A vida está boa?
Sobra igualdade e equidade entre negros, negras e brancos?
Temos todos e todas as mesmas oportunidades?
Temos todos e todas oportunidades justas, adaptadas à nossa realidade histórica?
Representatividade importa para toda a humanidade.
Humanidade formada por pessoas, independentemente de orientação sexual, identidade de gênero, classe, religião, raça, idade, grau de instrução, dinheiro no banco…
Mas por que mesmo insistimos em eleger homens brancos se somos a maioria da população como negros e negras!?
Por que existe uma lei exigindo que os partidos políticos reservem 30% de suas vagas para candidaturas femininas se somos 51,8% da população e 52,49% do eleitorado feminino!?
Por que existe uma determinação do Supremo Tribunal Federal impondo que 30% do dinheiro público usado nas campanhas políticas sejam destinados às candidaturas negras, se somos 56,2% da população e 49,93% do eleitorado negro!?
Não é demais ressaltar que dinheiro público é dinheiro do povo brasileiro – em sua maioria formado por gente preta!
Qual é o nosso problema?
Somos sub representados porque nos fazemos invisíveis como cidadãs e como cidadãos negros.
Um pouco de história
O sistema era chamado voto censitário, baseado no poder econômico, com eleição indireta.
Voto negro
De acordo com Ane Ferrari Ramos Cajado, historiadora do Museu do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, no Império, a situação dos libertos (escravizados que conseguiram comprar a liberdade) e dos ingênuos (nascidos do ventre livre de mãe escrava) era controversa.
Os libertos podiam votar, tinham assegurada a cidadania brasileira. Mas a Constituição de 1824 nada mencionava sobre os ingênuos, abrindo espaço para a interpretação de que eles poderiam votar e ser votados.
Só que não havia unanimidade nesse entendimento, o que tornava ainda mais confusa a vida real. E tinha a questão do dinheiro…
Guilhotina
Em 1881, quer dizer, 57 anos depois, uma reforma eleitoral no Império, conhecida como Lei Saraiva, proibe também o voto do analfabeto, que pode votar durante a maior parte da história do Brasil.
Na verdade, a guilhotina caiu sobre os analfabetos por conta da questão racial.
“Escravos, mendigos e analfabetos não deveriam votar porque careciam de ilustração e patriotismo e não sabiam identificar o bem comum”
Argumentava Walter Costa Porto, ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral.
E tudo se torna explícito com a assinatura da Lei 3.353 que, em dois artigos – um em cada linha -, extingue a escravidão no Brasil, sem garantir qualquer direito aos libertos.
Racismo científico
Mas as leis Saraiva e Áurea não são as únicas responsáveis pela não participação dos negros na vida política do país.
Teorias cientificistas – que atestavam nossa inferioridade racial, a propensão natural para o crime, a vinculação com epidemias, entre outros estigmas construídos em torno da identidade negra – garantiram o sucesso dos supremacistas brancos.
Boa parte das elites intelectuais e políticas – juristas, engenheiros, médicos, jornalistas, professores e autoridades públicas – acredita que a presença de africanos e seus descendentes representa um obstáculo para a melhoria da raça, para a formação do povo e a prosperidade da nação!
A intolerância racial grassa no cotidiano, nos impedindo de frequentar cinemas, teatros, restaurantes, hotéis, clubes e escolas…
Na raça I
O jurista pernambucano Manoel da Motta Monteiro Lopes, com discurso racial afirmativo, consegue candidatar-se e ser eleito no final da primeira década do século XX . Seu desafio é tomar posse.
Para tal feito, enfrenta uma avalanche de protestos.
No final, o Brasil negro e antirracista garante a diplomação do primeiro deputado federal negro eleito na, então, capital do país, o Rio de Janeiro, em 1º de maio de 1909.
A “boa sociedade”, em situação de poder, encara o político preto como um outsider e permite sua candidatura na certeza de que não daria em nada. O único trabalho seria estigmatizá-lo, menosprezá-lo, tratá-lo como inferior. E assim fizeram. Mas ele enfrentou, superou e seguiu encarando o racismo de frente.
Mesmo transitando em vários ambientes – irmandade religiosa, maçonaria, agremiações partidárias, jornais, clubes, gabinetes, fóruns -, dominando a gramática da “boa sociedade”, com status de advogado e parlamentar, por causa da cor, Monteiro Lopes é impedido de entrar com sua esposa no suntuoso bar do Pavilhão de Regatas, para assistir às competições náuticas, e de se hospedar no Hotel Grindler, no Rio Grande do Sul.
O racismo à brasileira no período da Primeira República, como em pleno século XXI, é o mesmo, com ofensas cotidianas, a nós negros, desrespeito a direitos sociais e políticos e dificuldades de acesso ao mercado de trabalho formal, a escolas de qualidades e moradia digna.
Mesmo assim, vale frisar que Monteiro Lopes rompe com estereótipos impingidos ao negro nas primeiras décadas do pós-abolição.
Nada de alienação ou subalternidade.
E, sim, versatilidade, apropriação de direitos universais, cidadania e igualdade para fazer valer projetos, anseios e ideais.
Na raça II
O vereador quilombola Quintino de Lacerda, chefe do segundo maior quilombo do Brasil, o Jabaquara, passa por situação parecida a de Monteiro Lopes. Eleito o vereador mais votado de Santos, em 1895, precisa da Justiça de São Paulo para tomar posse e – por conta do racismo – torna-se não só o primeiro vereador, mas também o primeiro presidente negro da Câmara Municipal da cidade.
Tintino, como era conhecido, nasce escravo, na cidade de Itabaiana, em Sergipe, em 8 de junho de 1839. Alforriado pelo abolicionista Lacerda Franco, oito anos após ter sido comprado, trabalha como inspetor de quarteirão, administrador da Limpeza Pública Municipal, cozinheiro e é figura central nos movimentos sociais e debates políticos.
Os dois, nordestinos, por estranha coincidência, não conseguiram concluir seus mandatos. Morreram.
A história evidencia os nossos desafios e a resistência em se compartilhar poder, quando se está nele. Daí a responsabilidade maior, de cada pessoa sub representada, construir um futuro diferente, inclusivo, melhor.
Tem de ser na raça e no voto.
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