Saúde, nutrição, alimentação, cuidado, autocuidado…
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Durante duas horas falamos de vida, vida na vida e vida além da vida, vida antes da vida…. De ancestralidade, África, saúde, alimentação, cuidado e autocuidado, racismo, capitalismo, trabalho, caminhos, justiça….
Eu apresento Rayane Stephanie Gomes de Freitas, @nutri.rayanefreitas no Instagram. Mulher negra – é a primeira informação que consta de todas as suas mini bios e ela explica por que:
“Pra ninguém ter dúvida.
É o meu posicionamento político.
Eu preciso existir”.
Como área de estudo, ela escolhe a Nutrição. Isso, na adolescência. E, assim que conclui o 8º ano, entra no Técnico:
“Eu lembro que, no Ensino Fundamental, lendo umas coisas de que vitamina C impede que as pessoas tenham escorbuto (doença rara, associada à desnutrição), eu pensei: ‘gente, é isso aqui’. Sempre fui muito nerd na escola, nota 10.”
Em resumo: Com pouco mais de 30 anos, ela é Doutora e Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-graduação em Nutrição da Universidade Federal de São Paulo – Unifesp. Trabalha como associada na PACTO Organizações Regenerativas, onde atua com gestão executiva e pesquisa em Monitoramento, Avaliação e Aprendizagem. É uma liderança em Primeira Infância pelo ‘Executive Leadership Program in Early Childhood’ do NCPI e Harvard University. Liderança feminina formada pelo Programa Take the lead’ da Cornell University. Finalista no Prêmio Eliete Salomon Tudisco de Profissional Destaque 2024 pelo Conselho Regional de Nutrição do Estado de São Paulo/Mato Grosso do Sul. Tudo isso, no trabalho. E tem muito mais…
O ser ancestral
Nossa entrevistada tem nome e bisavó indígena. Rayane significa “o primeiro raio do sol da manhã” e sua proposta de vida – mesmo que não diga com estas palavras – é ser multiplicadora de seus saberes adquiridos por meio de muito estudo e na batida do tambor.
Nossa conversa acontece dias depois de Rayne ter voltado de Joanesburgo, capital da África do Sul. Ela tinha planos de ir à África, mas esta viagem aconteceu de repente, sem planejamento – uma semana antes de pegar o avião, a trabalho.
E, naturalmente, Rayane ainda está impactada pela experiência. Pelo tanto de Brasil que encontrou na África, pela ação colonizadora e devastadora daquele território… A percepção é de que “estamos em melhor situação no Brasil”…
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Primeiros Negros: Rayane Stephanie Gomes de Freitas – como surge a ideia do seu nome?
Rayane de Freitas: Minha mãe é oriunda das classes populares, que gostam de nomes duplos. O nome ‘Stephanie’, ela viu numa revista quando estava grávida e decidiu: “Vai ser o segundo nome”. O ‘Rayane’ é de origem indígena. Quer dizer ‘primeiro raio de sol da manhã’.
PN: Que lindo chamar assim! Você é o próprio despertar da vida! Quando você acorda, a vida se ilumina… Você tem indígena na família?
Rayane: Minha bisavó. Mas eu fiz o teste da ancestralidade, pelo DNA. Minha origem é majoritariamente bantu-congo, da região da Costa da Mina, assim como meu pai.
PN: Por que vocês fizeram o teste de ancestralidade?
Rayane: A gente não tinha notícia nenhuma da nossa ancestralidade. E eu tinha muito essa vontade de entender. Meu pai não teve pai – como muitas das famílias negras. Ele não tem registro, fotos, nada. A mãe dele morreu muito cedo. Minha mãe vem de uma família nordestina, que é outra complexidade, e tem esse apagamento também. Então fomos descobrir, pelos nossos genes, de onde viemos.
PN: E como acontece esse existir ancestral no seu dia a dia?
Rayane: Primeiro, eu tive um movimento de letramento racial muito grande. Eu quis entender melhor o que tudo isso significava na minha vida. Fazendo pesquisas acadêmicas, acessei muitos referenciais e mergulhei fundo. No trabalho, também, a gente tem a intenção de fazer o melhor possível na abordagem racial nas nossas pesquisas e projetos. E eu sou batuqueira do maracatu, eu toco alfaia, tambor. E, com o tambor, a gente chega em lugares em que nada mais chega…
PN: O tambor chega em lugares… O que quer dizer?
