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As leis e o racismo

-Tania Regina Pinto

7716, 10639, 12288, 12711, 13467, Afonso Arinos, Caó…

Não bastam leis. É preciso vontade política para fazê-las cumprir.

O que este artigo responde:
Qual a importância das leis contra o racismo?
O que é o Estatuto da Igualdade Racial?
Quais são as leis que reconhecem os direitos dos negros?
Existem ou existiram leis contra os negros?
Por que os negros não gostam da Lei Áurea? 
Quais as leis para os negros na época da escravidão?
Qual a primeira lei que proíbe a discriminação racial?
O que diz a Lei de Injúria Racial?

Cidadania não é brinde. Cidadania é conquista. E as leis que atendem e/ou assistem e/ou vão ao encontro das necessidades do povo preto funcionam mal ou não funcionam nada. 

Nem precisamos olhar para os mais de 520 anos desde que o Brasil foi apropriado por Portugal. Nosso ponto de partida pode ser uns cinquenta anos antes da lei da abolição – e eu vou, deliberadamente, escrever algumas leis em letras minúsculas para simbolizar o quanto elas inviabilizaram e inviabilizam a nossa plena cidadania.

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  • 1837 – lei de educação, a primeira do país: negros não podem ir à escola.
  • 1850 – lei das terras: negros não podem ser proprietários.
  • 1871 – lei do ventre livre: o ventre é livre, mas a dona do ventre não e seu filhos não podem frequentar escolas e espaços públicos e têm de “pagar” o sustento, trabalhando.
  • 1885 – lei do sexagenário: se conseguir viver até os 60 anos, o negro escravizado torna-se “livre” – mas sem direito a aposentadoria, recebimento dos “atrasados”, indenização…
  • 1888 – lei da abolição: duas linhas decretando o abandono e a criminalização do povo preto, após mais de 350 anos de escravização.
  • 1890 – primeiro código penal brasileiro – quem não tem trabalho, quem joga capoeira, quem pratica o curandeirismo, quem vive em situação de rua está fora-da-lei.
  • 1951 – Lei Afonso Arinos, nº 1.390, proíbe a discriminação racial no Brasil.
  • 1968 – lei do boi: vaga nas escolas técnicas e nas universidades para brancos, filhos de donos de terras (vide o ano de 1850).
  • 1985 – Lei Caó, nº 7.437 – uma referência ao seu autor, o advogado, jornalista e militante do movimento negro, deputado Carlos Alberto Caó de Oliveira -, dá nova redação à Lei Afonso Arinos e inclui, entre as contravenções penais, a prática de preconceito de raça e cor.
  • 1988 – a chamada Constituição Cidadã, a atual, transforma racismo em crimeinafiançável e imprescritível.
  • 1989 – nova alteração da Lei Caó determina a pena de reclusão por discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência.

Entre o desculpismo e a loucura

transparência racista no Brasil faz com que o preconceito e a discriminação estejam naturalizados na sociedade. Mas como, em tempos de big brother, tudo é gravado, o que temos assistido é a “política do desculpismo”, seguida pelo “diagnóstico” de uma loucura qualquer. Assim, fica o dito pelo não dito. Nem autuação nem condenação. Crime imprescritível e inafiançável só no papel. O mito permanece.

Lei Afonso Arinos, a primeira que proíbe a discriminação racial, ao ser aprovada não estabeleceu qualquer condenação ou pena pelo crime!  Foram precisos mais de 30 anos para que ela ganhasse uma nova redação, um novo número e nome: apelidada Lei Caó, de contravenção penal. E só quatro anos depois, em 1989, ao ganhar o nº 7.716, o racismo torna-se crime inafiançável e imprescritível, com penas de um a três anos de reclusão.

Século XXI

E, nestas condições, negros e negras brasileiros seguem registrando, década após década, sua história de luta, de conquistas a forceps cumpridas com deficiência, às migalhas, e chegam ao século XXI – do ponto de vista legal – sem direito a educação, respeito e liberdade.

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É verdade que, em 2001, na África do Sul, durante a 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia, promovida pela Organização das Nações Unidas discutiu-se a compensação para o continente africano pelo comércio de escravos pelas nações que colonizaram o Novo Mundo entre os séculos XV e XVI e o Estado reconheceu a necessidade de políticas de reparação e ações afirmativas. Mas, como já escrevemos, o papel aceita tudo. No Brasil, embora sejamos a maioria da população, nós, negros e negras, somos ainda hoje referidos como “minoria”!

Reparação a conta-gotas

Dois anos depois da Conferência, um “lampejo” de reparação: a Lei 10.639, de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para inclusão obrigatória da História e Cultura Africana e Afro-brasileira no currículo oficial da rede de ensino. Mas, na prática, nada, ainda.

A Lei 10.639 – um marco na luta antirracista no Brasil e de transformação da política educacional e social brasileira -, passados 17 anos, não é efetivamente cumprida. O ensino continua eurocêntrico, negando o papel fundamental do continente africano para o Brasil e para o mundo, berço da humanidade, fonte abundante de riqueza  naturais e de recursos humanos, de história milenar, cultura riquíssima, complexa e diversa. 

