Pular para o conteúdo

Justiça para o povo preto

-Tania Regina Pinto

Rebelião no presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte, em 2017 (Imagem: reprodução)

Os maiores e mais famosos criminosos do país são brancos e ricos. Mas, nos presídios, a maioria é negra e pobre, sem condições de financiar a própria defesa.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, no capítulo sobre o sistema prisional, registra 826.740 pessoas privadas da liberdade no Brasil, sendo 781.947 homens, dos quais 442.033 são negros.

O peso destes números atuais esconde, entretanto, a história de encarceramento da população preta: em 2005, 91.843 homens negros estavam atrás das grades, junto com 62.574 homens brancos. Quer dizer, em 17 anos, aconteceu um aumento de 381,3% de pretos encarcerados e de 215% brancos na mesma situação!

É questão de justiça negra porque a Justiça do Brasil é branca, falha e preconceituosa.

Quem usa a toga não faz cumprir a Lei Antirracista 7.716/89 nem a Constituição Federal que, no seu artigo 5º , diz que “todos são iguais perante a lei”.

Os números – até 11 de agosto de 2020 – eram a maior prova de racismo no Judiciário brasileiro, até que uma advogada indignada decidiu tornar pública a sentença de uma juíza branca, que condenou seu cliente “em razão da sua raça” – como explicitou, por três vezes, em sentença de 115 páginas. Ah, sim, o cliente é negro.

Martelo racista

O fato aconteceu na região sul do Brasil, em Curitiba, capital do Paraná. Lá, a juíza Inês Marchalek Zarpelon, ao sentenciar Nathan Vieira da Paz, de 48 anos, escreveu: “Sobre a sua conduta social, nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça, agia de forma extremamente discreta…”

A decisão aconteceu em junho de 2020, mas só ganhou repercussão depois que Thayse Pozzobon, a advogada, compartilhou o texto nas redes sociais.

Nathan foi condenado a 14 anos e dois meses de prisão em regime fechado, além de multa, sob acusação de roubos e furtos. Em entrevista à TV Globo, ainda, a advogada denunciou, que a juíza utilizou “a raça (do seu cliente)  para aumentar em sete meses a pena, o que é inadimissível”.

Sobre os outros réus julgados do processo, todos acusados de ser parte da mesma organização criminosa, a juíza não teceu comentários “em razão da raça”.

Aí, o fato novo! O martelo racista sem disfarce.

Viés racial

No dia a dia do Judiciário, o viés racial aparece nas entrelinhas, como os elos geográficos, que trazem a marca da cor implícita. “O Judiciário é muito mais duro e cruel com relação a pessoas negras e menos garantidor de direitos do que em relação a pessoas brancas”, denuncia o advogado Thiago Amparo, professor de políticas de diversidade da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas, em artigo no jornal Folha de S. Paulo.

Para Isadora Brandão, primeira mulher negra a coordenar o Núcleo de Diversidade e Igualdade Racial da Defensoria Pública de São Paulo, o fato de a cor da pele do acusado não constar explicitamente dos autos, para fundamentar uma decisão judicial, não muda a percepção de que há uma criminalização dos negros.

“A discriminação indireta se dá a partir do efeito que uma determinada prática institucional gera. Há racismo institucional independentemente de aferir intenção dos atores institucionais envolvidos”. 

Que droga!

O branco precisa estar com 80% a mais de maconha do que o preto e pardo para ser considerado traficante. Para um analfabeto, por volta de 18 anos, preto ou pardo, a chance de ele, com uma quantidade ínfima, ser considerado traficante é muito grande. Já o branco, mais de 30 anos, com curso superior, precisa ter muita droga no momento para ser considerado traficante.”

Quem denuncia, dessa vez, é o ministro Alexandre de Moraes, em julgamento sobre a descriminalização da maconha no Supremo Tribunal Federal (STF). Na sua tese, em defesa da descriminalização, o ministro indica a necessidade de se colocar critério para diferenciar o uso pessoal do tráfico e defende a necessidade de se diminuir a “discricionariedade”, seja na abordagem policial, seja nos julgamentos.

Para fundamentar seu voto, Alexandre de Moraes se baseia em um estudo da Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), que analisou mais de 1,2 milhão de ocorrências policiais de apreensão de pessoas com a droga.

Para nós, povo preto, a notícia não é nenhum furo de reportagem. Há tempos, as estatísticas informam do racismo estruturado nas polícias e na Justiça do Brasil.
Neste mesmo artigo, agora atualizado, acusamos a situação praticamente idêntica com dados de 2016.