Rayane: Antes de entrar no Quiloa, o maracatu, eu não tocava nenhum instrumento. E lembro, uma vez, que me disseram que temos muita coisa adormecida, em nós, que só precisam acordar. Era uma referência às coisas ligadas à ancestralidade. O tambor me despertou de uma forma transformadora. É assim que eu sinto. O instrumento me conecta com os que vieram antes, mas também me deixa atenta para o auto cuidado e o cuidado com o próximo. O maracatu é um quilombo.
PN: O maracatu é um quilombo? Explica.
Rayane: A gente se cuida de várias formas. Eu, por exemplo, faço mentoria de carreira para ajudar, tutoria de projetos, palestra sobre alimentação saudável… O cuidado está no centro, que é diferente da lógica da sociedade, que é explorar você, adoecer você… O tambor me proporciona estar em comunidade, desenvolver este senso de comunidade, entender a conexão comunidade-ancestralidade. A gente não vive nem sobrevive sozinho. É impossível. E tudo desperta em mim a partir do instrumento, de tocar junto.
PN: Do ponto de vista espiritual, quem é Rayane?
Rayane: Eu venho percorrendo um caminho espiritual não excludente. Eu nasci em uma casa de pessoas católicas, que depois foram para o Kardecismo e, nos últimos anos, se voltam para o espiritualismo de matriz africana, por meio do maracatu. O maracatu é o candomblé na rua. A gente não toca tambor. A gente coloca o candomblé na rua e toca para os orixás. E isso é muito forte. A minha espiritualidade é uma construção de conhecimento sobre o outro, sobre mim, sobre as circunstâncias…
África
PN: Você queria conhecer a África?
Rayane: Sempre esteve nos meus planos, mas acabei indo em uma viagem surpresa, a trabalho. Na verdade, acabei de chegar da África do Sul, de Johanesburgo. Fiquei nove dias.
PN: Como foi a experiência de estar na África?
Rayane: Eu viajei como pesquisadora. Fiz muitas entrevistas. Senti um patriarcado muito bem estabelecido, muito forte… As pessoas se referindo a ele como algo a ser combatido. Outro ponto interessante é a consciência do racismo que existe na África do Sul. Todo mundo tem consciência dele por conta do regime de segregação racial que vigorou por quase 50 anos no país.
PN: Lá não existe a ideia de democracia racial. É isso?
Rayane: Exatamente. Existe racismo. Todo mundo sabe e se posiciona. Não é como aqui, velado. E a gente sabe que quanto mais sutil o racismo, mais efetivo ele é. Lá, ninguém se distrai, como no Brasil. Eles têm uma história de segregação racial e eu senti que eles não deixam nem querem que essa história caia no esquecimento.
Relembrando e refletindo…
Entre 1948 e 1994, a África do Sul viveu o regime do apartheid. Com ele, por lei, as pessoas negras foram forçadas a morar em áreas isoladas e impedidas de circular livremente na terra onde nasceram.
Passados mais de 30 anos do fim do regime, as cicatrizes da segregação racial e seus efeitos seguem pulsantes na sociedade.
Nem a eleição de Nelson Mandela, o primeiro presidente negro da nação, pôs fim às desigualdades, semeadas a partir de uma estrutura educacional discriminatória, cruel e de omissão dos fatos que compõem a real história do país.
E nós sabemos que, qualquer semelhança, não é mera coincidência.
PN: E o poder político. Está nas mãos de quem?
Rayane: Percebi que eles são bem críticos em relação a isso. Há um pouco de desalento com os políticos. A gente coloca um ativista no poder e, aí, ele não faz o que a gente gostaria que fizesse. Senti muito esse descontentamento com as pessoas com quem conversei.
PN: Ir à África estava nos seus planos?
Rayane: Estava nos nossos planos – nos meus e nos do meu companheiro, um homem negro. Surgiu a oportunidade uma semana antes da viagem. Precisei arrumar um monte de coisa, de logística mesmo, e a minha própria mente. Eu queria muito. E chegar lá, pensar que eu estava voltando, pensar que eu era a primeira pessoa da minha família que estava voltando, me fez refletir demais. Foi emocionante.
PN: O que passou pela sua cabeça?
