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A Pauta das Pretas

- Tania Regina Pinto

Marcha das Mulheres Negras / Acervo Instituto Ibirapitanga (Arte original: Inajah Cesar)

Ser mulher negra, mulher negra trans, mulher negra lésbica é especialíssimo. Se não nos olharmos na nossa integralidade, seremos eternamente vistas como “corpos que servem”. Chega disso! Nossos corpos, nossas regras, nossas demandas!

Este é um artigo em construção e atualização ad infinitum, eterno, porque são muitas as questões a serem resolvidas na sociedade racista, machista, classista, homofóbica, transfóbica, misógina, xenófoba, doente, em que vivemos.

O Movimento Negro – capitaneado por homens pretos – e o Movimento Feminista – das mulheres brancas – sempre enxergaram a ‘utilidade’ de terem mulheres negras na luta, executando tarefas… E é na “invisibilidade útil”, imposta pela sociedade, que nasce o Feminismo Negro, com foco nas especificidades de ser mulher e negra.

No Brasil dos anos 1970 nasce o Movimento de Mulheres Negras, já compreendendo a necessidade de trabalhar uma abordagem que contemple gênero e raça, a dupla discriminação por que passamos como negras.

Na época, os homens negros não queriam discutir sexismo e as mulheres brancas não queriam falar de raça!!! Mas iniciamos o processo para reeducá-los e reeducá-las, bem como aos demais movimentos, sobre a importância não só dos recortes raciais, mas também de gênero, nas mobilizações de direitos humanos.

As primeiras manifestações das mulheres negras, entretanto, aconteceram na década de 1940 na mídia impressa – mais especificamente no jornal Quilombo, o primeiro a abordar questões do ponto de vista feminino negro.

Em foco, os direitos trabalhistas, com destaque para a mobilização das empregadas domésticas, tendo à frente Laudelina dos Campos Melo.

Sempre os números

Mulheres negras lideram muitas estatísticas no Brasil – mas nada a celebrar! No mercado de trabalho, representamos o desemprego, como 16,6%, na comparação com homens brancos (8,3%), segundo levantamento do economista Cosmo Donato, da LCA Consultores.

No quesito igualdade salarial, mulheres negras têm um rendimento médio real menor que a metade da renda do homem branco. Acima delas também, os homens negros e, em seguida, as brancas.

No ambiente profissional, as mulheres negras possuem menos garantias de direitos do que as mulheres brancas. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA), as desigualdades raciais aparecem nas oportunidades de empregabilidade: tanto busca por uma vaga quanto nas competições sociais por espaços de poder, na condição de empresárias ou à frente da gestão de um negócio.

Conta-se nos dedos a presença de mulheres negras em reuniões de trabalho com gestores dentro de uma organização – em pleno século XXI ainda registramos pioneirismos com a chegada de uma negra a postos de comando de multinacionais!

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Olhando para o Mapa da Violência, outra pauta das pretas se escancara: enquanto o feminicídio de mulheres negras experimentou um crescimento de 54,2% entre 2003 e 2013, no mesmo período, o homicídio de mulheres brancas caiu 9,8%.

E quando a violência não acontece na primeira pessoa do singular, a mulher preta tem que defender os seus: dos cerca de 30 mil jovens entre 15 e 29 anos assassinados por ano no Brasil, 93% são homens e 77% são negros.

Pauta:

Preparando este texto, li um tweet sobre dois pais negros assassinados em dez dias e é impossível ter de escrever como pautas das pretas: que nossos filhos tenham vida, que nós tenhamos vida, que nossos homens tenham vida…. Coração apertado demais. Sem lágrimas. Não em sinal de força, mas de resistência e re-existência.

Pra ontem!

As questões das mulheres negras são urgentes e uma vez contempladas, atendem às necessidades de todas as mulheres. Ao passo que quando falamos de ‘mulheres’, a imagem no subconsciente da sociedade geralmente não é a de uma mulher negra.  

Trans, lésbicas…

E mulheres pretas também são diversas em suas demandas. Mulher preta e lésbica não é vista pelo Feminismo Negro. Muito menos se essa mulher lésbica é periférica. Ou se é uma preta trans ou, ainda, uma preta trans da periferia.

