A autora da primeira tese sobre o assunto se perde da cor ao brilhar em entre os poderosos de Brasília.
O que este artigo responde: Quem foi Virgínia Leone Bicudo? Qual é o pioneirismo de Virgínia Leone? Qual a abordagem de Virgínia Leone sobre as relações raciais? Quais preconceitos Virgínia Leone enfrentava? Qual é a profissão de Virgínia Leone? Virgínia Leone se reconhecia como negra? Onde Virgínia Leone lecionava? Qual foi a contribuição de Virgínia Bicudo para o estudo das relações raciais no Brasil? Como Virgínia Bicudo enfrentou o preconceito e o racismo em sua carreira? Qual foi o impacto da invisibilidade de Virgínia Bicudo no campo da psicanálise e da psicologia? Como Virgínia Bicudo contribuiu para a democratização do conhecimento em psicanálise?
Virgínia Leone Bicudo é a primeira mulher a fazer psicanálise na América Latina. É a primeira psicanalista não-médica do País, pioneira em um período em que a maioria dos negros sequer era alfabetizada.
Paulistana, viveu de 1915 a 2003, 88 anos, e construiu uma história repleta de pioneirismos, conquistas, sucesso, preconceito e dor.
Autora da primeira tese sobre relações raciais no Brasil – Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo -, inaugura o debate sobre o racismo na academia. Fato que poucos acadêmicos têm conhecimento ainda hoje.
Virgínia Leone Bicudo está entre as primeiras professoras universitárias negras do País, da Universidade de São Paulo, da Santa Casa e da Escola de Sociologia e Política.
Invisibilidade deliberada
“Como nunca soubemos disso? Como não nos falaram antes?”, questiona a psicanalista Ana Paula Musatti Braga, doutora em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP), em seu artigo Pelas trilhas de Virgínia Bicudo: Psicanálise e Relações Raciais em São Paulo, publicado na revista Lacuna. E outra psicanalista, Isildinha Baptista Nogueira, doutora em Psicologia pela USP e pesquisadora, desde a década de 1990, dos efeitos do racismo no psiquismo dos negros, responde ao HuffPost Brasil:
“Nunca houve interesse na divulgação do trabalho dela. Quando era estudante, nunca soube da Virgínia. Não há essa informação nas escolas de psicanálise nem de psicologia nem de psicologia social. Se você for a uma livraria, não vai encontrar os textos dela”!
Objeto de pesquisa
A percepção do preconceito de cor e o sofrimento derivado dessa discriminação em relação a ela e à sua família, desde criança, foram fundamentais para tornar Virgínia Leone Bicudo uma pioneira, uma pesquisadora, de certa forma, objeto de seu próprio estudo sobre relações raciais.
Sua história pessoal e profissional se misturam com a temática que aborda e isso acontece desde o início de sua produção teórica.
“Eu queria me aliviar de sofrer. Imaginava que a causa do meu sofrimento fossem problemas sociais, culturais. Então me matriculei na Escola de Sociologia e Política. Isso, em 1935. Tinha conflitos muito grandes comigo mesma, mas achava que a causa era social. Queria estudar Sociologia para me proteger do preconceito”, relembra a psicanalista em 1995.
“No segundo ano do curso – prossegue ela -, tive contato com a psicologia social. E encontrei a psicologia do inconsciente de Sigmund Freud”. Para ela, isso foi o suficiente para despertar o desejo de querer tornar-se psicanalista e encontrar “proteção para a expectativa de rejeição”.
“Negrinha, negrinha”
Desde criança, Virgínia sentia o preconceito de cor, a dor do racismo:
“Eu fui criada fechada em casa. Quando saí, foi para ir à escola e foi quando, pela primeira vez, a criançada começou: ‘negrinha, negrinha’. Quando eu estava em casa, eu nunca tinha ouvido. Então, eu levei um susto.”
A mãe de Virgínia, Joana Leone, nasceu branca, livre, em uma família pobre de imigrantes italianos. O pai de Virgínia, Teófilo Bicudo, era negro, nascido na vigência da Lei do Ventre Livre – era filho de uma negra escravizada e neto de uma escravizada alforriada. Mas Teófilo era afilhado de importante fazendeiro de café em Campinas, no interior do estado de São Paulo. E, com a ajuda do padrinho, estudou na capital paulista e conseguiu emprego na companhia de Correios e Telégrafos, onde se tornou um alto funcionário. A ideia de Teófilo Bicudo era de que as pessoas valem pelo estudo. E sua filha acreditou e investiu nesta ideia.
A primeira tese
Virgínia Leone Bicudo sempre estudou. Sua dissertação de mestrado em Sociologia, em 1945, na Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, trouxe uma inovadora investigação sobre relações raciais, a partir do ponto de vista de pais e mães de alunos de escolas públicas em bairros populares e de classe média de São Paulo.