Rayane: Eu fiquei pensando o quanto que meus ancestrais desejaram esse momento. Eu sabia que não estava chegando para ficar, mas fiquei pensando o quanto eles quiseram voltar… Isso foi muito forte, potente.
PN: Você viu o Brasil na África do Sul?
Rayane: A questão da colonização, de como ela produziu efeitos, lá e cá, é marcante. A gente não imagina como acontece. Ver com os próprios olhos uma periferia na África e perceber que ela tem muito a ver com as nossas periferias, com indicativos de saúde pública precários… É tudo muito semelhante. E, em alguns aspectos, a percepção é que o Brasil se desenvolveu mais!!! É difícil perceber em qual curva da colonização a história se perdeu… Depois desta viagem, estou repensando tudo o que eu sei sobre colonização, tudo que eu já estudei, vi, pesquisei…
PN: As favelas de lá são iguais às favelas de cá?
Rayane: São diferentes. Eles têm uma estrutura de planejamento urbano de várias pequenas casas dentro de uma mesma área. Como se fosse um quintal com várias pequenas casas, com de 7 a 9 famílias.
Refletindo…
Há pouco tempo, escrevi sobre a Partilha da África. E penso que este é um ponto para se entender a diferença entre a colonização no continente africano e no Brasil, terra invadida e apropriada pelos e para os colonizadores.
Já a riqueza maior para o mundo está na África e o objetivo, desde sempre, é extrair todos os recursos naturais e escravizar os recursos humanos para “criar” as novas nações, como os melhores profissionais da agricultura e engenheiros dde minas, geólogos…
Se de Portugal veio para cá a escória da população. Da África, veio para cá a realeza e os profissionais de ponta.
Os exploradores de lá seguem enriquecendo como se lá humanos não houvesse, como se o continente, berço da humanidade, tivesse sido, criado para deleite do resto do mundo.
É como sustenta o egiptólogo africano Cheikh Anta Diop, toda a riqueza cultural, ancestral, científica, mineral, de existência – explorada e usurpada ao longo dos séculos pelas nações ditas civilizadas e desenvolvidas – têm como fonte primeira a África. E o chamado “racismo” tem, em sua essência, a disputa por poder, terra e recursos.
PN: O que exatamente você fez na África do Sul?
Rayane: Onde eu trabalho, fazemos pesquisas de avaliação e monitoramento em várias áreas: Primeira Infância, Mudanças Climáticas, Educação, Saúde… E, desta vez, fomos entrevistar organizações do sul global, em específico da África Austral, dentro de um projeto para uma grande fundação que está investigando resiliência e ecossistemas de filantropia na região.Tive contato com ativistas, fui escutar o que têm a dizer, suas problematizações…
PN: Por exemplo?
Rayane: “Descolonizar” é uma questão para eles. Não é uma palavra que gostem. Isso porque existe o pensamento de romper com o norte global, com a dependência financeira. E, muitas vezes, essa palavra é usada a serviço do norte global… Há muita controvérsia…
PN: O que chamou mais a sua atenção?
Rayane: A potência. Lá, tem doze idiomas oficiais. E o moço que dirigia pra gente falava nove idiomas! Quer dizer, em comparação com a gente, que se acha o máximo falando dois! Ter o domínio de doze idiomas tem a ver com potência, inteligência, compreensão, e é algo natural.
Vida acadêmica
PN: Toda a pesquisa, tanto do seu Mestrado como do seu Doutorado, foi na área de Nutrição?
Rayane: Meu Mestrado e Doutorado foram voltados a compreender doenças transmitidas por alimentos, a partir de uma lógica sociológica de precarização do trabalho e humanização do trabalhador. Precisei estudar, também, psicologia para entender o que as relações de trabalho produzem nos trabalhadores.Toda a pesquisa me mostrou outro mundo. Descortinou muita coisa e acabou por me encaminhar para as questões de raça e gênero, que acabaram entrando no meu Doutorado.
PN: Como você fez o filtro para a sua pesquisa? Qual categoria profissional você pesquisou?