Linn da Quebrada

Linn da Quebrada (Foto: Wallace Domingues)

Mesmo vítimas de toda sorte de preconceitos ainda discriminamos os que consideramos diferente. E a questão que temos de nos fazer permanentemente – como propõe a acadêmica negra portuguesa Grada Kilomba – é: “diferente de quem?” 

Como maioria da população brasileira – pretos, pobres e mulheres -, não podemos mais ser vistos como diferentes, exóticos – que é tudo a mesma coisa e não pode ser confundido com elogio, porque é fala de exclusão. Diferentes são eles, os brancos! Minoria são eles! 

Carta das Mulheres

Um grupo de 35 mulheres – a maioria branca – se reuniu em janeiro de 2022 na cidade de São Paulo e escreveu a “Carta Aberta Brasil Mulheres” .

A partir de vivências diversas e do repertório dos movimentos feministas, de mulheres negras e indígenas, de mulheres cis e trans, da cidade e do campo, heterossexuais e LGBTQIA+, de diferentes classes sociais, religiões, faixas etárias, escolaridade, corpos, deficiências e regiões do Brasil, elas identificaram 19 pontos fundamentais que devem constar do programa de governo de todos os candidatos a cargos executivos, seja a Presidência da República ou governos estaduais, extensivo a deputados e senadores.

A questão racial aparece explicitada em trechos de apenas cinco dos 19 pontos elencados:

  • Paridade transversal de gênero e equidade de raça nas instituições públicas, políticas e privadas;
  • (…) Qualificação profissional, para autonomia financeira, de mulheres negras, indígenas, quilombolas e em situação de vulnerabilidade social;
  • (…) Cumprimento das metas do Plano Nacional de Educação. Incentivo à educação em ciência, tecnologia e empreendedorismo para meninas e mulheres, com atenção à juventude negra.
  • Reforma no modelo de segurança pública – enfrentamento ao encarceramento em massa, aos índices de homicídio da população negra
  • Valorização dos saberes de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais, na garantia da justiça climática e enfrentamento ao racismo ambiental…

Nossas questões

A filósofa, pesquisadora e ativista do feminismo negro Djamila Ribeiro é uma das negras que participaram da elaboração da carta, mas ela sempre destaca a importância de um movimento que trate especificamente dos preconceitos e discriminações enfrentados pelas mulheres negras.

Para Djamila, existe uma sociedade na qual opera a supremacia branca e o movimento feminista faz parte desse sistema.

Outra filósofa, Angela Davis, em sua obra Mulheres, Raça e Classe, afirma que as organizações de mulheres que lideraram o movimento sufragista nada fizeram pela pauta das populações negras. 

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E nada mudou apesar de, como enfatiza a antropóloga e professora Lélia Gonzalez, “a tomada de consciência da opressão ocorrer, antes de tudo, pelo racial”. 

A academia, aliás, é outro nó que – pela Lei de Cotas – estamos  desatando. Isso porque há pesquisadores que insistem em tomar para si o lugar de fala do povo negro, opinando sobre experiências pelas quais não passam e tirando conclusões sobre a melhor forma de atuação para combater o racismo.

Só que, na vida real, as pautas das pretas são forjadas em experiências diárias.

Pautas do Feminismo Negro 

O Movimento de Mulheres Negras (MMN) construiu sua pauta das pretas a partir do contato com lideranças comunitárias, no trabalho das escritoras, nas manifestações das empregadas domésticas, na atuação de ativistas pela abolição da escravidão e pelos direitos civis e nas manifestações de cantoras e compositoras de música popular.

A prioridade das mulheres negras é o combate ao racismo, a partir de cinco temas fundamentais:

  • Legado de uma história de luta;
  • Natureza interligada de gênero, raça e classe;
  • Combate aos estereótipos ou imagem de controle;
  • Atuação como mães, professoras e líderes comunitárias;
  • Política sexual.

 

E é dentro a partir desses temas que se estabelecem as ações para a redução das desigualdades por razões raciais e de gênero..

O ponto de partida é desconstruir a visão da mulher negra subserviente à toda sociedade, porque este não é nosso lugar nem nunca foi!

Julho das Pretas

No 25 de Julho, desde 2013, se celebra o Dia da Mulher Negra, Caribenha e Latinoa-americana, mas as ações não se restringem a este dia. Todo o mês de julho é de ação estratégica de mobilização para os movimentos de mulheres negras.

