria humanidade, nos acolher, desfazer-se da toxidade, da ideia do modelo universal de família. Cada pessoa, cada família, é uma!”
(trechos da palestra “Confia e Vai”, de Humberto Baltar, idealizador do coletivo social Pais Pretos Presentes, no 11°Seminário Internacional Pais & Filhos)
Humberto Baltar é um pai pioneiro ao idealizar o também pioneiro, Pais Pretos Presentes. Ele inova na proposta e na forma de atuar, desenvolver e propor a troca entre famílias negras, de forma que todas se amparem umas às outras.
Este pai pioneiro conta que, com a gravidez em família, a vida o convidou a conhecer sua ancestralidade africana. Ele sentiu a necessidade de se preparar para viver com o filho questões raciais e de gênero.
Assim é forjado Pais Pretos Presentes: na educação, no proporcionar o contato com valores ancestrais, promovendo um espaço de aquilombamento, acolhimento, letramento ancestral, emocional e racial, com escuta ativa para pais e mães pretos e de filhos pretos, oferecendo troca de informações e experiências sobre criação de filhos, paternagem e maternagem sob uma perspectiva afrocentrada.
O embrião
Humberto Baltar tinha acabado de se tornar pai quando sugeriu a criação do Pais Pretos Presentes. Ele buscava um espaço para compartilhar suas demandas e angústias de ser pai de uma criança preta.
A grande descoberta: ele não era o único!
Pelo menos 90 mil pessoas buscavam o mesmo.
Assim, o coletivo transforma-se em empreendimento social com projetos de educação, comunicação e serviços de consultoria étnico-racial, parental, de divergência e de masculinidade, que envolvem palestras, eventos, mentorias, cursos, treinamentos, parcerias com escolas, Unicef, Ministério Público e organizações do terceiro setor.
Pais Pretos Presentes também contribuiu com o primeiro relatório sobre paternidades negras no Brasil, elaborado pelo Instituto Promundo, esforço inédito de dar visibilidade aos pais negros e às paternidades negras, desconstruindo a ideia de uma paternidade ideal, abstrata, universal, produzida pela branquitude masculina e que não leva em conta o existir dos povos originários, do povo preto, das vítimas da colonização.
Tecnologia a favor
Tudo começa, de forma despretensiosa, por meio das redes sociais, em 2018.
Humberto pergunta no Facebook se alguém conhecia um pai preto para quem ele pudesse se apresentar e a publicação, como se costuma dizer, “bombou”.
Do Facebook, já como grupo, Pais Pretos chega ao WhatsApp e, lá, o debate ecoa não apenas entre pais, mas também entre mães, famílias inter raciais, educadores… E aquele espaço virtual de bate-papo transforma-se em rede de apoio.
“Quando criamos o grupo do WhatsApp, um pai disse que o filho de quatro anos não queria ir à escola porque tinha escutado do colega que ele não gostava de se sentar ao lado de menino preto. No mesmo dia, outro pai comentou que tinha perdido uma bebê de cinco meses e se queixou que todos levavam acolhimento só para a mãe, mas a ele, nada”, recorda-se.
O impacto das trocas levou à formação de novos grupos: Pais Pretos Presentes, Mães Pretas Presentes, Pais e Mães Pretas e Pais e Mães dos Pretinhos.
Em 2020, com o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, eclode uma ampla campanha antirracista no mundo e Humberto Baltar começa a ser buscado por empresas para falar sobre a questão racial com os colaboradores.
Quem é Humberto Baltar?
Humberto Baltar é autista com TDAH – Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade e dislexia e pai de Apolo, de 4 anos, que também é autista, e casado com Thainá Baltar, desde 2018, a mamãe do Apolo, co-fundadora do Pais Pretos.
Baltar é também professor de Paternidades Pretas na pós-graduação de Crianças, Adolescentes e Famílias do Ministério Público do Rio de Janeiro, professor de Inglês Técnico na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professor do Ensino Fundamental na Prefeitura do Rio de Janeiro.
Carioca, ele nasce em 16 de março de 1981 no Rio de Janeiro, filho de Ernani e Maria Luiza, neto de Maria Inês, Benedito Nicolau, Georgette e José. Ancestralidade Importa. E tem, ainda, também, uma “segunda mãe”, uma madrinha, uma “fada-madrinha” muito especial, Helena Baltar, professora universitária no Hospital Pedro Ernesto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Ao completar 7 anos de idade, a madrinha fada de Humberto o inscreveu no sorteio do Colégio de Aplicação da UERJ. O número de inscritos foi igual ao número de vagas. Não teve sorteio e o afilhado da madrinha passou a fazer parte do seleto grupo de alunos negros de uma das melhores escolas do Rio de Janeiro.
No Colégio de Aplicação, todos são professores universitários. Quer dizer, Humberto foi preparado, desde o início da vida escolar, para passar no vestibular da UERJ com facilidade. Formou-se em Letras.