O Brasil dos colonizadores europeus foi construído pela mão-de-obra negra qualificada nas lavouras e nos garimpos. A África foi a solução para todos os problemas europeus de falta de gente para as embarcações, para povoar e trabalhar nos lugares “descobertos”, para garantir a alimentação de todos…

Não contar esta história nos deixa sem referências negras nas ciências, nas artes, na política, na academia… Não contar esta história deixa brasileiros e brasileiras sem as verdadeiras referências de formação do povo. E isso faz parte da estratégia de não compartilhamento de poder.

A primeira Política de Saúde da População Negra no Sistema Único de Saúde – SUS, elaborada em 2009, também e ainda, carece ser implementada – as mulheres negras permanecem sendo as maiores vítimas da violência obstétrica, sem direito a anestesia!

Estatuto da Igualdade Racial,  Lei nº 12.288, de 2010, é comparável a uma obra de ficção! No papel, o estatuto se destina a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Só no papel…

Avançamos na elaboração das leis, mas a implementação…

Lei de Cotas

De todas, a revolução silenciosa perceptível é a da Lei 12.711, de 2012, a Lei de Cotas para estudantes negros nas universidades.

Em 1997, apenas 1,8% dos jovens entre 18 e 24 anos que se declararam negros havia frequentado uma universidade, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE. Em 2020, somos 35,8%.

Foram precisos mais de 20 anos para assistirmos a implantação de uma política de ação afirmativa – para a correção de uma injustiça histórica – surtir algum efeito.

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A Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi a primeira do país a criar um sistema de cotas para estudantes negros por meio de uma legislação estadual. Isso no início deste século. Vale lembrar a lei do boi, cota para alunos brancos, de 1968!

Depois, foi a vez da Universidade de Brasília implantar uma política de ações afirmativas para negros em seu vestibular de 2004. Atualmente, praticamente todas as instituições de ensino superior públicas destinam vagas para o sistema de cotas em seus processos seletivos.

A resolver, ainda, entre outros pontos, a questão dos privilegiados brancos que roubam vagas, mentindo em sua autodeclaração racial. Expediente utilizado também por mais de 40 mil candidatos às eleições deste ano, que  mudaram a cor da pele. E, ainda, por um terço de famílias das classes A e B que solicitou auxílio emergencial.

Código Penal

Dois anos após a assinatura da lei áurea, em 1890, foi promulgado o primeiro código penal brasileiro, criminalizando o existir negro. Mais de 100 anos depois, o senador Paulo Paim (PT–RS) ainda se esforça para aprovar uma lei que atue a favor do povo preto no mesmo código.

Complexo do carandiru após do massacre

Em agosto de 2020, em pronunciamento no Senado, o parlamentar chamou atenção para a importância de o Congresso Nacional pautar projetos de combate ao racismo e à discriminação. Aí, fica a pergunta: por que não usar a mesma celeridade do século XIX que, pela lei, tirou negros e negras dos grilhões e colocou-os atrás das grades?

Um de seus projetos, o de nº 787, de 2015, prevê o agravamento da pena quando o crime for motivado por discriminação ou preconceito de raça – o que resultaria em penas mais severas para os crimes de lesão corporal e homicídio, quando estes resultarem de ódio e preconceito racial. E, um outro, equipara a pena de injúria racial à pena de crime de racismo.

“É preciso dar um basta em tudo isso. Os Poderes e a sociedade não podem mais fechar os olhos diante de tamanha crueldade. Todos têm as suas responsabilidades”, acusa Paulo Paim.

Como exemplo do desejo de nos manter à sombra da servidão, só em 2017 aconteceu a formalização do trabalho doméstico com a Lei 13.467! E seu cumprimento ainda é um desafio.

Maré Negra

Está claro que não bastam leis. É preciso vontade política para fazê-las cumprir. “Nossa pauta é múltipla – não disputamos nichos, disputamos espaço na sociedade. Raça não é identidade. Raça não é recorte. Raça é fundamento. Nossa presença implica a perda de poderes do outro. É urgente na luta antirracista a concessão de espaço”, insiste a socióloga Vilma Reis, da militância negra de Salvador (BA), cidade mais negra do Brasil, que nunca teve uma pessoa negra à frente do Executivo Municipal.

Injúria Racial, nova versão

Em 12 de janeiro de 2023 – primeiros dias do terceiro mandato de Luiz Inácio da Silva como presidente do Brasil – é sancionada Lei 14.532, de 2023, que equipara o crime de injúria racial ao crime de racismo, aumentando a pena e tornando-o inafiançável e imprescritível..

  • racismo é crime contra a coletividade;

  • injúria é crime de racismo contra o indivíduo.

Saiba os detalhes da Lei 14.532 no artigo Injúria Racial é crime de racismo.

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Tania Regina Perfil PB

 Escrever, para mim, é um ato político. Não por acaso, desde os 11 anos, queria ser Jornalista. Depois de muitos anos somei ao jornalismo a Educomunicação, com especialização em Gênero e Sexualidade. Idealizadora do primeirosnegros.com, cresço, dia a dia, gestando edições, artigos, pensares. Em essência, sou alguém que busca conexões espirituais, vivências…Leitora voraz, amante da escrita própria e da escrita alheia, louca por palavras e seus significados mais profundos. Assim estou na vida, gota, escorrendo livre pelos caminhos.

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