Rayane: Precarização do trabalho e segurança alimentar. Hábitos de trabalhadores de cozinha no Mestrado. E, no Doutorado, a minha tese foi uma pergunta retórica: Por que os trabalhadores de cozinha não colocam em prática aquilo que aprendem no treinamento de segurança dos alimentos? Escolhi a pergunta porque, na Nutrição, o trabalhador de cozinha é culpabilizado por tudo. Acontece uma contaminação, é o trabalhador. Mas a pesquisa mostra que não é o trabalhador. A gente tem que olhar para a estrutura, para a liderança, para o gerente do restaurante, para o como se estabelecem as relações dentro daquele ambiente. O trabalhador, há décadas, está sendo culpabilizado porque ele é a parte mais frágil.
PN: Qual é a característica do trabalho em cozinha?
Rayane: Os trabalhadores de cozinha são pessoas totalmente invisibilizadas. Que trabalham em pé o dia todo, em um ambiente extremamente quente, mexendo e carregando peso e que vivem, ainda, além do esforço e desgaste físico, em um ambiente de violências simbólicas – às vezes, é só um olhar e a pessoa já se sente oprimida. Isso ninguém fala dentro da Nutrição. Nisso, eu sou pioneira. Ninguém fez um trabalho como este nem na Unifesp nem em lugar nenhum.
PN: E quem deu continuidade aos seus estudos na universidade?
Rayane: Quem? Mesmo durante o Mestrado e Doutorado inteiros, a ausência de referenciais negros era um dado. Quase não havia professor negro, colegas negros… A realidade é de um percurso solitário... É preciso autodeterminação para ir até o fim. Sozinha na academia e numa área totalmente embranquecida. Há alguns anos atrás, era mais de 90% o percentual de nutricionistas brancos no Brasil segundo o Conselho Federal de Nutrição. Na saúde, também, há um apagamento das questões de raça e gênero.
Refletindo…
A solidão da mulher negra é em todos os espaços. Seja nos trabalhos mais simples, seja nos postos de comando, seja na academia… Babá, cozinheira, mestranda, gerente, diretora de empresa…
PN: Você continua a atuar na área de Nutrição?
Rayane: Meu trabalho não tem nada a ver com Nutrição, mas eu alcancei um nível de produção, dentro da Nutrição, que o assunto faz parte de mim – leio muito, falo, faço palestra, roda de conversa… E isso, de fazer várias coisas ao mesmo tempo, é muito das pessoas negras. Sou pesquisadora, nutricionista, batuqueira, consultora, especialista em saúde da população negra, autocuidado de mulheres negras e relações étnico-raciais… E é um desafio se mostrar para o mundo com todas as suas potências – a branquitude tem dificuldade de entender que você não é só uma coisa.
Saúde
PN: Qual a sua abordagem sobre saúde e nutrição da população negra?
Rayane: Eu gosto de apresentar um panorama. Mostrar números, as políticas que existem, os caminhos possíveis para avançarmos. A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, uma política do Sistema Único de Saúde – SUS, foi aprovada em 2009 e a implementação é baixíssima.
PN: Para onde o Estado está olhando, quando se fala da saúde da população negra? Qual é o seu diagnóstico?
Rayane: Não se fala de raça e racismo em saúde. É um campo muito conservador, de difícil penetração para as pautas raciais. E existem casos de racismo sérios, que têm a ver com o profissional de saúde. Daí a importância do letramento racial do servidor público.
PN: Quando a gente fala em racismo na saúde, está falando de que?
Rayane: A gente está falando em usar menos anestesia, de racismo obstétrico, de quem vai ser considerado quando disser que está com dor, de tratamento diferenciado nas filas, de quem vai ser atendido primeiro, de quem vai merecer maior atenção pela sua vulnerabilidade dentro do sistema de saúde…
Racismo alimentar
PN: Existe racismo alimentar?
Rayane: Ainda não é um termo estabelecido academicamente, não existem teóricos escrevendo a respeito, mas empiricamente a gente entende o que é o racismo alimentar no Brasil. E ele se manifesta a partir do modelo de alimentação no Brasil. A indústria da alimentação é fortíssima, gigante, e a gente vê a dominação pelos produtos ultraprocessados, que são produtos de baixíssima qualidade nutricional.
PN: Qual é o problema dos alimentos ultraprocessados?
Rayane: Estudos mostram que produtos ultraprocessados aumentam os riscos de diabetes, de hipertensão, doenças cardiovasculares e até a conexão com transtornos mentais, como a ansiedade e depressão. E quem consome mais os ultraprocessados são as pessoas de baixa renda.
