Um dos primeiros grandes movimentos de protesto pós-abolição, para obrigar a Marinha do Brasil a reconhecer os marinheiros negros como cidadãos livres.
O que este artigo responde: O que foi a Revolta da Chibata? Quem liderou a Revolta da Chibata? Quais as reivindicações dos marinheiros? Quanto tempo durou a Revolta da Chibata? O que aconteceu com os revoltosos? Quantos marinheiros participaram da revolta? Qual o papel de deputados e senadores na Revolta da Chibata? Quais as reivindicações dos marinheiros? Por que ex-escravizados se tornaram marinheiros?
O manifesto
“Nós, marinheiros, cidadãos brasileiros e republicanos, não podendo mais suportar a escravidão na Marinha Brasileira, a falta de proteção que a Pátria nos dá; e até então não nos chegou; rompemos o negro véu, que nos cobria aos olhos do patriótico e enganado povo. Achando-se todos os navios em nosso poder, tendo a seu bordo prisioneiros todos os Oficiais, os quais, têm sido os causadores da Marinha Brasileira não ser grandiosa, porque durante vinte anos de República ainda não foi bastante para tratar nos como cidadãos fardados em defesa da Pátria, mandamos esta honrada mensagem para que V. Excia. faça os Marinheiros Brasileiros possuirmos os direitos sagrados que as leis da República nos facilita, acabando com a desordem e nos dando outros gozos que venham engrandecer a Marinha Brasileira; bem assim como: retirar os oficiais incompetentes e indignos de servir a Nação Brasileira. Reformar o Código Imoral e Vergonhoso que nos rege, a fim de que desapareça a chibata, o bolo, e outros castigos semelhantes; aumentar o soldo pelos últimos planos do ilustre Senador José Carlos de Carvalho, educar os marinheiros que não tem competência para vestir a orgulhosa farda, mandar por em vigor a tabela de serviço diário, que a acompanha. Tem V.Excia. O prazo de 12 horas, para mandar-nos a resposta satisfatória, sob pena de ver a Pátria aniquilada.”
Bordo do Encouraçado São Paulo, em 22 de novembro de 1910.
Nota: Não poderá ser interrompida a ida e volta do mensageiro.
– Marinheiros
Primeiros Negros
Encouraçado Minas Gerais, 16 de novembro de 1910
Como determina o Código Disciplinar da Marinha do Brasil, todos são chamados ao convés para presenciar a punição de Marcelino Rodrigues Menezes, com 250 chibatadas nas costas. Isso porque o marinheiro, um homem negro, leva cachaça a bordo e fere um colega com uma lâmina de barbear, uma navalha.
O rigor da punição, aplicada sob os olhares da tropa, provoca indignação. Na verdade, é a gota d’água. Às 22 horas, de 22 de novembro de 1910, tiros a bordo alertam os outros navios no porto do Rio de Janeiro, então capital federal, que a revolta havia começado.
Quando chegam à baía de Guanabara, os fuzileiros, marinheiros do navio de guerra Minas Gerais, matam seis oficiais. Deixam um ferido, que escapa para o encouraçado São Paulo, outro navio de guerra, e avisa os demais oficiais, que fogem para terra firme.
Na mesma noite, o motim – com entre 1.500 e 4.000 rebelados – se estende ao encouraçado São Paulo, ao cruzador Bahia, ao navio de defesa costeira Deodoro, ao navio República, ao navio-escola Benjamin Constant e aos torpedeiros Tamoio e Timbira. João Cândido Felisberto, na Marinha desde os 14 anos, conhecido como “almirante negro”, é o líder da revolta.
O que queremos?
Antes da meia-noite de 22 de novembro, os rebeldes enviam um telegrama ao presidente da República, Hermes da Fonseca, há uma semana no cargo, nos seguintes termos:
“Não queremos o retorno da chibata. Isto é o que pedimos ao Presidente da República e ao Ministro da Marinha. Queremos uma resposta imediata. Se não recebermos tal resposta, destruiremos a cidade e os navios que não são revoltantes.”
O presidente se recusa a negociar. E a força rebelde se prepara para a possibilidade de um cerco prolongado, com carvão e suprimentos.
O manifesto, no início deste artigo, é enviado ao governo, redigido pelo marinheiro Francisco Dias Martins, o Mão Negra, mas atribuído a João Cândido. Nele, os marinheiros exigem anistia para os revoltosos, o fim das chibatadas e ameaçam bombardear a cidade em 12 horas, se não forem atendidos.
Hermes da Fonseca força o confronto. O problema é que os navios de guerra de grande tonelagem, blindados, dotados de potente artilharia, estão sob poder dos amotinados. No primeiro embate, o governo é obrigado a recuar. E, depois que o sol nasce, bombardeiam instalações da Marinha e disparam contra o Palácio do Catete, sede da Presidência. Os tripulantes têm controle total dos navios de guerra. .
Respostas opostas
O Congresso Nacional – liderado pelo senador Rui Barbosa, candidato à Presidência da República derrotado – quer negociar com os marinheiros e aprova a anistia dos rebelados, bem como o fim dos castigos corporais.
