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Projeto Cabelo Afro Feminino

Selo PN Educação

Um ato político de autoamor no ambiente escolar voltado, em especial, às estudantes negras ou, como nos classifica o IBGE, “pretas e pardas”.

A percepção da baixa autoestima de suas alunas, sempre escondendo seus cabelos com toucas e bonés, e as várias formas de preconceito, racismo e discriminação no ambiente escolar motivaram o professor de filosofia Paulo Estevam a criar um projeto sobre o cabelo afro feminino para o Ensino Médio da  Escola Estadual República do Panamá.

Detectado o problema, Paulo Estevam apresentou a sua ideia na reunião de professores e Gestão da Aula de Trabalho Pedagógico Coletivo (ATPC), destacando as características do bairro onde a Escola Estadual República do Panamá, na Vila das Belezas, está inserida e a importância de trabalhar a auto imagem das meninas negras

A Vila das Belezas, entre os bairros Campo Limpo e Capão Redondo, está no distrito de Vila Andrade, na capital paulista. Distrito com a maior proporção de 

casas consideradas como favelas – 49% dos domicílios

segundo o Mapa da Desigualdade de 2019, da Rede Nossa São Paulo.

Apesar de arrecadar para a Prefeitura de São Paulo mais de R$ 200 milhões de IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano – 11º valor mais alto entre os 96 distritos da capital  –, o bairro da zona sul não tem direitos básicos sendo devolvidos na mesma medida em serviços e equipamentos públicos.

Passo a passo

O professor Paulo Estevam  disponibilizou para o PN Educação o passo a passo do seu projeto “Cabelo Afro Feminino”, bem como a repercussão entre os estudantes e os resultados alcançados para além da sala de aula. 

Público-alvo inicial: estudantes do Ensino Médio do 1º ao 3º anos

Idade: 15 a 17 anos 

Duração do encontro: 90 minutos

Preparação: Apresentação do projeto em sala de aula – um encontro dinâmico, com protagonismo dos estudantes -, salientando a importância do tema, com  espaço para pré-debate entre os alunos, com objetivo de identificar as questões de maior interesse dos estudantes.

Repercussão inicial:  De imediato, as alunas negras amaram o projeto. Mas a sala, no geral, entendeu que o projeto era somente para as meninas de cabelos cacheados, crespos, trançados ou em processo de transição.

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Esta percepção gerou a necessidade de se validação do público-alvo previamente identificado. Assim, optou-se pela abertura de uma lista para que cada aluno, cada aluna, democraticamente, manifestasse o interesse de participar – ou não – do projeto.

Na sequência, foram abertas inscrições para os estudantes interessados das três séries do Ensino Médio. Mais de 100 meninas negras – ou pretas e pardas, como identifica o IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – se inscreveram. 

Dinâmica: O encontro aconteceu no pátio da escola, no horário das aulas. Na abertura, a leitura de uma poesia sobre cabelo afro.

Em seguida, os convidados @Josyas barbershop e @Luizcelestino, especialistas em cabelos afros e referência na zona sul da capital paulista, falaram sobre o trabalho que realizam como profissionais, iniciando uma interação dialógica com as alunas para  perguntas e depoimentos.  

No encerramento, as estudantes falaram do tema em forma de arte e os cabeleireiros sortearam dois cortes de cabelo e duas tranças entre as participantes.

Abaixo, uma pequena amostra, quando se tem lugar de fala:

Poesias de Alunas (Imagem: Fotografia reprodução e Montagem Primeiros Negros)
Poesias de Alunas (Imagem: Fotografia reprodução e Montagem Primeiros Negros)
Foto Poesia Daniele

“Pretinha do cabelinho duro” 

– essa foi a frase que me definia durante muitos anos.

Durante toda minha vida e experiência escolar, 

era isso que eu era obrigada a escutar.

Mas como você diz pra uma criança de 7 anos que ela é diferente das outras?

Como você diz para ela que ela é vista sempre como inferior?

Sempre vista como uma ameaça, 

e que a história de sua vida seja baseada em desgraça.

A ignorância é fruto da inconstância,

 inconstância da luta a favor da liberdade, 

das escolas não ensinarem a verdade.

