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Cannabis, mudanças climáticas e economia
Silvio Humberto, do ativismo ao poder político (Imagem: Primeiros Negros)
Uma reforma da política de drogas no Brasil pode ser a oportunidade de o Brasil fazer uma grande revolução a favor da sociedade. Até porque a cannabis já foi “deus” e o “diabo” para atender às necessidades do mercado, do poder econômico. Quanto às questões morais, sempre serviram tão-somente como pano de fundo.
O que este artigo responde:
A planta da maconha pode deter as mudanças climáticas?
A maconha pode salvar o mundo?
O que a maconha tem a ver com efeito estufa?
Plantar maconha pode ser um bom negócio para o Brasil?
Qual o papel ecológico da maconha?
Qual planta é considerada “purificadora da natureza”?
Confira os ebooks do primeiros negros
Cannabis, mudanças climáticas e economia | Primeiros Negros
A planta da maconha não é de origem americana. Ela tem uma variante africana e outra asiática. Chegou nas Américas pelas mãos dos espanhóis e, rapidamente, ganhou muita difusão. Seu plantio foi estimulado por conta da fibra tirada de seu caule, o cânhamo.
Até o século XIX, o cânhamo – anagrama de maconha – era a principal fonte de fibras do mundo. Todas as velas das caravelas eram de cânhamo. Todo o encordoamento – as cordas para garantir a estabilidade dos navios – eram de cânhamo.
A imprensa de Gutenberg – desenvolvida entre os anos de 1439 e 1440 a partir da confecção e combinação de símbolos gráficos moldados em chumbo – usava papel proveniente do cânhamo para seus impressos. Isso até o desenvolvimento da química industrial com o processamento da celulose.
A fibra extraída da cannabis é capaz, também, de fazer tecidos – as camisas eram de cânhamo. Não é por acaso a proibição da cannabis nos anos 1920, 1930.
O dinheiro
Nos Estados Unidos, o movimento anti-maconha, tinha muitos componentes raciais, principalmente associados aos povos negro e hispânico, mas o financiamento dos grupos que pleiteavam a proibição da droga vinha de várias fontes, uma delas era a indústria petroquímica.
A DuPont – fundada em 1802, uma das maiores empresas químicas do mundo, que desenvolveu tecnologias e materiais presentes no cotidiano das pessoas, como Teflon, Neoprene e Lycra – é uma das grandes financiadoras da campanha anti-maconha nos Estados Unidos. Na época, estava desenvolvendo o náilon.
Nunca houve preocupação real com o efeito da maconha nas pessoas, mas a moralização do debate ajudou a indústria no processo de proibição, explica o professor Tiago Rodrigues, da Universidade Federal Fluminense, cientista político que há 25 anos estuda o assunto e é autor do livro “Drogas e Capitalismo, uma crítica marxista”:
“Para a indústria têxtil vinculada às tecnologias derivadas do petróleo, o cânhamo era um inimigo fácil, ainda que a fibra da planta da maconha não tenha nada a ver com as flores da maconha, de onde se extrai o psicoativo”.
Lobby às avessas
A reviravolta moral acontece quando a geração da classe média branca, que fumou maconha na contracultura, no final dos anos 1960, início dos anos 1970, assume postos de poder econômico e político.
Quer dizer, pessoas que fumaram maconha na juventude e se tornaram CEO’s (cargo mais importante em uma grande empresa), presidente da República, governadores, senadores que, inclusive, compartilharam, baseado com seus filhos se tornaram formadores de opinião e passaram a defender a legalização da erva.
Surge até uma “positivação do uso da maconha por pessoas que são consideradas bem sucedidas na economia neoliberal e isso dá uma limpada na barra moral da cannabis”, não extensiva aos não brancos.
Com este lobby econômico às avessas, o jogo se inverte. A Globo, no Fantástico, programa da família brasileira, faz matéria sobre a cannabis. Tem até movimento de mães de filhos com graves síndromes neurológicas, que começam a fazer importação ilegal da semente da planta para cultivo…
Fora do Brasil, tudo avança em ritmo mais acelerado. No Uruguai e na maioria dos estados americanos, estão legalizados dois usos da cannabis – terapêutico medicinal e recreativo. Nos Estados Unidos, inclusive, existe refrigerante relaxante de canabidiol para desestressar.
