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Tebas, o primeiro arquiteto de São Paulo

Um dos maiores nomes da construção colonial da maior cidade do país, nasceu escravizado e descortina a influência negra na arquitetura brasileira.

Quadro com a figura de Tebas, o Arquiteto.
Quadro Cabeça de Negro, 1934 | João Candido Portinari (Imagem: Google Arts&Culture)

“Tebas, negro escravo
Profissão: Alvenaria
Construiu a velha Sé
Em troca pela carta de alforria


Trinta mil ducados que lhe deu padre Justino
Tornou seu sonho realidade
Daí surgiu a velha Sé
Que hoje é o marco zero da cidade
Exalto no cantar de minha gente
A sua lenda, seu passado, seu presente


Praça que nasceu do ideal
braço escravo
É praça do povo…”

Tebas, capital do Império Novo Egípcio, entre 1550 a 1070 antes de Cristo, de 1550 a 1070, é o nome como é conhecido Joaquim Pinto de Oliveira, o primeiro arquiteto paulista, negro, escravizado, decisivo na renovação estilística pela qual o centro de São Paulo passou no século XVIII.

Seu nome não consta dos livros escolares, mas sua importância histórica vem sendo resgatada oficialmente desde 2018 e, em 20 de novembro de 2020, Dia Nacional da Consciência Negra, tornou-se concreto e ferro, diluindo a aura de invisibilidade que o envolvia há mais de 200 anos.

O legado de Joaquim Pinto de Oliveira, o  Tebas –  que significa “alguém de grande habilidade”, em quimbundo, e tornou-se expressão popular, um elogio a pessoas que sabiam fazer de tudo –, renasce em escultura  afrofuturista, forjada pelas mãos pretas do artista plástico Lumumba Afroindígena e da arquiteta Francine Moura, na praça Clóvis Bevilácqua.

Primeiro, um samba

Antes deste tributo, no entanto, a 100 metros dali, 44 anos atrás, na rua da Glória, os componentes do Grêmio Recreativo Paulistano da Glória, em vermelho e branco, abriam alas para “Tebas, o Escravo”, no samba-de-enredo do cantor, compositor e militante do movimento negro Geraldo Filme, do qual emprestamos alguns versos para iniciar esta postagem.

Tebas nasceu em Santos, no litoral paulista, em 1721, e viveu até 11 de janeiro de 1811. Tornou-se Joaquim Pinto de Oliveira, por conta de sua condição de escravizado. Daí, também, a triste “justificativa” sobre a data incerta do dia em que nasceu do ventre de sua mãe Clara Pinta de Araújo.

Os senhores de pessoas escravizadas que detinham a sua posse, o casal Antonia Maria Pinta e Bento de Oliveira Lima detêm, ainda, a responsabilidade por sua trajetória na cidade de São Paulo. A mudança, em 1740, foi em busca de oportunidades de trabalho. Bento de Oliveira era mestre-pedreiro.

Na época, as corporações religiosas eram as donas do dinheiro e se ressentiam da técnica de taipa de pilão, até então utilizada, para moldar as edificações e que impunham limitações de estilo e arquitetura.

O profissional

Com habilidade na técnica da cantaria, o talhar de blocos de pedra bruta,  não demorou, Tebas passou a ser disputado pelos templos católicos, que se concentravam no triângulo histórico formado pelos conventos de São Bento, do Carmo e de São Francisco – entre as estações São Bento e Sé do Metrô, nos dias atuais.

O requinte – desejado pelas ordens religiosas para adornar as fachadas de suas igrejas e conventos – brotava das mãos do negro escravizado, seduzindo beneditinos, franciscanos, carmelitas e católicos.

Assim, ele tornou-se fundamental na modernização de uma São Paulo até então construída basicamente com taipa.

O artista

Obras importantes como os conceituados projetos de restauração do Mosteiro de São Bento, entre 1766 e 1798 e a construção da primeira torre da antiga Catedral da Sé em 1750 – reformada em 1769 e demolida em 1911 – têm a sua assinatura.

Catedral da Sé, projetada por Tebas, o arquiteto.
A Matriz da Sé, em foto de Militão Augusto de Azevedo, década de 1860, reproduzida no livro ‘Tebas, um negro arquiteto na São Paulo escravocrata’.

