A gente, homem negro, é da hora!
– Tania Regina Pinto
Itamar Assumpção, Lázaro Ramos e Solano Trindade (Candido Vinícius sobre fotos de Homero Sergio/Maurício Fidalgo/Arquivo Nacional)
E as masculinidades negras podem ser apaixonantemente revolucionárias!
“A primeira vez que eu li bell hooks, ainda adolescente, em cada página eu sentia transpirar informação, transgressão e paixão. Esse primeiro contato, naquele momento eu que eu tentava compreender quem eu era e como me encaixar no mundo, foi determinante para minhas escolhas futuras e se tornou um dos faróis para questões que nunca discuti dentro de casa. Desde então, no meu vocabulário, em conversas com amigos, jovens, desconhecidos ou quem mais papeasse comigo, uma frase sempre era repetida: ‘leia bell hooks’. Com este livro, a frase ganha outra cor. Agora grito aos sete ventos: ‘leia A gente é da hora: homens negros e masculinidade, de bell hooks.”
Assim escreve o nosso Lázaro Ramos, multiartista, diretor do filme Medida Provisória, protagonista da série televisiva Mister Brown, o Foguinho da novela, na apresentação das 269 páginas de A gente é da hora: homens negros e masculinidade, de bell hooks. Um livro que, na contracapa mesmo, “tece duras críticas à adesão da maioria dos homens negros à masculinidade falocêntrica” da sociedade capitalista imperialista e branca.
Segundo a autora, ao adotar uma pose “legal” – pautada pelo machismo e pela violência, nas quais o sentimentalismo e a vulnerabilidade são permitidos, os homens negros atentam contra si mesmos.

bell hooks fala em nome da libertação masculina negra e o faz declarando todo o seu amor aos homens negros – pai, irmão, avô, amigos e amantes – para que abandonem o vitimismo em busca de autenticidade e autodeterminação.
O livro traz uma perspectiva histórica para a nossa compreensão de como o machismo “se apropriou” do modo de o homem negro estar na vida, contemplando a luta permanente – com batalhas ganhas e perdidas -, pelo próprio existir durante o processo de escravização.
O maior desafio? Manter a própria humanidade!
O sociólogo Túlio Costa, que assina o prefácio à edição brasileira de A gente é da hora: homens negros e masculinidade, aponta como um dos “mais valiosios pontos da obra de bell hooks”, a profundidade com que aborda as opressões sociais, sempre mencionando os princípios do capitalismo, a sociedade patriarcal e a supremacia branca que emerge do contexto civilizacional do Ocidente.
Em outras palavras, a autora vai muito além da questão de gênero. Sua análise é viva e acompanha as contradições da dinâmica da vida.
“hooks estabelece uma capacidade crítica criativa de enxergar a masculinidade negra em dois eixos: as formas que não são contempladas pelo padrão unidimensional do Homem da masculinidade hegemônica patriarcal; e o ‘não lugar’ que o ser negro preenche dentro do projeto limitado e violento da masculinidade falocêntrica”, indica Túlio Costa.
Leia o artigo Mulherismo Africana, o feminismo que acolhe o ser negro, que aborda o olhar ancestral para as questões de gênero, que não se sobrepõem à questão de raça, povo, classe.
Sobre masculinidade falocêntrica, vale destacar, ainda, e compreender que o homem negro representa, no modelo racista, capitalista e imperialista, o “fora-da-lei”, o sem-civilidade. Ideia que reforça os padrões racistas e que muitos homens negros “compram” como forma de se enxergar, reproduzindo o próprio genocídio.
A intelectual considera fundamental – para desorganizarmos o sistema opressor – entender o patriarcado, bem como outros sistemas de exploração, dominação e opressão.
Para ela, todos os sistemas sustentam a desigualdade – produção, distribuição de valor, dividendos, lucros… – e estão ancorados na “ética” do exercício de poder, controle e rivalidade binária, hierárquica, opositora, do tipo masculino x feminino; exploração x dominação, preto x branco…
A questão é que o homem negro não desfrutará dos dividendos do patriarcado, mesmo que tente reproduzir o jeito de o homem branco ser. Isso porque pessoas negras não têm os requisitos historicamente instituídos para isso! Se muito, aos homens negros serão dadas as moedas…
Leia o artigo Democracia Racial: Fato ou Fake?, na coluna Sem Mordaça.
Sem vitimismo
A gente é da hora… traz um colo, um consolo, mas não abre espaço para o vitimismo e, sim, para a reflexão sobre as nossas responsabilidades – de homens e mulheres pretos e pretas – , o que inclui refletir criticamente sobre quem somos, como nossos corpos são tratados como um alvo para a morte, curar-se e criar conexões.
A proposta de “não vitimização” é no sentido de não nos apropriarmos de um discurso de menos valia.
Ela constrói uma crítica para que homens negros confrontem seu lugar estrutural de vítima, especialmente o compromisso da branquitude de negar o reconhecimento do homem negro como homem, como o psicanalista Frantz Fanon escreve em sua obra Pele Negra, Máscaras Brancas. E, ao mesmo tempo, escreve sobre amar e ser amado, masculinidades alternativas, identidades masculinas negras distintas do estereótipo.
Desde o escravismo colonial, a promessa de inclusão social para os homens negros se confunde com a promessa de exercício de uma masculinidade patriarcal. Só que já passou da hora de compreendermos que não existe uma única masculinidade. É preciso superar o patriarcado. Só assim vamos nos tornar “autênticos” ou “da hora”, como sugere o título do livro, traduzido para o português.