Porque depois de tudo que eu passei na vida,

Tenho que ser obrigada a escutar que a mulher branca e rica, 

salvou meus antepassados da escravidão.

Que ela sozinha teve pena e compaixão.

“Pretinha do cabelo duro” 

Mas é uma pretinha de pele clara do cabelo cacheado

 e do corpinho desenhado.

É linda essa miscigenação.

Se vocês soubessem da metade da história,

sentiriam o embrulho no estômago a cada palavra banhada de sangue, 

dos chicotes que doem até hoje, dos açoites dos senhores da escravidão.”

(autora: Daiele Nicole Cunha dos Santos, 2º ano do Ensino Médio)

Poesia de Rayssa Dias da Rocha, 2º ano do Ensino Médio. (Imagem: Arte Primeiros Negros, Fotografia reprodução)

Moça, não prenda essa alegria de poesia dos seus cachos,

solte essa vida ao vento,não sinta vergonha,

pois isso é um talento, moça.

Nunca perca essa sua natureza de amar.

Ou melhor ainda, de se amar!

 

Cabelo padrão

cabelinho ou cabelão

cabelo liso, cacheado

enroladinho ou encaracolado…

Não existe cabelo duro ou cabelo armado.

 

Ninguém pode dizer como usa-lo só você sabe como vai destacá-lo

no meio da multidão.

Vão para-la e aplaudi-la de montão.

Se você nasceu pra se destacar solta esses cachos.

porque você nasceu para brilhar.

(autora: Rayssa Dias da Rocha, 2º ano do Ensino Médio)

Temas em foco

No encontro, vieram à tona questões sobre miscigenação, colorismo e racismo com suas intensidades –  sem se limitar a comentários estigmatizantes, como alguém dizer que “o nosso cabelo é duro” ou questionar a beleza negra. A urgência de a escola aprofundar o debate sobre  “racismo e identidade das crianças negras” ficou evidente, como relata o professor Paulo:

“As crianças não aprenderam sobre si. São negras e não sabem que são. Essa questão da identidade é um problema que precisa ser apresentado. Quando os alunos e alunas são perguntados sobre a cor ou têm de preencher algum documento, mesmo as provas do governo, ficam olhando para seus braços tentando identificar qual é a sua cor! Isso é triste e revoltante.”

A ação

Para Paulo Estevam, o racismo no Brasil é, ao mesmo tempo, sutil, perverso e violento. E faz com que muitos de nós neguemos nossos traços ou queiramos apagá-los para sermos aceitos.

No encontro – ele conta – houve situações de meninas negras pedindo para os palestrantes as ajudarem a definir sua cor. Meninas com cabelos crespos e cacheados, perdidas na sua identidade, achando que são brancas, por terem a pele mais clara.

Projeto Cabelo Afro Feminino. (Imagem: Acervo Paulo Estevam)

“O padrão de beleza é predominantemente branco, ainda. A começar das bonecas na infância, a mídia, os comerciais, o jornalismo. Tudo contribui para que as meninas negras tenham medo da rejeição, a ponto de  evitarem ser racializadas, reconhecidas como negras. Daí, passarem produtos no rosto para embranquecer.”

Paulo Estevam ilustra esta situação de opressão das estudantes negras, a partir dos relatos que ouviu ao longo de sua jornada como professor, com meninas confessando que  “evitam tomar sol para não escurecer a pele”, com medo dos rótulos, bem como soltar os cabelos. E tudo se transforma em problemas psicológicos e de sociabilização bastante graves que podem atravessar a vida inteira delas.

Além da sala de aula

As reflexões e descobertas que emergiram do projeto foram para além da sala de aula. A mãe de aluna, que ajuda na organização da escola, por exemplo, foi conversar com o professor Paulo e disse que nunca tinha ouvido falar que os pardos eram negros.

“Ela veio me parabenizar e agradecer pelo encontro. Foram momentos que trouxeram auto estima, motivação, empoderamento de alunas e funcionárias da escola”.

As meninas contaram processos dolorosos de preconceito e racismo,

vividos por conta da cor e do cabelo. Houve muito choro nos relatos. Mas, no final, foi possível observar nos olhares, nas falas, nas fotos, nos abraços, um libertar-se, um respirar. 