Seu trabalho resiste ao tempo nos ornamentos originais das fachadas dos conventos da Ordem 3ª do Carmo (1775-1778) e da Ordem 3ª do Seráfico Pai São Francisco (1783).

Uma de suas mais importantes realizações é o primeiro chafariz público da cidade de São Paulo, o Chafariz da Misericórdia, erguido em 1791, no Largo da Misericórdia e demolido em 1866, dando lugar, atualmente, ao cruzamento das ruas Direita, Quintino Bocaiúva e Alvares Penteado, na região central.

O chafariz, construído com sistema hídrico, canalizava as águas do ribeirão Anhangabaú, onde hoje é o vale com o mesmo nome. Ali, os escravizados se reuniam para buscar água e abastecer as casas de seus senhores.

Ilustração do Chafariz da Misericórdia. Imagem original de José Whasth Rodrigues.
Chafariz da Misericórdia. Imagem original de José Whasth Rodrigues.

O preço da alforria

São várias as versões sobre a condição de negro livre deJoaquim Pinto de Oliveira, o Tebas, 110 anos antes da abolição da escravatura – um feito inédito.

Há registros de que, nos anos de 1777 e 1778, quando contava 57, 58 anos, já trabalhava com certa autonomia, assinando contratos e recebendo diretamente por seus trabalhos, o que lhe propiciou comprar a própria  liberdade.

Outra versão sugere que sua alforria estava juramentada no testamento de Bento de Oliveira Lima, mas que teve de entrar com a ação judicial contra a viúva Antonia Maria Pinta para consegui-la.

O fato da vida real é que ele pagou com mais de meio século da sua vida – dependeu ou da morte de seu “dono”, ou da justiça, ou do trabalho para os padres – para resgatar o que deveria ser uma condição natural de todo ser humano, a liberdade.

O reconhecimento

O trabalho de Joaquim Pinto de Oliveira cuja contribuição para a arquitetura de São Paulo é incontestável – a ponto de resistir aos séculos –  passou por um processo de apagamento histórico. Até pouco tempo, sua própria identidade era considerada uma lenda!

Em 1971, em artigo sobre a história do bairro da Sé, publicado pela Prefeitura de São Paulo, está registrada a dúvida quanto à existência do exímio arquiteto negro – relata a historiadora Emma Young, no livro Tebas, um negro arquiteto na São Paulo escravocrata, lançado em 2019.

A verdade foi restabelecida a partir da ação do Sindicato dos Arquitetos no Estado de São Paulo e a localização de documentos oficiais no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, que revelaram as relações de trabalho entre o arquiteto e as ordens religiosas, bem como a relevância de seu trabalho.

“Invisibilizar a contribuição de africanos e seus descendentes e de indígenas na construção econômica, na organização social e política, assim como na produção cultural da nação brasileira foi (e continua sendo) parte do projeto de dominação étnica e de classes”, escreve o historiador Ramatis Jacino, no capítulo Tebas e o legado africano na produção da riqueza e na urbanização paulistana.

A aclamação

O primeiro arquiteto paulista exerce seu ofício até os 90 anos de idade. Morre na cidade que renova – vítima de gangrena, possivelmente causada por acidente de trabalho -, renasce no afrofuturismo e se imortaliza na liberdade.

A escultura em ferro, suspensa no ar, dá a ideia de ascensão, como se emergisse do período da escravidão com seus 3,65 metros de altura – sem contar o pedestal de concreto.

Seus mais de 300 quilos reverberam a expertise, a modernidade, a arte e a sofisticação presente no legado Joaquim Pinta da Silva, o Tebas.

Inaugurada em São Paulo a estátua de Tebas, arquiteto escravizado no século  XVIII | ArchDaily Brasil
Estátua de Joaquim Pinto de Oliveira, Tebas, na Praça Clóvis Beviláqua. Imagem de Marcel Farias.

O local – a praça Clóvis Bevilácqua – face leste da praça da Sé –, por si só, propõe uma reflexão que recobra a relevância da ocupação territorial preta em área central da cidade que foi fragmentada ao longo dos séculos.

  • Leia também a história de Imhotep, o primeiro arquiteto da história.

Escrito em dezembro de 2020

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