O melhor de nós
Dizer não ao próprio genocídio implica transformar o modo de compreender-se. A ideia de vidas negras importam tem a ver, também, com quem nos propomos ser. Dialogar com bell hooks, através de seu livro, parece e é desafiador. Mas não se pode esquecer que é uma questão de vida ou morte.
Patriarcado, racismo, capitalismo, machismo, colonialismo não servem ao povo negro. Patriarcado, racismo, capitalismo, machismo, colonialismo fazem parte da receita para a nossa morte.
We Real Cool, além do título original do livro de bell hooks, lançado em 2004, é também uma das obras mais conhecidas da poeta negra estadunidense Gwendolyn Brooks, em que retrata um eu-lírico coletivo – os jovens negros – ansioso por viver perigosamente, com confiança e determinação:
“We Real Cool
The Pool Players.
Seven at the Golden Shovel.
We real cool.We
Left school. We
Lurk late. We
Strike straight. We
Sing sin. We
Thin gin. We
Jazz June. We
Die soon.”
Diante da complexidade de transpor We Real Cool ao português, na página 26 de A gente é da hora são apresentadas duas versões:
“A gente é da hora
Jogadores de Sinuca.
Sete no Taco de Ouro.
A gente é da hora. A gente
Largou a escola. A gente
Embalada na balada. A gente
Ataca na tacada. A gente
Xinga sim. A gente
Ginga gim. A gente
Funkeia fevereiro. A gente
Morre bem cedo.”
“A gente é legal
Jogadores de Sinuca.
Sete no Taco de Ouro.
A gente é legal. A gente
Largou o colegial. A gente
Manda na madrugada. A gente
Acerta na sinuca. A gente
Foge da igreja. A gente
Segue a cerveja. A gente
Samba à beça. A gente
Morre depressa.”
Sem ódio
“Quando as mulheres se reúnem e falam sobre homens, as notícias são quase sempre más. Se a conversa se torna específica e o foco recai sobre homens negros, as notícias são ainda piores. Apesar de todos os avanços nos direitos civis, no movimento feminista e na liberação sexual, quando os holofotes se voltam para os homens negros a mensagem é que eles não conseguiram sair do lugar (…)”
O parágrafo abre o prefácio para chamar a nossa atenção para o fato de que estamos imersos em uma cultura que não ama o homem negro, apenas o deseja:
“...nem os homens negros se amam. Sobretudo, a maioria dos homens negros não se ama. Como eles poderiam amar a si mesmos e uns aos outros (…) cercados de tanta inveja, desejo, ódio? Homens negros na cultura do patriarcado supremacista branco capitalista imperialista são temidos, não amados (…) Se os homens negros fossem amados, poderiam esperar mais do que uma vida trancafiada, enjaulada, confinada…” – no Brasil, 68,2% da população carcerária é de homens negros.
Leiam o artigo Justiça para o povo preto, na coluna Serm Mordaça.
Mas bell hooks não se refere só às estatísticas do sistema penitenciário. Ela escreve sobre o impedimento de o homem negro existir, sendo forçado, em algum momento da vida (ou sempre), a conter o Eu que desejaria expressar, reprimindo-se, refreando-se, por medo de ser atacado, massacrado, destruído, “Homens negros, muitas vezes, vivem em uma prisão mental, incapazes de encontrar uma saída”.
Vistos como animais, brutos, estupradores por natureza e assassinos, os homens negros não têm sua voz ouvida de verdade. Vítimas de estigmas articulados no período da escravização, grande parte incorpora o estereótipo negativo, deixando que se sobreponha sobre sua própria identidade, como estratégia de sobrevivência.

Não podemos perder de vista a cor – a raça, como inventou a branquitude – de quem raptou, escravizou, violou de todas as formas os corpos negros. Não podemos perder de vista que o homem negro, desde o primeiro momento da escravização – no início, só jovens negros eram capturados como se fossem animais para serem escravizados -, rebelou-se, buscando reconquistar a própria liberdade. Não podemos perder de vista os mais de 100 anos de resistência do Quilombo dos Palmares, iniciado no século XVI.
Inquestionável a potência do povo preto, a resistência, a capacidade de luta. Quando da escravização, nos impediram de falar, tiraram nossas famílias, proibiram os nossos nomes, reprimiram a nossa espiritualidade natural, nos dispersaram para que não conseguíssemos nos comunicar e, até hoje, tentam nos manter separados – seja pela cor da pele, pela origem, pela religião, pelo gênero, nos “ensinando” a nos odiar.
A intenção deste artigo não é outra senão repetir Lázaro Ramos e gritar os sete ventos: “leia A gente é da hora: homens negros e masculinidade, de bell hooks”.
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Agosto 2023
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