A madrinha fada também o matriculou na Cultura Inglesa, onde estudou dos 12 aos 19 anos – como único aluno preto em sala de aula e, “naturalmente”, vítima de racismo recreativo, ataques a seco, bullying… . Vivia-se os anos 1980, 1990. Racismo não era crime! Agora, temos a Lei 14.532, de 2023, que pune tanto o racismo (crime contra a coletividade) como a injúria racial (crime de racismo contra o indivíduo).
Filho da empregada
Mas só ele sabe, sentiu, o que foi a sua jornada, dia a dia, desde que se acomodou no útero de Ernani Baltar. Seu pai tentou ficar com a família, mas não conseguiu. O casal se separou e ela foi trabalhar como empregada em uma casa no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro. De 1 aos 11 anos de idade, Humberto viveu em um espaço de 12 metros quadrados, o quartinho da empregada, onde a mãe trabalhava:
“Tinha que pedir permissão para abrir a geladeira, tomar refrigerante, ligar a tv, jogar videogame. Era quase uma indigência simbólica… Para existir, eu tinha que pedir licença. Só fui entender o impacto disso recentemente, em terapia.”
Pequeno, ainda, Humberto soube que sua mãe não havia conhecido seus avós, apenas seus pais e descobriu que sua mãe não havia tido infância, porque desde os 10 anos trabalhava em casa de família, lavando e passando roupa.
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O que pensa o Coletivo Pais Pretos Presentes é o espaço Sem Mordaça deste artigo na palavra de seu idealizador
Educação é o eixo principal. “A Lei nº 10.639, que inclui no currículo oficial da rede de ensino municipal a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira, ainda não é cumprida no Brasil.
Para compensar a ausência de vontade política de nossos governantes e de parte do professorado, Pais Pretos desenvolve alguns projetos, como o programa Meu Filho Me Ensina, que propõe enxergar a infância a partir do olhar ancestral africano.
A ideia de que uma criança chega vazia a este mundo não existe na ancestralidade africana. O entendimento é de que ela já chega formada. Não são os pais que irão preencher a vida da criança com sentido, carreira e até mesmo gênero. O povo Dagara, em Burkina Faso, inclusive tem um ritual para descobrir o nome da criança, conhecer suas vocações, aptidões e inclinações.
Paternidade ativa
Para Humberto, implica:
- letramento emocional dos homens pretos;
- letramento ancestral;
- compreender a importância da diversidade e da inclusão;
- cuidar;
- ser afetivo com os filhos.
Enfim, estar atuante em várias áreas.
Do ponto de vista racial, a paternidade ativa inclui empoderar a criança para que ela tenha orgulho da cor da sua pele, da sua ancestralidade, da sua família, para que ela tenha menos chances de se abater diante de ataques racistas… Empoderar a criança para que ela possa se proteger psicologicamente de episódios de injúria racial, preconceito. Adultos e crianças pretas vivem situações racistas o tempo todo.
Um por todos
Quando se espera um bebê, não se sabe se ele terá algum tipo de má formação, falta de visão, síndrome de down, autismo ou qualquer outro tipo de neuro divergência… Isso só mostra que todos os tipos de diversidade se encontram na inclusão.
Em outras palavras, não existe luta solitária quando o assunto é diversidade. Só que não temos repertório para lidar com o diferente, com alguém “fora do padrão” para nós. Isso porque a sociedade só nos prepara para acolher quem é igual a gente. No currículo, não existe, por exemplo, uma disciplina chamada ‘Inclusão’ ou ‘Diversidade’.
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E são os pais que devem exigir isso das escolas, porque não adianta educar a criança para a diversidade, quando não se cria uma criança na diversidade. É preciso incluir amiguinhos pretos, autistas, cadeirantes, surdos… para que a criança cresça entendendo que somos de várias maneiras e que tudo bem ser diferente.
Só assim deixaremos de ficar perdidos quando nos deparamos com pessoas diversas do padrão. No banco, na farmácia, no restaurante, se entra uma pessoa trans, uma pessoa com cabelo diferente, que anda diferente, todo mundo fica ressabiado, olhando de soslaio… Este modo de estar na vida é muito limitador, tira de nós a possibilidade de enriquecer, de nos tornarmos pessoas mais receptivas, respeitosas, amorosas, acolhedoras, igualitárias, características que surgem de um projeto de educação que as famílias devem ter, bem como as escolas.
Letramento ancestral
Conhecer de onde se vem é também fundamental. Não tem como fugir da África, das pessoas importantes para a cultura africana, para a cultura afro-brasileira. Precisamos olhar para a dimensão afetiva do homem preto. O machismo afastou o homem do cuidado. A ideia do homem distante do cuidado é ocidental.
A cultura africana é de matriz matriarcal, a mulher é central. No povo Dagara, por exemplo, a mulher busca mantimentos, água… enquanto o homem fica paternando. Mas como o homem preto brasileiro não conhece sua própria cultura, acaba assimilando o jeito ocidental de existir.. O patriarcado não é o lugar do homem preto.