Com a mudança de direção do lobby, o que antes era para proibir e, nas últimas duas últimas décadas, é para legalizar. Primeiro, era moralmente repreensível do ponto de vista da saúde – os argumentos, contraditórios, se referiam à cannabis que promovia grandes danos, da idiotia apática à agressividade. Agora, a erva é diagnosticada a favor da saúde mental, física e emocional. E a indústria farmacêutica sorri, de novo, com a regulamentação do canabidiol!
Vá à Linha do Tempo – De Pito do Pango à Cannabis, que se inicia na Era Comum, no ano 2737, quando são atribuídos ao imperador chinês Shen Nung, conhecido como o Pai da Medicina Chinesa, os primeiros registros sobre o uso da maconha com fins medicinais. Dê uma olhada também de 1850 a 1941,período em que a maconha esteve listada na Farmacopéia dos Estados Unidos, indicada para dores de parto, náuseas e reumatismo. Época em que cannabis, opiáceos e cocaína estavam disponíveis, gratuitamente, nas farmácias.
“A liberação da maconha pode salvar o mundo.”
A assertiva, dita em alto e bom som no podcast Mano a Mano, em programa de quase três horas de duração sobre cannabis, é de Emílio Figueiredo, advogado e membro da Comissão do Direito do Setor da Cannabis Medicinal do Conselho Federal da OAB – Ordem dos Advogados do Brasil.
“A maconha pode servir para fixar o carbono que está solto na atmosfera. É possível deter as mudanças climáticas a partir do seu uso ecológico. Só não dá para fazer isso enquanto tem menino levando tiro de fuzil na favela”, avisa Emílio.“ É preciso uma política antidrogas coerente, de uma mínima inteligência institucional para transformar o que é ônus em bônus, reparação histórica, justiça de transição”.
De acordo com o advogado, muito se tem debatido o uso da cannabis. Vários coletivos, entidades, têm se debruçado em busca de caminhos para transformar a política de drogas – classificada como “algo nefasto, infame, que dá asco” – em algo revolucionário, que signifique comida no prato do brasileiro, emprego, saúde…
De olho na economia
Emílio Figueiredo condena a possibilidade de uma indústria da cannabis, baseada em resíduos que vão ficar durante anos no solo. Em se tratando de mudanças climáticas, ele entende que o primeiro papel da cannabis é não comprometer ainda mais o meio ambiente:
“A cannabis é uma planta que tem capacidade muito boa de captura, de sequestro de carbono da atmosfera, na própria fotossíntese, desde que plantada em grande quantidade e em ambiente”.
Essa plantação em solos degradados é inadequada ao consumo humano, mas pode substituir o insumo em grandes indústrias que são poluentes, como bioquímica, plástico, papel e construção civil.

Na prática, para esses setores, a cannabis serviria como matriz produtiva ecológica, substituindo hidrocarbonetos e outros vegetais que causam problemas ao meio ambiente. Um exemplo é a indústria do cimento, que faz extrativismo mineral muito forte.
“A cannabis tem potencial para promover uma mudança positiva no clima, mas pouco se coloca em prática no Brasil. Fala-se do uso medicinal, recreativo, mas tem também o uso industrial.”
E o advogado da OAB indica ainda a erva ancestral como ferramenta para gerar riqueza para o país, fixar o homem na terra e gerar empregos, dada a sua função ecológica gigante.
Juliana Borges, autora do livro Encarceramento em Massa, é outra que utiliza do argumento econômico a favor da liberação da maconha, mas alerta para o risco de monopólio no plantio:

“A legalização avançando, não pode ficar só na mão do agronegócio. Deve-se garantir a participação da agricultura familiar nessa produção, numa relação que gere reparação a territórios afetados pela guerra às drogas. É preciso pensar um processo a partir da nossa realidade “.