Mas, agora, estamos em 2023, segundo semestre, e o estudo no qual se baseia um dos representantes do Poder Judiciário é ainda mais robusto.

Número atualizados

De acordo com o estudo, a média de maconha apreendida no caso de analfabetos acusados como traficantes é de 32 gramas. Já para o caso de pessoas com curso superior é de 49 gramas, uma diferença de 52%, baseado nos critérios de grau de instrução, idade, cor da pele. 

“Não há razoabilidade para isso”, declara Alexandre em seu voto. E entende, ainda, que o STF tem competência para definir limites de quantidade para se diferenciar o usuário do traficante, o que hoje não existe na Lei Antidrogas

Para Moraes, é evidente que muitos usuários estão sendo processados como traficantes. E a consequência, na prática, está no número de presos por tráfico de drogas, que triplicou, em um período de seis anos após a legislação.

Detalhe salientado pelo ministro:

“Não triplicamos com brancos , com mais de 30 anos, com ensino superior. Triplicamos com pretos e pardos, sem instrução e jovens. Há necessidade de equalizar uma quantidade média padrão como presunção relativa para caracterizar e diferenciar o traficante do portador para uso próprio. Essa necessidade vai ao encontro do tratamento igualitário dos diferentes grupos sociais, culturais, raciais. O branco ou o negro, o analfabeto ou o que tem pós doutorado, o velho ou o jovem, vão ter tratamentos iguais.”

Leia mais sobre o julgamento da descriminalização da maconha, no STF desde agosto de 2006, no final deste artigo.

Nunca é demais lembrar a frase de Djamila Ribeiro sobre o tema:

“Negro é traficante, branco é estudante que faz ‘delivery de drogas’”.

Tudo igual!!!

Em 2016, levantamento realizado pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen), já apontava que 65% da população encarcerada no Brasil era composta por pretos e pardos identificações de cor que compõem o grupo racial negro, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

As pesquisas do mesmo Depen revelavam, ainda, que o maior motivo de encarceramento é o tráfico de drogas. O crime correspondia a 28% das incidências penais, aumento diretamente ligado ao início da vigência da Lei 11.343/2006conhecida como Lei Antidrogas -, que só não conseguiu, até agora, diminuir o número crescente de usuários.

Estamos nos referindo a 176 mil pessoas presas só por tráfico em 2017!

Na época, discutia-se o agravantea aprovação pelos “nossos” políticos de uma Lei Antidrogas que não diferencia quem é traficante de quem é usuário e a ausência de um parâmetro sobre quantidade de droga, permitindo que pessoas fossem condenadas por tráfico apenas com base em presunção.

Moral da história do racismo à brasileira?

Em nome da lei – de novo e mais uma vez – se encarceram negros e negras.

Outro detalhe sórdido – do qual a Justiça, agora, parece tomou ciência: pessoas negras são consideradas traficantes portando quantidades menores de drogas do que pessoas brancas.

Em 2016, a diferença era de quase 50% a favor dos brancos nas desclassificações de “posse de drogas para consumo pessoal”: 7,7% entre os brancos e 5,3% entre os negros. É o recorte racial,  perverso. É o racismo estrutural.

Os números, da Pública Agência de Jornalismo Investigativo, apontam mais de quatro mil sentenças de primeiro grau para o crime de tráfico de drogas julgados na cidade de São Paulo em 2017, envolvendo 4.754 réus. Quase um… “quer que eu desenhe?”:

Enquanto 9,3% dos negros foram considerados usuários, porque portavam, em média, 39,4 gramas de maconha; 15,2% dos brancos foram considerados usuários, com até 42,8 gramas da erva.

Mas não nos iludamos! Esta lógica racista não se restringe ao uso da maconha. Esta lógica racista se repete na apreensão de cocaína e crack.

Testemunho policial

Apesar de o Supremo Tribunal Federal (STF) ter-se posicionado sobre a constitucionalidade do artigo 28 da Lei Antidrogas, com o ministro Gilmar Mendes afirmando que “a palavra do policial não pode ter valor absoluto”, a maioria dos casos julgados tem os policiais como única testemunha.

Saliente-se, ainda, que 84% destes processos referem-se à apreensão de até 10 gramas! – 16%, variam de 11 a 100 gramas.

Quer dizer, a mesma polícia responsável por 75% das mortes de pessoas negras no Brasil, de acordo com relatório produzido pela Rede de Observatórios da Segurança, funciona como a bala de prata dos tribunais.