Muitas saíram dali seguras de que podem e devem soltar seus cabelos crespos e cacheados, que podem trançar ou alisar, assumindo sua identidade. Se  desconstruiu um padrão de beleza imposto pela sociedade.

As meninas entenderam e passaram amar a si mesmas, os seus iguais. Nosso cabelo não é ruim, duro e feio. No encontro, o trabalho foi de autoafirmação da identidade negra e a valorização das raízes afrodescendentes.

Palestra Projeto Cabelo Afro Feminino. (Imagem: Fotografia reprodução e Montagem Primeiros Negros)
Palestra Projeto Cabelo Afro Feminino. (Imagem: Fotografia reprodução e Montagem Primeiros Negros)

Pós encontro na classe:

No decorrer da semana, de volta à sala de aula, com os demais alunos, a possibilidade de diálogo sobre a necessidade e a importância do encontro, dando assim, condições de aprendizagem, permitindo ao aluno compreender melhor a sua origem, a origem do outro e conviver de forma mais humana e solidária em sociedade.

Os meninos negros da sala cobraram a necessidade de um encontro só com eles.

Avaliação com a ATPC:

A diretoria, a coordenação e os professores presentes no encontro reconheceram a importância do projeto e  relataram o quanto as meninas estavam felizes, comentando o encontro nos corredores da escola. 

Um adjetivo define o resultado do trabalho: gratificante para o corpo docente e para o corpo discente, pois ficou evidente a satisfação, orgulho e contentamento de todos que participaram da sua realização.

Cumpra-se a lei

O projeto Cabelo Afro Feminino está em consonância com a Lei 10.639/2003 e a Lei 11.445/2004, sobre o aprendizado da história e cultura afro-brasileira e africana.

Leia também As Leis e o Racismo, sobre a legislação criada a favor e contra a nossa existência e a necessidade de atitude cidadã para transformarmos a sociedade da qual fazemos parte.

“Temos consciência de que a escola deve ser um espaço de reconhecimento e combate às diversas relações preconceituosas e discriminatórias, de educação antirracista, inclusiva. Mas isso não acontece ainda, denuncia Paulo Estevam.

Meninas durante o projeto Cabelo Afro Feminino. (Imagem: Acervo Prof. Paulo Estevam)

“As abordagens sobre preconceitos, discriminações e a prática de racismo na escola, ou em qualquer outro tipo de espaço, sempre foi e é considerado delicado demais. Os profissionais de educação não têm formação para trabalhar com o tema e dar protagonismo aos estudantes negros e negras”, atesta o professor.

Na República do Panamá, a demanda foi por um projeto que contemplasse o cabelo afro feminino, mas independentemente do assunto, é fundamental respeitar o lugar de fala, da vivência negra.

“Leciono há mais de dez anos, passei por várias escolas e sempre tive vontade de fazer um projeto desses. O problema era a leitura muito ruim  que a gestão tinha sobre o tema, o despreparo que, na prática, se ‘traduzia’ em  empecilhos”, lembra o professor Paulo. Tudo era considerado “desnecessário” e “perigoso”!.

O encontro das alunas da República do Panamá foi um ato político de autoamor. Como afirma o professor Paulo, o preconceito como atitude não nasce com a gente.

“Ele é ensinado no contexto da sociedade e é exatamente nesse contexto de sociedade, começando por esse espaço chamado escola, que devemos ensinar a população negra, as crianças e adolescentes a se conhecer,  resistir, exigir respeito e a se amar. Nós, negros, precisamos somar forças. Precisamos garantir o direito à educação de todas e todos e o fortalecimento dos direitos humanos”.

Contato professor Paulo Estevam:

Email: estevanblack@hotmail.com

Instagram: @estevanblack

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1 comentário em “Projeto Cabelo Afro Feminino”

  1. sandra regina matos batista

    Acentuar o nosso ativismo, representa muito mais que um contexto arbitrário diante dos séculos com nossos irmãos negros, escravizados. Isso vai além, precisamos resgatar essa ancestralidade, em direção aos direitos adquiridos.

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