Captura de gases
Estudiosos do centro de pesquisas Hudson Carbon, em Nova York, detectaram que as plantas de cannabis podem ser grandes aliadas no enfrentamento à crise climática, em especial o cânhamo, que pode absorver dióxido de carbono (CO2) do ar, com duas vezes mais eficiência que as árvores.
Bob Dobson, em entrevista ao jornal britânico Daily Mail, explica que o cânhamo captura até 16 toneladas de gases de efeito estufa anualmente, enquanto as árvores absorvem cerca de 6 toneladas:
“Se os Estados Unidos fizessem 50 milhões de acres de cânhamo, estaríamos sequestrando algumas centenas de milhões de toneladas de carbono por ano nessa área”, exemplifica.
“Purificadora da natureza”
Um dos diferenciais do cânhamo é que ele contém níveis deficientes do composto psicoativo tetrahidrocanabinol (THC), em comparação com a maconha, que é de outra variedade da cannabis. Na prática, ele retira as toxinas do ar, prendendo-as permanentemente em suas fibras.
Considerada “purificadora da natureza”, a planta absorve CO2 do ar à medida que cresce, tornando-se uma cultura negativa em carbono. Além disso, cresce muito rápido, alcança a maturidade em apenas 4 meses.
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Consciência de nós
Difícil imaginar que o Brasil é diferente do mundo, sem personalidade, a ponto de não assumir sua condição de território invadido e não descoberto. Daí andar a passos lentos rumo ao progresso possível.
Somos aqueles que assistimos a disputa entre o Poder Executivo e o Poder Legislativo e achamos que estamos vendo apenas uma luta livre, de UFC, de boxe e que não sairemos de olho roxo do ringue. Não entendemos que enquanto eles brigam, nós, povo preto brasileiro perdemos – e perdemos mais porque o nosso existir incomoda.
Nos detendo no assunto racismo e maconha, eles ganham sempre e nós perdemos, sempre. Tudo tem a ver com poder e, atrás das grades, sob correntes mentais, desinformados, desorganizados, corremos o risco de seguir na vida a passos quase imperceptíveis.
Com descriminalização ou sem descriminalização da maconha, com lobby a favor ou com lobby contra, para o povo negro nada muda. Não existe lei que se faça cumprir a nosso favor. Haverá desencarceramento real com a decisão do STF, de que portar até 40 gramas de droga nunca foi crime?
A nossa história, neste território ao qual deram o nome de Brasil, é maior que os seus 8.515.767,049 km². Cada passo que damos, perturba. Foi assim quando a população negra, ribeirinha, indígena e cabocla começou a vir para os centros urbanos nos anos 1930, 1940, trazendo o candomblé com o uso disseminado da cannabis. Eles não nos queriam nos centros urbanos e o desejo, de sempre, era e é nos controlar pela via da repressão às drogas em geral e da cannabis em particular.
O racismo, bem como a repressão às drogas, em nossa posse, é pano de fundo. O filósofo senegalês Cheikh Anta Diop há décadas afirma que o que chamamos de racismo – ele classifica como “fenotipofobia” – começa a partir de uma disputa territorial, de recursos, entre povos com melanina e povos sem melanina, que vieram depois. Isso desde o neolítico superior, 7.000 antes da Era Comum.
Racismo não é uma ideia que surge na escravização. É da época dos conflitos com vikings, celtas, povos nórdicos, que criaram histórias, em que nos demonizaram. Nesses mitos tinha sempre um monstro com pele escura, cabelo crespo e nariz largo. E isso é passado desde a antiguidade com o que o filósofo chama de “consciência histórica coletiva”. Trata-se de disputa de poder. Daí fazerem de tudo para nos destruir.
A galera que está na prisão não está incluída na indústria do canabidiol nem o pessoal que está atrás das grades por, supostamente, fazer parte desse grande mecanismo transnacional, que é o tráfico ilegal de drogas, que – estima-se – gera um trilhão de dólares por ano.
Fontes: The Daily Mail, Revista Exame, Revista Época, podcast mano a mano -cannabis – entrevista com o advogado Emílio Figueiredo, da OAB, e Juliana Borges, autora do livro “Encarceramento em Massa”, The Guardian, CBS, Podcast Fora da Política Não há Salvação
Atualizado em julho de 2024
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