A psicanalista utiliza entrevistas e apresenta depoimentos de 31 pessoas – distribuídas entre as de classe “inferior” e “média” (segundo condição econômica, profissão e nível de instrução), divididas entre “pretos” e “mulatos”- e pesquisa da documentação da Frente Negra Brasileira e do jornal Voz da Raça, entre 1941 e 1944, produzindo um trabalho que articula a Sociologia, a Antropologia e a Psicologia Social.
O argumento
Com o Estudo de Atitudes Raciais de Pretos e Mulatos em São Paulo, ela tirou o véu, revelou os conflitos existentes entre brancos e negros e deu início a um olhar urgente e necessário para os efeitos do racismo.
O Estudo de Atitudes Raciais…, republicado, recusa as formulações raciais de cunho biológico para pensar a raça como categoria social. Defende a tese de que o critério da aparência, calcado no branqueamento, constitui o principal determinante que impede as oportunidades de ascensão social do negro no Brasil.
Virgínia constata em seu trabalho, ainda, que a discriminação racial no Brasil não só está presente como adquire um caráter específico: configura um preconceito que minimiza o confronto direto e impede o desenvolvimento da consciência da discriminação.
Mesmo quando diminuem as diferenças sociais, o preconceito de cor permanece – argumenta a pioneira. Quer dizer, na primeira metade do século XX, Virgínia já fazia uma leitura não só psicanalítica, mas política, sociológica e antropológica da situação do negro no Brasil. O que ela demonstra é que, mesmo quando diminuem as diferenças sociais, permanece o preconceito de cor.
Seu trabalho se contrapõe às concepções de harmonia racial na sociedade brasileira. que, até hoje se esforça por sustentar a tese de que não existe preconceito de cor, mas “apenas” o preconceito de classe.
Ao falar da integração do “mulato” das classes intermediárias, categoria na qual se encaixaria se fosse uma das entrevistadas, Virgínia propõe a hipótese de que a discriminação seria baseada em cor, não em raça ou etnia. Em outras palavras: mesmo diante do esforço de elevar seu status educacional e profissional, “pretos” e “mulatos” encontrariam restrições no meio dos brancos, a menos que branqueassem na cor e na personalidade — obtendo, então, maior aceitação social.
Mundo branco
Não é difícil imaginar que Virgínia Leone Bicudo era desafiada diariamente. Em seu mundo praticamente inexistia a presença de pessoas negras.
Depois de viver cerca de cinco anos em Londres, foi muito requisitada para falar e transmitir a experiência que havia tido ao lado de importantes nomes da escola inglesa. Em 1961, assumiu a direção do Instituto de Psicanálise, onde se manteve por 14 anos.
Na década de 1970, ficou na ponte São Paulo-Brasília, fundou o Grupo Psicanalítico e o Instituto de Psicanálise, que a colocaram em contato com a vida social da capital federal, oferecendo reuniões para personalidades do meio político e diplomático.
De sua existência fazia parte ser negra, onde quer que estivesse. Daí, sempre referir-se a si mesma, como uma grande experiência na esfera da dor. Assim, de tanto ser invisibilizada, tornou-se invisível! Ela mesmo se perdeu na cor… ou sem cor…
“Sumiu e se fez sumir”
Ana Paula Musatti, em seu artigo, destaca que a questão da cor aparece declaradamente no início profissional e também no fim da vida de Virgínia Bicudo.
Mas é a a pesquisadora Janaina Damaceno Gomes, com uma tese de doutorado na USP, dedicada à sua obra – Os segredos de Virgínia: Estudos de Atitudes Raciais em São Paulo – quem define como a cor marca a vida da nossa primeira psicanalista, ao escrever que Virgínia “sumiu e se fez sumir”:
“Virgínia enriqueceu com a psicanálise, tornou-se célebre e requisitada entre ministros e senadores, mas isso teve um preço: tal como suas personagens, ela precisou se afastar de seu grupo para completar seu processo de ascensão. Mas nesse processo ela não embranqueceu, ela apenas perdeu a cor. Foram seus relatos já idosa, de alguém que precisa marcar a pertença e relembrar sua origem, que foram fazendo sua cor mais viva.”
E esta reflexão vem para o concreto quando se observa a placa do portal da Biblioteca Virgínia Leone Bicudo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, em homenagem à psicanalista, que reproduz uma senhora sem cor nem traços de sua ascendência africana. No seu documento de trabalho como professora de Higiene Mental e Psicanálise, na Escola Livre de Sociologia e Política, também, ela é identificada como “branca”.
Nem mulher nem negra
Até a primeira metade do século XX, a produção acadêmica das Ciências Sociais era predominantemente branca e masculina. Virgínia era exceção. Sua atuação era de desbravadora, mesmo assim a faziam invisível como mulher, negra e profissional psicanalista não-médica.
Em 1955, a Unesco financia o maior projeto de pesquisa sobre relações sociais no Brasil – um divisor de águas na temática, provocando o declínio do mito da democracia racial. Sua pesquisa, apesar de fundamental e independente, é publicada em 1955 como “apêndice” do projeto que, em livro, registra o nome de dois homens como organizadores, Roger Bastide e Florestan Fernandes.
Na segunda edição, em 1959, toda a produção de pesquisadores da Escola Livre de Sociologia e Política, incluindo a tese de Virgínia, é retirada da publicação. Passados trinta anos, Florestan Fernandes explica que houve um “lapso editorial”.
Assim, a primeira tese sobre relações raciais no Brasil, escrito por uma negra, é retirado da história. E o pioneirismo de Virgínia Leone, que inclui ter antecipado formulações de uma série de trabalhos posteriores sobre o tema, torna-se mais um tópico na imensa lista negra de restauração da verdade, de justiça restaurativa. Mas houveram outras decepções, outras dores, para a mesma Virgínia.
“Charlatã”
A psicanalista que foi foi essencial para que a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo – SBPSP aceitasse entre seus membros analistas não médicos, como ela, durante o 1º Congresso Latino-Americano de Saúde Mental, em 1954, se viu alvo de hostilidades exatamente por ser uma psicanalista não-médica:
“Eu estava sentada e todos os médicos de pé, todos gritando: ‘Absurdo! Psicanalistas não médicos!’ Foi horrível! Olha que eu quase me suicidei por isso. Você ouvir outras pessoas dizendo: ‘Você é charlatã!’ Ah! Você não fica de pé! Você vai pra casa e quer morrer”, revelou a pioneira em entrevista à SBPSP.
O primeiro diretor do Conselho de Medicina de São Paulo, Flamínio Fávero, foi um dos responsáveis por esta ofensiva feroz de desmoralização contra Virgínia Bicudo. Na época, foram distribuídos panfletos em que se lia: “Se eres neurótico e queres se tornar psicótico, procura a doutora Virgínia Bicudo. Se trate com a doutora Virgínia Bicudo”.
A comunicadora
A pioneira negra Virgínia Bicudo entra para a história como mas das principais divulgadoras da psicanálise em São Paulo, com um programa de rádio, em formato de radioteatro, que falava dos princípios de higiene mental. Ela própria escrevia as dramatizações e interpretava, junto com artistas, situações envolvendo temas como inconsciente, inveja, agressividade, ciúme, amor e ódio. Isso entre os anos de 1945 e 1955.
“Extrovertida, bem falante, Virgínia Leone logo se tornou uma comunicadora eficiente das ideias nas quais acreditava. Ela teve papel fundamental nessa democratização do conhecimento”, avalia sua colega Maria Ângela Gomes Moretzsohn.
Além do programa semanal na rádio Excelsior de São Paulo, seus textos foram publicados no livro Nosso Mundo Mental, em 1955, e deram origem a uma coluna dominical, de página inteira, que circulava aos domingos no Jornal da Manhã.
No divã
Virgínia é também a primeira mulher a fazer análise na América Latina. Na busca por uma formação em psicanálise, conheceu Durval Marcondes, fundador da Sociedade Brasileira de Psicanálise, que a encaminhou para Adelheid Koch, judia alemã que havia chegado ao Brasil em 1936, exatamente para dar cursos de formação.
“Eu fui a primeira pessoa que usou o divã da Doutora Koch” – palavras de Virgínia Bicudo.
Era novembro de 1937. Durval Marcondes, Flávio Dias e Darcy Mendonça Uchoa fizeram o mesmo. Virgínia, no entanto, tinha várias diferenças em relação a eles: além da condição sócio-econômica bem menos confortável – o pagamento de suas sessões consumia todo o seu salário no primeiro ano -, era mulher, negra e não médica. Difícil avaliar quais dessas características produziram mais dificuldades.
Mas tal experiência, com certeza, influenciou na tese de Virgínia Bicudo de se dar importância, na clínica, às questões raciais trazidas pelos pacientes:
“É preciso entender que o racismo adoece e esse é o perigo que nós corremos, pois existe uma aparente inclusão do negro na sociedade, mas esse adoecer psíquico é muito mais eficiente do que a segregação e a discriminação”.
Conheça outros pioneiros da área da saúde física e mental:
- Jane Cooke Wright – oncologia
- Juliano Moreira -psiquiatria
Fontes: Revista Lacuna, Wikipedia
Escrito em 22 de abril de 2017
Gostei muito da reportagem
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