Criado pelo Odara – Instituto da Mulher Negra, da Bahia e expandido para outros Estados do país, o Julho das Pretas apresenta anualmente uma agenda conjunta e propositiva em torno de temas que envolvem a superação das desigualdades de gênero e raça, colocando as pautas das mulheres negras no centro do debate político, para enfrentar o racismo, machismo, lgbtfobia e todas as formas de opressão, como:

  • autonomia financeira das mulheres negras; 
  • participação e a representação política;
  • direito à comunicação e a representação midiática das mulheres negras; 
  • estratégias construídas pelas negras jovens feministas para enfrentar o racismo, machismo, lgbtfobia e todas as formas de opressão; entre outros.

 

Em 2020, no contexto de agravamento da pandemia, a defesa das Vidas Negras foi colocada como pauta prioritária. Isso por conta do aumento do aumento de casos de feminicídio e das ações policiais violentas, de o povo negro ser o mais afetado pela covid-19 e pelas  desigualdades sociorraciais que prejudicaram o acesso a direitos fundamentais para a manutenção da vida.

Em marcha

Antes disso, a Marcha das Mulheres Negras, realizada em 2015, indicou a centralidade da ocupação das ruas como ferramenta de confronto político para denúncia da falência do projeto civilizatório implementado pelo Estado brasileiro.

E, na contramão da desarticulação oficial, houve a ampliação e a diversificação das “bases” do movimento, incorporando mulheres negras jovens que trouxeram a internet como um novo elemento para a performance política – uma realidade e pauta permanente das pretas.

Os avanços do empreendedorismo negro como fortalecimento racial é incontestável. O Modelo Black Money, de economia solidária, proposto pelo Coletivo Enegrecer,  faz o dinheiro circular na economia local, nas periferias, gera desenvolvimento econômico e de vida. Mas, ainda, é preciso alimentar a cadeia de economia solidária, garantindo direitos trabalhistas, como ausência de férias, de aposentadoria

V Feira Agroecológica de Mulheres do Baixo Sul da Bahia, em Camamu (Foto: Koinonia)

Geração de emprego e renda também são pautas que estão de volta como pautas prioritárias das mulheres negras e do movimento negro em geral devido à fome, desemprego e falta de moradia que temos vivido e assistido. 

Moara Saboia, vereadora do PT em Contagem (MG) e militante do Coletivo Enegrecer chama a atenção para o grande retrocesso grande na política brasileira no atendimento dessas demandas: “No início da minha militância a gente debatia muito mais cultura, educação, porque a agenda essencial básica as pessoas já tinham garantida”.

Política da morte

Outro ponto essencial a ser atacado é violência política.  “Quando mataram Marielle, tentaram nos interromper e o efeito foi justamente o contrário . E a gente quer mais mulheres negras na política para que ela tenha a nossa cara e a nossa vida tenha prioridade”, projeta Moara Saboia.

“Militamos para ter vereadoras negras em espaços de fala”,  confirma Noemi de Andrade, coordenadora do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do movimento ‘Basta! Parem de Nos Matar’.

E também nas assembleias legislativas, no Congresso Nacional, em secretarias e ministérios. É preciso eleger as nossas e colocá-las em postos-chaves na política para que nossas agendas sejam prioritárias.

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Instituto Marielle Franco – criado pela família da vereadora assassinada para mobilizar, inspirar, conectar e potencializar mulheres negras, LGBTQIA+ e periféricas a ocuparem espaços de poder -, nas Eleições municipais, em 2020, apoiou candidatas que se comprometeram com o Legado de Marielle, sistematizado em  em um conjunto de pautas e práticas antirracistas, antiLGBTfóbicas, feministas e populares, assinada por mais de 80 parlamentares eleitas em todas as regiões do país.

Como vereadora feminista e LGBT, Marielle Franco presidiu a Comissão de Defesa da Mulher e construiu uma mandata que trabalhava em grupos intersetoriais com foco em saúde pública e direitos das mulheres. Ela, inclusive,  apresentou o Projeto de Lei da Visibilidade Lésbica na Câmara.

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1 comentário em “A Pauta das Pretas”

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