E, assim, não só na capital paulista, mas no estado de São Paulo, mesmo nas cidades onde os negros são percentualmente em número menor na população local, eles aparecem em maior número no envolvimento com a Justiça.

São Vicente, por exemplo, tem o maior índice de população negra sentenciada por tráfico – a população negra local é de 46%; nos presídios, 73%. Santo André, no ABC Paulista, registra a maior diferença entre negros no Tribunal de Justiça e na população local – são 27% de negros vivendo na cidade e 59% encarcerados. Entre os julgados no município de São Paulo em 2017 por tráfico, 63,6% eram negros e 36,4%, brancos, proporção que se inverte em relação à população da cidade, onde 37% são negros e 61%, brancos.

De acordo com a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro, oito em cada dez  pessoas presas são negras e têm mais dificuldade de responder a processos em liberdade.  Já os brancos respondem mais em liberdade e são menos presos em flagrante.

E sigamos com os números que acusam.

Dissonância

O percentual de pessoas negras que tomaram posse como membros da magistratura no Brasil subiu de 12% até 2013, para 21%, entre 2019 e 2020. O resultado mostra o impacto da implantação da política de cotas raciais no Poder Judiciário, instituída pela  Resolução 203/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). 

E, nesse ritmo, a equivalência de pessoas negras na magistratura só será atingida entre os anos de 2056 e 2059!!! . Esse é um dos dados da pesquisa “Negros e Negras no Poder Judiciário”, realizada pelo Conselho.

“É preciso destacar que não basta cumprir regramento em relação à reserva de cotas raciais; mas sim incidir sobre algo maior: a própria discussão sobre diversidade e igualdade racial e a incorporação do tema como matéria a se espraiar nas rotinas administrativas, nos registros funcionais e nas atividades de comunicação e formação.” 

(Palavra do então presidente do CNJ, ministro Luiz Fux, em 2021)

O fato é que, por mais que se fale em “Poder Judiciário mais democrático e mais plural do ponto de vista étnico-racial”, a Justiça do nosso país continua BRANCA, gritantemente BRANCA.

Na composição do Judiciário, responsável por colocar as pessoas que cometem crimes na cadeia, basicamente, homens brancos…. Mulheres são 37,5%. Pretos e pardos, 18% – 1,6% e 16,5%, respectivamente, segundo levantamento do Conselho Nacional de Justiça em 2018. E quanto maior o cargo, menor o número de mulheres e negros, pela ordem.

Os sites dos Tribunais de Justiça em fevereiro de 2020 apontam que as mulheres são cerca de 20% do total de desembargadores —magistrados que julgam processos de segunda instância. Mas este percentual cai à metade no maior Tribunal de Justiça do país, o de São Paulo, onde são menos de 10% as mulheres, 31 para um total de 360 desembargadores.

Quando o quesito cor da pele é computado – aponta o estudo JUSTA do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais -, no mesmo Tribunal, os juízes brancos têm 4,6 vezes mais chances de se tornarem desembargadores, do que juízas negras.

Nunca é demais repetir que somos a maioria da população, como negros e como mulheres. O que evidencia que o nosso Judiciário destoa, completamente, da sociedade que julga e tem obrigação e proteger.

Para fechar o olhar sobre a toga, lembremos o nosso midiático STF com seus nove juízes e duas juízas, todos de pele clara. Um poder criado em 9 de janeiro de 1829 e que nos seus 192 anos teve apenas três juízes negros: Pedro Lessa, que tomou posse em 1907;  Hermenegildo de Barros, empossado em 1919, e Joaquim Barbosa, em 2003.

Subproduto da escravidão

A atuação da Justiça no Brasil é um subproduto do regime escravocrata. Negros nascidos livres ou alforriados eram condenados à escravidão se não pudessem comprovar sua condição – igualzinho ao filme 12 anos de Escravidão, que fez tanto sucesso e não é ficção. Na dúvida, grilhões. Neste assunto, também e infelizmente, as Américas são irmãs siamesas.

Mas a história mais marcante ocorrida em território nacional é de Luiz Gama. Nascido livre, foi vendido como escravo pelo próprio pai e dedicou-se a libertar, pela lei, a si próprio e a outros que, como ele, foram ilegalmente – porque injusto todo sequestro humano é – escravizados.

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Sobre esta história vale um mergulho no livro Um Defeito de Cor, de Ana Maria Gonçalves, que fala da vida real da mulher africana que pariu o primeiro advogado negro do Brasil.