Em 27 de novembro de 1910, as armas são depostas, as embarcações devolvidas e os amotinados se rendem. Só que no mesmo dia, o presidente da República – que havia sancionado a Lei da Anistia – assina um decreto que expulsa todos os rebelados da Marinha, sem necessidade de instauração de processo legal.
Os navios são desarmados para evitar a repetição de rebeliões e os rebeldes dispensados — cerca de 1.300 deles. O governo, mais tarde, afirma que todos receberam passagens para retornar aos seus estados de origem. Mentira!
Revolta da revolta
Uma semana mais tarde, em 4 de dezembro, quatro fuzileiros navais são presos na Ilha das Cobras, sede do Batalhão Naval.
Passados cinco dias, tripulantes a bordo do Rio Grande do Sul, único dos maiores navios de guerra do Brasil a não participar da Revolta da Chibata, também se amotinam, não conseguem tração suficiente para controlar o navio. O saldo é a morte de boa parte deles, mesmo depois da rendição.
Mais de 600 homens do ex-amotinado Minas Geraes, mesmo anistiados, são presos na Ilha das Cobras, sede do Batalhão Naval.
Dos sobreviventes – mais de uma centena de ex-marinheiros -, a maioria é forçada a embarcar no navio a vapor Satélite, que sai do Rio de Janeiro em direção ao Amazonas, para campos de trabalhos forçados nos seringais ou para a construção da ferrovia Madeira-Mamoré. Parte é fuzilada no caminho.
Os amotinados que ficam, totalizando 37 pessoas, são recolhidos a duas prisões, em celas escavadas na rocha, também na Ilha das Cobras, onde morrem sufocados. Só dois sobrevivem! Entre eles, o líder João Cândido.
A loucura do “Almirante negro”
Depois da experiência na Ilha das Cobras, João Candido, o “almirante negro” – apelido que lhe foi dado pelo imprensa – é atingido por alucinações e enviado, como prisioneiro, a um hospital psiquiátrico em Salvador, na Bahia, à espera de julgamento por suas ações contra o governo durante as revoltas de dezembro de 1910.
O diagnóstico assinado pelo psiquiatra Juliano Moreira, pioneiro negro, é “Psicose de exaustão” – contrariando o pensamento racista do meio acadêmico, que atribuía os problemas psicológicos da população brasileira à miscigenação, o médico defendia a ideia de que a origem das doenças mentais se devia a fatores físicos e situacionais, como a falta de higiene e de acesso à educação.
Julgado após 18 meses, João Cândido é inocentado. Mas, mesmo assim, expulso da Marinha. O ano é 1911.
Negros organizados
A Revolta da Chibata entra para a história do Brasil como algo não planejado, feito no calor do momento. Mas não! A Revolta da Chibata é o ápice de um movimento de homens negros que se organizam para reivindicar direitos – a trabalho, salário e vida digna. Não eclode de maneira espontânea, é parte de uma luta política!
O castigo corporal, até para punir delitos menores, era a norma na Marinha. Apesar de tal medida ser proibida desde a Constituição de 1824, para a população em geral, e para o Exército, desde 1874, a Marinha só é afetada pela proibição em novembro de 1889, quando da proclamação da República – e torna a proibição sem efeito um ano depois, por conta do descumprimento generalizado.
E o problema não é “só” o uso da chibata! De acordo com Código Disciplinar, os marinheiros não podiam casar, estudar, exercer atividades associativas e políticas. As punições incluíam a presença obrigatória de toda a tripulação que, além de o mínimo de 25 chibatadas para faltas graves, incluía prisão a ferro na solitária – por um a cinco dias – ou a pão e água, para faltas leves.
Há muito tempo, os marinheiros se articulavam para melhorar as condições de vida e trabalho, inspirados pela convivência com marinheiros negros do Reino Unido.
A origem
Vale voltar a 1888… O Brasil é o último país do Ocidente a abolir a escravidão e vive anos de instabilidade até a chegada do século XX, com revoltas, rebeliões, proclamação da República….
Os anos 1900, com a crescente demanda por café e borracha e o desejo de transformar o país em potência internacional cria a necessidade de modernização da Marinha de Guerra, então à míngua e sem pessoal.
Daí se tem uma “grande ideia”: colocar oficiais brancos de elite para comandar tripulações com maioria de pessoas negras – escravizados libertos pela lei áurea ou filhos da lei do ventre livre (?), de 1871. Todos, “naturalmente”, menos educados do que seus supervisores brancos, também de acordo com a lei.
O governo, na verdade, queria “matar dois coelhos com uma só cajadada”, como diz a expressão popular: de um lado “limpar a capital federal da escória”, removendo-a da sociedade, e, de outro, garantir mão de obra sub-empregada.
E a Marinha serviria a esse propósito como “depósito de humanos” – leia-se: pretos, pobres, jovens, órfãos, suspeitos de crimes… -, que na base da punição e do trabalho forçado beneficiariam o país.