O patriarcado não é o lugar do homem preto.
A ancestralidade africana entende que não existe emancipação masculina descolada da emancipação feminina. No Brasil, quando se fala em gênero, todo mundo pensa em feminismo, mas a África nos apresenta o mulherismo africana, que é regido principalmente pelo princípio da unidade, chamado Umoja, o “feminismo” que acolhe o ser negro.
Existe machismo na África? Sim. Apenas dois dos 55 países que formam o continente africano não foram colonizados – Etiópia e Libéria.
Voltar a vir a ser…
Adinkras, itans e provérbios africanos são caminhos essenciais para compreendermos a cultura negra. Por meio desses conhecimentos, o povo preto pode recuperar o orgulho de ser quem é. Não é por acaso que o psiquiatra Frantz Fanon, nos ensina que o senso de pertencimento é essencial para que se tenha um senso de valor…
Símbolos dos povos de língua Akan da África Ocidental, em Gana, os adinkras são ideogramas e refletem modos de viver. Sankofa é um adinkra, representado como um pássaro mítico que voa para frente, tendo a cabeça voltada para trás e carregando no seu bico um ovo, o futuro. Sankofa ensina sobre a possibilidade de voltar atrás, às nossas raízes, para realizar nosso potencial, para avançar. Sankofa expressa a busca de sabedoria em aprender com o passado para entender o presente e moldar o futuro.
Outro adinkra Menso Wo Kenten – ‘eu não vou carregar sua cesta’ – ensina que, no trabalho e na vida, é importante focarmos no nosso próprio caminho, porque ninguém mais pode fazer isso por nós. Cada um deve determinar quem é, de que forma trabalha, o que traz, qual é sua proposta e não fazer o que o outro diz.
Itans, palavra de origem iorubá, são ensinamentos dos orixás contidos na mitologia africana, nas filosofias africanas. Quanto aos provérbios, são expressões do dia a dia, que se originam de experiências humanas, embutem sabedoria, valores e princípios de um povo que devem ser resgatados, também porque contam dos que vieram antes.
Há muita riqueza na cultura africana e é preciso resgatá-la para a construção e sedimentação de nossa auto estima. Resgate do que for possível do nosso passado, conscientes de que não conseguiremos tudo… Muitos de nós nunca receberão ensinamentos diretos de seus bisavós, avós, mas sempre teremos as suas histórias…
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O povo preto não veio de um continente miserável. Ao contrário. É da África a base de todas as nações, de toda a humanidade. Filosofia, Matemática, Escrita, Arquitetura, tudo nasce em África e é apropriado pelo Ocidente. A escravização do povo preto não foi ao acaso, de modo aleatório, profissionais de ponta do garimpo e da agricultura – para citar só dois exemplos – garantiram a riqueza do Brasil.
Neste trabalho de voltar a vir a ser, também, a questão de nossos nomes. O historiador Runoko Rashidi mostra que temos nomes e sobrenomes dados por estupradores e saqueadores dos povos pretos africanos. Sendo assim, por que não adotar um nome africano, um nome próprio de verdade?
Esse é um movimento que cresce no Brasil. Várias pessoas pretas dando nome africano ao filho e a si próprias… É possível ir no cartório e se renomear, é um direito que todos nós temos e é um resgate ancestral.
Aquilombamento
É outro pilar do coletivo, a reunião de pessoas pretas para falar de suas dores. No Brasil não existe esse lugar – nem a escola nem a empresa nem a igreja oferecem esse espaço. A igreja, aliás, diz que a África é lugar de demônio.
Pais Pretos entendem que a vida em comunidade entre pessoas pretas, que buscam o letramento ancestral e a compreensão acerca da realidade racial brasileira, é uma necessidade e tem promovido o aquilombamento virtual em grupos nas redes sociais – grupos de mães pretas, pais pretos, mães e pais pretos, educadores… O compartilhamento de informação acontece também via YouTube e Spotify
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Representatividade é outro ponto a ser cuidado quando se vive em uma sociedade forjada na desumanização do povo preto, que nos coloca ora na criminalidade, ora na subalternidade, ora na invisibilidade… É importante que nos reconheçamos em outros lugares, precisamos nos ver uns aos outros na vida.
Atualmente, as redes sociais têm feito esse papel. Humberto lembra,também, que em 2019, uma conta no Instagram, criada para divulgar fotos das famílias que participavam do Pais Pretos, transformou-se em um espaço de gratidão. Ele não imaginava que pessoas pretas não estavam acostumadas a se ver, se sentiam invisíveis, ou melhor, visíveis só nas notícias de crime e nos papéis de inferioridade.
Fontes: Lupa do Bem, Pais Pretos Presentes, Terra, Pais e Filhos, live @vidasautistas com Humberto Baltar em 10/08/2023
Agosto 2023
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