PN: Por que isso acontece?
Rayane: Tem todo um desenho, do sistema capitalista, de fazer com que esses alimentos sejam atrativos, seja pelo marketing, seja pelo sabor. Temos visto, ainda, pequenos negócios fechando porque as grandes redes de alimentação, que investem em ultraprocessados, têm preços mais competitivos, que é outra questão que temos de olhar… Fora isso, tem a desapropriação de coisas que são nossas, culturais, como o arroz e feijão, a nossa comida saudável.
PN: Quais os outros indicadores do racismo alimentar?
Rayane: A gente pode olhar a qualidade das dietas da periferia, a gente pode olhar para o quanto uma pessoa periférica precisa andar para chegar na feira livre, ter acesso a alimentos in natura, podemos olhar para a qualidade dos alimentos que estão na merenda escolar – ultraprocessados, muitas vezes; para a cesta básica. O consumo de ultraprocessados faz as pessoas adoecerem. A gente tem um número gigantesco de mortes de pessoas por doenças crônicas não transmissíveis. E tudo isso tem muita ligação com a alimentação.
PN: Onde a gente deveria aprender sobre alimentação?
Rayane: A gente tinha que aprender na escola, nos anos iniciais, no Ensino Fundamental. Alimentação tinha que ser pauta recorrente porque a gente não vai parar de se alimentar até morrer e o campo da alimentação se modifica ao longo dos anos.
PN: Mas não tem o “alfabeto” da alimentação? As palavras podem mudar, mas o alfabeto é sempre o mesmo.
Rayane: Sim. Para mim, o “alfabeto” da alimentação está no Guia Alimentar da População Brasileira, que é do Ministério da Saúde e está disponível na internet.
Refletindo…
A palavra “disponível” sugere que algo pode ser acessado ou utilizado, mas isso não significa que todas as pessoas saibam da sua existência ou tenham meios para acessá-lo. Se uma informação está “disponível na internet”, quer dizer apenas que ela pode ser encontrada.
Além disso, a internet tem mecanismos que influenciam a acessibilidade da informação, como algoritmos, barreiras de linguagem, censura… Então, o que está “disponível” para uns pode ser invisível para outros.
“Estar disponível na internet” dá a falsa ideia de que uma informação é de conhecimento geral. Mas o fato de algo existir na internet não significa que seja realmente acessível ou utilizável para qualquer um.
PN: Como driblar a falsa ideia de que uma informação é de conhecimento geral só porque está “disponível na internet”?
Rayane: Eu me movimento para contar para as pessoas que existe esse guia. Ele é excelente, fala sobre a escolha de alimentos, o ato de comer, propõe um passo a passo para a alimentação saudável… Explica tudo em linguagem acessível. É ilustrado. Serviu de inspiração para o guia de outros países depois da sua publicação. É uma ferramenta incrível que todo mundo precisa conhecer.
Acesse aqui as 158 páginas do Guia Alimentar da População Brasileira.
PN: Não seria mais efetivo entregar o guia de mão em mão, no ponto do ônibus, na escola, do que deixar “disponível” na internet?
Rayane: Sim. Sem contar que, hoje, precisa ter um influencer falando para chamar atenção. Por isso, faz sentido, também, a gente fazer trocas de qualidade, olho no olho. Faz sentido aquilombar.
Ato político
PN: O que é alimentação saudável?
Rayane: Tem a ver com as escolhas que a gente faz. É comer como ato político. Tem a ver com quem pode escolher, como está escolhendo, onde está comprando… Inclui um olhar para o sistema alimentar.
PN: Explique melhor “comer como um ato político”?
Rayane: A lógica da comunidade, da agroecologia, é vanguarda. Produzir alimento sem agrotóxico, circulando sementes uns com os outros e fazendo um trabalho de popularizar a mensagem da agricultura familiar é estar à frente do nosso tempo. Eu conheço quem planta as minhas verduras, os meus legumes. E é isso que a gente perde num supermercado grande ou em uma feira tradicional…
PN: E o preço…
Rayane: O preço é um pouco maior. Mas quando a gente coloca na balança o que a gente ganha apoiando… Tem muita gente que não pode escolher o que compra, mas quando a gente pode escolher, deve destinar o dinheiro para esse tipo de iniciativa… É outra lógica de consumo. Na agricultura familiar tem a sazonalidade. É o tempo das coisas. É o tempo da natureza.
