Há controvérsias sobre a autoria do que se alardeia ser o primeiro samba gravado. Uma típica brincadeira do “telefone sem fio”, que não se sustenta do início ao fim.
O que este artigo responde:
Qual é o pioneirismo da música “Pelo Telefone”?
Quem compôs “Pelo Telefone”?
Quando foi a primeira gravação de “Pelo Telefone”?
Por que “Pelo Telefone” é considerada tão importante?
“Pelo Telefone” é mesmo o primeiro samba gravado?
Qual a controvérsia envolve o samba “Pelo Telefone”?
Donga compôs a letra ou a melodia de “Pelo Telefone”?
Quantos sambas haviam sido gravados antes de “Pelo Telefone”?
Como surgiu o samba “Pelo Telefone”?
O primeiro samba gravado não é Pelo Telefone – esta é apenas a história oficial, construída a partir dos registros existentes na Biblioteca Nacional, embora existam registros de gravações anteriores desde 1904 – pelo menos sete deles. Entre eles, Samba – Em Casa da Bahiana, de 1912, e Samba do Urubu ou Urubu Malandro, gravado pela primeira vez em 1914, que não fizeram sucesso.
Recontar = resistir
Como em toda a história do negro no Brasil, sobram versões “colonizadas”, perseguições policiais e multiplica-se a nossa resistência. Com o samba não foi diferente e o jeito de driblar a “antipatia das autoridades brancas” era buscar lugares estratégicos, pouco vulneráveis, para perseverar sem perder o tom.
A residência do casal Hilária Batista de Almeida e João Batista da Silva é um desses lugares – ela, babalaô mirim respeitada, conhecida como Tia Ciata; ele, chefe de gabinete do chefe de polícia no governo Venceslau Brás.
Ao mesmo tempo em que, na sala de visitas, aconteciam bailes com polcas, lundus e outras músicas e danças consideradas “respeitáveis”, nos fundos, a elite negra da ginga e do sapateado e os negros mais velhos se dividiam entre o samba de partido alto ou samba raiado e a batucada com elementos religiosos.
Assim surgiu Pelo Telefone, de Donga, o primeiro samba gravado, parido no quintal da casa da Tia Ciata.
Quer dizer…
História mal contada
Pelo Telefone, que não é bem o primeiro samba gravado, mas o primeiro samba gravado de sucesso, é verdade, nasceu na casa da Tia Ciata, mas Donga não estava sozinho no quintal.
Acontecia uma roda de partido alto, ou seja, pessoas sentadas em círculo improvisavam versos, uma de cada vez. E havia, pelo menos, seis compositores. Entre eles, João da Baiana, Pixinguinha, Caninha, Hilário Jovino Ferreira e Sinhô.
Mas o fato é que em 27 de novembro de 1916, a partitura da música foi registrada no Departamento de Direitos Autorais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro em nome de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, na época um compositor de apenas 26 anos.
E Donga não nega. Ao contrário. Justifica sua atitude com uma máxima atribuída a Sinhô: “Música é como passarinho, de quem pegar primeiro”.
De acordo com a Biblioteca Nacional, Donga entregou a petição de registro para o samba em 6 de novembro de 1916. Anexada ao processo estava uma partitura manuscrita para piano assinada por Pixinguinha. Dez dias depois, o mesmo Donga anexou um atestado que afirmava que o samba havia sido executado pela primeira vez em 25 de outubro de 1916, no Cine-Theatro Velho.
A inspiração
Segundo depoimento para o Museu da Imagem e do Som, a música surge de uma paródia feita pelos jornalistas do jornal A Noite, em 1913.
Os repórteres tinham posto uma roleta no Largo da Carioca para demonstrar a tolerância da polícia com o jogo e o chefe de polícia do Rio de Janeiro declarou, à época, que o jogo permaneceria liberado “até que o governo resolvesse o contrário”.
“O chefe da polícia pelo telefone manda me avisar
Que na Carioca tem uma roleta para se jogar
Ai, ai, ai,
Deixa as mágoas para trás ó rapaz
Ai, ai, ai,
Fica triste se és capaz, e verás.
Ai, ai, ai,
Tomara que tu apanhes
Pra nunca mais fazer isso
Roubar amores dos outros
E depois fazer feitiço.
Ai, a rolinha / Sinhô, Sinhô
Se embaraçou / Sinhô, Sinhô
Caiu no laço / Sinhô, Sinhô
Do nosso amor / Sinhô, Sinhô
Porque esse samba, /Sinhô, Sinhô
É de arrepiar, /Sinhô, Sinhô
Põe a perna bamba / Sinhô, Sinhô
Mas faz gozar / Sinhô, Sinhô…”
Mudança de status
Como tudo acaba em samba, com a paródia não foi diferente e Pelo Telefone estourou no Carnaval de 1917, fazendo o samba mudar de patamar, por começar a pesar na balança musical e comercial, até tornar-se, nos anos 1930, 1940, o gênero de maior popularidade em todo país.
Antes de Pelo Telefone, pesquisadores de música contam que, pelo menos nove sambas haviam sido gravados, mas nenhum deles teve o mesmo apelo popular nem alcançou tamanho o sucesso.
Em Casa de Baiana, 1913, e A Viola Está Magoda, 1914, por exemplo, foram gravadas antes de Pelo Telefone na indústria fonográfica.
À margem
O samba chegou lá antes dos sambistas, antes do povo negro…
Depois de Pelo Telefone, todos continuaram sustentando grande parte do repertório dos cantores de rádio, mas sem reconhecimento econômico-financeiro ou de autoria.
Os sambistas vendiam suas músicas para intérpretes influentes na tentativa de chegar às gravadoras e, consequentemente, à profissionalização. Mas, no meio do caminho, a autoria original desaparecia!
Enquanto isso, no carnaval, os negros adquiriam, alegoricamente, o status negado o ano inteiro. A sociedade – que nos olhava e, ainda, nos olha como desordeiros, marginais – nos via lindamente trajados, organizados e não resistia em nos aplaudir.
Ernesto Joaquim Maria dos Santos, o Donga, nasceu em 5 de abril de 1890 e morreu em 25 de setembro de 1974. Viveu 84 anos.
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Fontes: Exposição Pequenas Áfricas – O samba que o rio inventou – Instituto Moreira Salles, Balada Literária
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Escrito em fevereiro de 2021 e atualizado em janeiro de 2024.
Vc me representa!!!
<3
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