Sem documento, sem carta de alforria no bolso, todo negro é escravo – orientava o magistrado Eusébio de Queiroz no século XIX.

Áurea na cegueira

E depois do tal 13 de maio de 1888, quando não podia mais valer esta regra, criaram o primeiro Código Penal do país, em 1890, para legitimar a exclusão dos libertos, transformando em crime o viver negro, o caminhar negro, a ginga, o não estar sob a chibata, a religiosidade, a cultura, o existir…  Assim, o curandeirismo, a mendicância, a capoeira e a “vadiagem” passam a ser considerados crimes. E ser maior de idade é ter mais de 14 anos!

Mas o Código Penal não foi suficiente. Com a abolição, criminalizar o povo preto passou a ocupar as mentes acadêmicas, que também sonhavam com o branqueamento do povo brasileiro. E o desejo era tal que resolveram associar tamanho de cérebro à delinquência nata, com foco nas pessoas pretas  – e eu preciso usar de ironia para lidar com estes fatos históricos!

A ideia do “cérebro preto criminoso” é fruto do casamento da Medicina com o Direito – faculdades que proliferaram na época. E o bebê natimorto deste “casal” nos assombra há quase 150 anos.

“Somos culpados desde que nascemos” – lembra, com revolta e indignação, McMilliam, por estar injustamente no corredor da morte, devido a uma sucessão de erros arbitrários que o ligam ao assassinato de uma jovem de 18 anos, em  Luta por Justiça, de 2019, outro filme baseado em fatos reais e que aborda, muito bem, a manipulação da verdade.

Ah!, sim, McMilliam é negro, claro.

Desculpismo

O Código de Ética da Magistratura, artigo 9º,  “veda qualquer espécie de injustificada discriminação”, e a Lei Orgânica da Magistratura prevê  sanções que vão da advertência à aposentadoria compulsória de Inês Marchalek Zarpelon.

Quanto a Nathan, vítima da juíza, pode ter a sentença revista – a advogada pediu a anulação. No momento, ele aguarda em liberdade.

A venda nos olhos na Justiça é dupla quando a pele do julgado é preta. E reverter o racismo judicial é mais um dos grandes desafios do povo preto que vive no Brasil – mas negros e brancos precisam arregaçar as mangas para arrancar este câncer.

O Judiciário deve refletir o seu povo.

Para que servem as prisões? Ou será melhor perguntar: para quem servem as prisões? Injusta, ineficaz, só aumenta a insegurança e desperdiça vidas.

Racismo é ignorância irracional, sem base científica ou religiosa. É a negação de direitos. É política deliberada de exclusão, desde a Proclamação da República, em nome do branqueamento do Brasil.

Não há estatísticas demonstrando que negros praticam mais crimes que brancos. Mas por a Justiça ser racista há mais negros nas cadeias.

A igualdade é um dos princípios fundamentais da democracia moderna: iguais direitos civis, sociais e políticos, independentemente de suas diferenças de classe, etnia, gênero, geração ou convicções religiosas e político-ideológicas.

O papel da Justiça é assegurar direitos, garantir cidadania.

. . . . . . . . .

#justiçaparaopovopreto

O artigo 28, a Lei Antidrogas e a sua constitucionalidade

A constitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas, de 2006, está sendo julgado desde agosto de 2015. O artigo considera crime “adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.

Em 2015, três ministros do Supremo — Gilmar Mendes, Luís Roberto Barroso e Edson Fachin — votaram por invalidar o artigo, o que na prática descriminalizaria o porte de drogas para uso pessoal. Eles, contudo, divergiram na forma como a lei deve ser aplicada.

O relator, Gilmar Mendes, votou para descriminalizar o porte de todas as drogas. Fachin e Barroso também votaram pela descriminalização do porte, mas apenas da maconha, por ter sido essa a droga apreendida no caso em análise.

Os dois, no entanto, divergiram sobre uma questão central: a quantidade que diferencia um usuário de um traficante. Fachin propôs que essa quantidade deve ser definida pelo Legislativo. 

Já Barroso sugeriu um número: 25 gramas de maconha ou a plantação de até seis pés. Esse valor, contudo, não seria um parâmetro rígido, e poderia ser reavaliado por cada juiz, que precisaria fundamentar sua decisão.

O processo tem “repercussão geral reconhecida”, ou seja, o que for decidido pelos ministros da Corte terá que ser seguido por tribunais de todo o país.

Fontes:  O Globo, CNJ

Publicado inicialmente em 31 de outubro de 2021

Compartilhe com a sua rede:

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *