Muitos anos antes da abolição da escravatura que, no Brasil, só aconteceu em 1888, os irmãos André e Antônio Rebouças já haviam conquistado diploma de bacharel em Ciências Físicas e Matemáticas e o grau de engenheiro militar no curso de Engenharia Militar, os primeiros negros brasileiros a cursar uma universidade. O ano? 1854.
Depois de formados, os dois foram para a Europa, onde se especializaram na construção de estradas de ferro e portos. De volta ao Brasil, não faltaram projetos, com destaque para a construção, em 2 de fevereiro de 1885, de uma das mais ousadas obras da engenharia mundial, a ligação ferroviária entre Curitiba e o Porto de Paranaguá, unindo as regiões produtoras do Paraná e do centro-oeste do Brasil.
Origem
Os Rebouças pioneiros tinham mais seis irmãos. Todos filhos do alfaiate, Antônio Pereira Rebouças, “mulato” (expressão utilizada à época), autodidata que atua também como advogado e parlamentar, e de Carolina Pinto Rebouças, mulher negra livre, alforriada.
Como político, Rebouças, o pai, é representante da Bahia na Câmara dos Deputados em diversas legislaturas, conselheiro do Império, um intelectual. Daí, também, o primor da educação dos filhos, todos alfabetizados em casa.
Monarquista, diante das atribulações políticas do seu tempo, mudou-se para o Rio de Janeiro, com a família, no ano de 1846, selando um novo destino para os filhos.
Na capital imperial, os meninos, depois da Escola Militar, foram para a Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde se destacaram nos exames exigidos para o curso de Engenharia.
Desta conquista, os estudos de Engenharia em Caminhos de Ferro e Portos de Mar, por dois anos, na França e na Inglaterra.
No retorno, em fins de 1862, Antônio é nomeado para inspecionar as obras das fortificações de Santos, Paranaguá e Santa Catarina.
Cartão postal
Reconheça-se, entretanto, que a ideia original da construção da estrada de ferro Paranaguá-Curitiba é de André que, como conta à época, surgiu em janeiro de 1865, na sala de espera da Secretaria da Marinha, quando observou, em um mapa, que Assunção, no Paraguai, e Antonina, no litoral paranaense, ficavam no mesmo paralelo.
E ele acalentou o sonho de fazer esta obra durante seis anos até que, em janeiro de 1871, durante audiência especial com Pedro II, é concedida a autorização para se construir o “Caminho de Ferro de Antonina a Curitiba”.
A construção, iniciada em março de 1872, tem um total de 110 km, com 14 túneis perfurados nas montanhas e 450 obras-de-arte, entre pontes e viadutos das mais diversas extensões – destaque para a Ponte de São João, com 55 metros, totalmente construída na Inglaterra e montada, peça por peça, sobre um profundo grotão e o Viaduto Carvalho, ligado ao túnel do Rochedo, assentado sobre 5 pilares de alvenaria engastados na própria rocha da encosta.
A rebatizada Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá, inaugurada em 2 de fevereiro de 1885, treze anos após o início das obras, até hoje é o principal caminho paranaense de transporte de grãos. Nove mil homens participaram de sua construção. Século XIX!
O visionário
Antônio Pereira Rebouças Filho, o mais novo dos dois irmãos, teve vida curta – 34 anos. Ele nasce em Cachoeira, na Bahia, em 13 de junho de 1839, e morre em São Paulo, em 24 de maio de 1874, de febre tifóide, depois de ter-se embrenhado na mata para inspecionar as obras do Caminho de Ferro de Campinas e Limeira e São João do Rio Claro.
Antônio Rebouças mirava longe. Em 1872, inicia a exploração da madeira em escala comercial na Província ao instalar a Companhia Florestal Paranaense à margem da Estrada da Graciosa, entre Quatro Barras e Piraquara.
E, em 1874, é nomeado chefe das obras da “Estrada da Graciosa de Antonina e Curitiba na Província do Paraná”, uma das mais belas e notáveis obras do gênero em toda a América do Sul, incrustrada no Parque da Serra do Mar.
Entre outras obras, essa rodovia de 120 km, toda pavimentada com paralelepípedos graníticos, liga o planalto ao litoral paranaense, é outro cartão postal do Paraná assinado pelos irmãos Rebouças.
A genialidade desta dupla, que mesclava trechos de transporte ferroviário com navegação fluvial, no entanto, sempre esbarrava no racismo. Mas isso nunca os paralisou.
O idealista
André Rebouças pensava o Brasil, sendo conhecido por todos como o engenheiro brasileiro de ideias políticas muito avançadas para o seu tempo, cunhando a expressão democracia rural, precursora da reforma agrária.
Durante a década de 1870, ele produz 13 grandes projetos, como a construção de docas no Rio de Janeiro, na Paraíba, em Pernambuco e Bahia; ferrovias no Paraná e uma companhia de abastecimento de água no Rio de Janeiro.
Para cada um desses projetos, Rebouças fez estudo de viabilidade econômica, organizou sociedades, levantou capital estrangeiro, apresentou monografias ao imperador, fez lobby e defesas ardorosas em debates pela imprensa. Ele ironizava os engenheiros-funcionários-públicos de sua época, que ficavam burocraticamente esperando as benesses do governo para se mexer.
Realizou a maioria das obras que planejou, mas suas empresas foram à falência. Rebouças tinha sempre a oposição ferrenha da oligarquia cafeeira, que boicotava seus empreendimentos” – escreve Paulo Vieira no livro O Negro Abolido pela República.
A obra de André Rebouças pode ser vista como parte de um projeto maior de nação que determinaria “uma ampla rede de comunicações, cobrindo o território do Brasil pela conexão de ferrovias Leste-Oeste com os eixos de navegação Norte-Sul e integrando-o aos países vizinhos”, comenta Ida Duclosno livro O Brasil que poderia ter sido. “Seu plano dividia o País em dez paralelas interligando portos, ferrovias e navegação fluvial”.
André opunha-se ao desmatamento irrefletido e lutou pela criação de parques nacionais quando ainda não havia nenhum. Defendia modernas técnicas agrícolas. Combatia o latifúndio e a escravidão.
Abolicionista
É na segunda metade da década de 1870, que André se engaja na campanha abolicionista e ajuda a criar a Sociedade Brasileira Contra a Escravidão, ao lado de Joaquim Nabuco, José do Patrocínio e outros. Participa da Confederação Abolicionista, da Sociedade Central de Imigração e redige os estatutos da Associação Central Emancipadora.
Muito amigo de Pedro II, propõe ao imperador que a concessão para construir linhas ferroviárias seja acompanhada pela entrega de terras dos arredores em pequenos lotes às pessoas alforriadas.
A concessão acontece, mas o debate sobre a repartição das terras nacionais, a ideia era criar um imposto sobre fazendas improdutivas e de distribuição de terras a ex-escravizados, com a fundação de cooperativas de pequenos camponeses, deixa os abolicionistas mais moderados (leia-se: fazendeiros e republicanos) em polvorosa, fazendo a ideia de reforma agrária naufragar.
Com a abolição em 1888, André é um dos vencedores. Mas está falido, é detestado pelos barões do latifúndio e pelos republicanos emergentes.
Auto-exílio
No ano seguinte, com a Proclamação da República, via golpe militar, decide, solidário, acompanhar a família imperial brasileira ao exílio. E permanece, por dois anos, em Lisboa, como correspondente do The Times de Londres.
Com a morte do amigo Pedro II, isola-se na África, fixando residência em Funchal, na ilha da Madeira, onde é encontrado no mar, junto a uma rocha, sem vida.
Assim, André, que nasce em Cachoeira, na Bahia, em 13 de janeiro de 1838, termina sua história, aos 60 anos de idade, em 9 de maio de 1898.
Que conste de seu currículo, ainda, o pioneirismo de ser o primeiro negro brasileiro professor catedrático, o cargo de secretário do Instituto Politécnico e redator geral de sua revista, e a atuação como membro do Clube de Engenharia, muitas vezes designado para receber estrangeiros, por falar inglês e francês.
…
Em 2024, o engenheiro negro André Rebouças é oficialmente incluído no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Sua trajetória, marcada por grandes feitos na engenharia e por um incansável ativismo abolicionista, o consolida como um dos mais importantes personagens da história brasileira.
Fontes: Geledés, Portal da Cultura Negra, Midia Ninja
Escrito em 3 de julho de 2020. Atualizado em 21 de outubro de 2024
estes abolicionistas, deveriam ser mais homenageados negros engenheiros, e cada obra construída é um cartão postal até hoje.
Eles casaram, deixaram descendentes? Nunca ouvi falar de descendentes da família Rebouças.
Tem uma comunidade da família Rebouças na Bahia. Com uma pesquisa na interne, voc~e consegue saber mais.
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