PN: Como resgatar a nossa raiz ancestral na alimentação?
Rayane: Tem uma discussão interessante sobre Plantas Alimentícias Não Convencionais – as PANCs, que têm potencial alimentício e não fazem parte do nosso cardápio. Aí, vale perguntar: “Não convencional” para quem? Isso porque os nossos ancestrais comem essas plantas, como ora-pró-nobis, há milhares de anos. Precisamos pensar no que é nosso e que a gente perde tão fácil. Isso repercute na nossa saúde diretamente.
Detalhando…
As partes comestíveis do ora-pro-nóbis são: folhas, frutos, flores e brotos As folhas e as flores jovens sem espinhos podem ser consumidas de diversas formas, em saladas cruas, refogadas, cozidas, em sopas, tortas, omelete, polenta e até mesmo no arroz com feijão.
E tem, ainda, o fruto da vitória-régia, o coração e as flores da bananeira, as cascas da banana, a banana verde, a folha da batata-doce, o mamão verde e seu talo, a jaca verde…
PN: O que o estilo de vida e a alimentação produzem no corpo negro?
Rayane: Empregos precários, jornadas de trabalho gigantescas, humilhações, tudo o que o racismo provoca no campo psicológico, aliado a uma alimentação que não é saudável, vira uma grande bomba-relógio para todas as doenças crônicas.
PN: Dá para avançar sem depender de políticas públicas?
Rayane: A meu ver, existe uma possibilidade dentro da lógica de comunidade. Eu sou uma pessoa negra que tem acesso a muito conhecimento, para entender estas questões. E eu sou capaz de explicar para os outros. Seja no maracatu, do qual eu faço parte, seja em conversas individuais, seja em mentorias… Eu vou fazer esse conhecimento circular, não vai ficar só comigo.
Refletindo…
No livro Revolução das Plantas, Stefano Mancuso, considerado fundador da neurobiologia vegetal, indica a autonomia energética como solução dos problemas que nos afligem. Ele se refere à arquitetura cooperativa das plantas, distribuída sem centros de comando, o que faz delas, as plantas, seres vivos capazes de resistir a repetidos eventos catastróficos e de se adaptar com rapidez a enormes mudanças ambientais. Para ele, esta é a revolução do futuro. Viver em rede, sem soltar a mão de ninguém.
Justiça
PN: Quais os caminhos na busca por justiça ambiental e alimentar, da violência contra a nossa saúde?
Rayane: O censo de comunidade é imprescindível… A gente só vai conseguir junto, pensando, elaborando, na inteligência coletiva, de nos ajudarmos, de um puxar o outro… Eu sou tutora da escola preparatória de pós graduação em humanidades na Universidade Federal do ABC. É um curso voltado a ajudar alunos negros, trans, indígenas, refugiados e de baixa renda para fazer Mestrado e Doutorado pelo país. É trabalho voluntário e um dos mais especiais da minha vida, de apresentar para uma pessoa negra que ela pode seguir a carreira acadêmica, quando a sociedade, o tempo todo, diz que não… O censo de comunidade é eu estar em um lugar, olhar para quem não chegou lá e me movimentar para que outros cheguem lá também. A gente não pode perder de vista de onde veio, as nossas raízes, de qual justiça social estamos em busca. Não podemos entrar no ‘modo branquitude’, do individualismo.
PN: Justiça reparativa também?
Rayane: É um caminho. Mas tem também a auto recuperação de cada um de nós. Pensando muito na escritora e ativista negra norte-americana bell hooks e nos conceitos que ela coloca pra gente pensar a nossa relação com o outro, a nossa relação com a alimentação, a nossa relação com o amor, com o patriarcado, com a cis-heteronormatividade. E isso perpassa muito conhecer o mundo a partir de lentes negras. A gente é muito exposto a lentes brancas. E isso requer esforço, energia… Precisamos buscar quem são as pessoas negras que estão falando de alimentação, de mudanças climáticas…
Este é o resultado de uma conversa de duas horas das mais agradáveis no dia 27 de fevereiro de 2025, na cidade de Santos, litoral paulista, onde nossa entrevistada nasceu no dia 21 janeiro de 1993, primeiro dia de aquário, como ela gosta de dizer, filha de Nilza e Luiz.
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