Todos eram “empregados” como aprendizes, quando tinham em torno de 14 anos, e ligados compulsoriamente à Marinha por 12, 15 anos. Voluntários, que constituíam um percentual muito baixo do total de recrutas, serviam por 9 anos.
João Cândido mesmo, ingressa na Escola de Aprendizes Marinheiros em Porto Alegre (RS), no mesmo ano passa a compor a 16ª Companhia da Marinha do Brasil, no Rio de Janeiro, trabalha por 15 anos, é castigado nove vezes, preso em solitárias e rebaixado duas vezes de cabo a soldado. De sua ficha constam, ainda, 10 elogios por suas qualidades de liderança.
Tiro pela culatra
Mas querendo invisibilizar ainda mais o povo de origem africana nascido no Brasil, o governo acabou por “financiar” a sua politização ao enviar os marinheiros para treinamento no exterior – como se costuma dizer, em outra expressão popular, “o tiro saiu pela culatra”.
Na primeira década do século XX – enquanto eram qualificados para operar os navios de guerra, para se tornar fuzileiros de guerra -, os marinheiros do Brasil entraram em contato com as armadas de outros países, onde já haviam suprimido os castigos físicos.
Em Newcastle, Reino Unido, viram trabalhadores sindicalizados fazer greve e atrasar a conclusão dos novos navios de guerra brasileiros!!! Ficaram sabendo da luta dos marujos britânicos por direitos e também da revolta no encouraçado Potemkin, da Marinha russa, em 1904.
Conviveram com marinheiros que eram pagos em dia, em dinheiro, e ainda recebiam um valor extra para comprar suas próprias refeições – diferente deles, que recebiam soldos insignificantes e estavam sujeitos a toda sorte de doenças, por conta da alimentação precária.
Foi lá, em território estrangeiro, que os marinheiros se organizaram. João Cândido estava entre eles e, certa vez, ao ser entrevistado contou que, no exterior, os marinheiros “mantiveram os comitês nos hoteis onde residiam, aguardando a construção dos navios”.
A revolta estava prevista para 25 de novembro de 1910 – dez dias após a posse de Hermes da Fonseca- e só foi antecipada por conta da truculência dos oficiais. A punição imposta a Marcelino Rodrigues Meneses no encouraçado Minas Gerais – o marinheiro continuou sendo chicoteado, mesmo desmaiado – foi o estopim!
Vida que segue
Depois de 1911 – ao receber alta no hospital psiquiátrico onde esteve preso como “louco” -, João Cândido torna-se estivador e vendedor de peixes no mercado da Praça XV, em frente ao porto do Rio de Janeiro.
O tempo passa até que o jornalista Edmar Morel encontra João Cândido, resgata sua história do esquecimento e lança o livro “A Revolta da Chibata“, em 1959.
Quinze anos depois, a Revolta da Chibata volta à cena, com João Bosco e Aldir Blanc querendo celebrar a jornada, a vida de João Cândido, com a música “O Mestre Sala dos Mares”, interpretada por Elis Regina.
Mas João Cândida ainda é figura non grata pelas forças armadas em 1974 e a ditadura militar censura a menção – no título e na letra da música – ao apelido do marinheiro e obrigam os compositores a substituirmos “Almirante Negro” por “navegante negro”.
O título original da música era “Almirante Negro”.
Abaixo, os trechos alterados pelo Departamento de Censura da Polícia Federal do Brasil:
“Há muito tempo nas águas da Guanabara
O dragão do mar reapareceu…
Conhecido como o navegante negro
Tinha a dignidade de um mestre-sala…
Glória a todas as lutas inglórias
Que através da nossa história não esquecemos jamais
Salve o navegante negro
Que tem por monumento as pedras pisadas do cais
Somente em 23 de julho de 2008, o governo brasileiro entende que as causas da revolta de 1910 eram legítimas e concede anistia aos marinheiros envolvidos.
Mas João Cândido o “Almirante Negro” continua a incomodar. Em 2024, tentaram inscrever seu nome no livro de aço dos Herois e Heroínas da Pátria, uma homenagem prestada aos brasileiros que deram contribuições importantes ao país – projeto de lei do deputado Lindbergh Farias (PT-SP) -, mas já tem gente da Marinha chiando.
É inegável, entretanto, que a Revolta da Chibata é um dos primeiros grandes movimentos de protesto contra o governo no Brasil e ajudou a impulsionar a Reforma Militar de 1911, que melhorou as condições de vida e de trabalho nas forças armadas.
E que João Cândido Felisberto “sacudiu” e ainda “sacode” a República, apesar de sua vida ter acontecido entre 24 de junho de 1880 e 6 de dezembro de 1969.
Filho de ex-escravizados, ele nasce na fazenda Coxilha Bonita, na cidade de Encruzilhada do Sul, no Rio Grande do Sul, e morre em São João de Meriti, no Rio de Janeiro.
. . .
Fontes: Uol Educação, Wikipédia, Atlas-FGV, Toda Matéria, BrasildeFato
Escrito em 1 de novembro de 2024