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Jamaica e Brasil, os 3 “M” da dominação

Jamaica (Imagem: Reprodução)

Missionários, mercadores e militares. Os primeiros levavam a “fé”, os segundos, o comércio, e os últimos garantiam os interesses dos colonizadores pela força das armas. 

  • O que este artigo responde:
    Onde fica a Jamaica?
    Existe alguma greve de escravos na história?
    Quem colonizou a Jamaica?
    Como foi a abolição na Jamaica?
    Quem foi Samuel Sharpe?
    Existiam quilombos na Jamaica?
    O que foi a Guerra Batista da Jamaica?
    Existiam povos indígenas na Jamaica?
    Quais os imigrantes que foram para Jamaica no lugar dos escravizados?
    Como acabou a escravidão na Jamaica?
    O que Brasil e Jamaica têm em comum? 
    Quanto tempo durou a revolta de escravizados na Jamaica?

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Propostas de atividades didáticas com histórias de personalidades negras e brasileiras de destaque.

Quatro mil quinhentos e quarenta e quatro quilômetros separam Brasil e Jamaica. Mas não existem distâncias quando se analisa a história econômica da escravização destes dois países.

Em 4.000 anos antes da Era Comum, a ilha Jamaica – Xaymaca – “terra dos mananciais” – era habitada pelos tainos, etnia indígena, provavelmente descendente dos Aruaques.

Cristóvão Colombo é o protagonista da fake news do descobrimento da América e os espanhóis invadem e dominam a Xaymaca dois anos depois, em 1494. Na época, o território era ocupado por cinco reinos, formados por mais de 200 aldeias – em poucos anos, morreram cerca de 60 mil indígenas.

Retrato de Aruaques, membros de um dos povos habitantes da ilha de Xaymaca (Imagem: Reprodução)

 

Retrato de Aruaques, membros de um dos povos habitantes da ilha de Xaymaca (Imagem: Reprodução)

Passados pouco mais de 150 anos, os ingleses invadiram e dominaram a ilha caribenha, expulsando os espanhóis… É a história do ladrão que rouba ladrão… Só que sem perdão. 

Quando isso aconteceu, os africanos escravizados fugiram para as florestas nas montanhas para unir-se aos tainos, que resistiam nas chamadas “vilas”, semelhantes aos quilombos do Brasil. 

Aconteceram casamentos, ressignificações culturais e fortalecimento contra o inimigo comum. Assim se formou o povo dos maroons e seu território tornou-se conhecido como Cockpit Country.

“Lei do menor esforço”

Nas mãos dos ingleses, a pirataria transforma-se na principal fonte de renda até o século XVIII, quando a cana-de-açúcar chega à ilha pela mão dos holandeses – expulsos de Pernambuco pelos portugueses – e mantém-se lucrativa até o começo do século XIX. 

A nova realidade econômica, entretanto, aumenta a necessidade de mão de obra. E, não demora, cresce a “importação” de africanos para trabalhar nas lavouras de cana-de-açúcar e de algodão. Ao mesmo tempo, a Jamaica torna-se um grande centro distribuidor de escravizados. 

Estima-se que no período escravista tenham passado pela ilha cerca de 2 milhões de africanos, cerca de um quinto do fluxo total que veio para as Américas. Fonte de enormes lucros para a elite branca, o tráfico influencia a trajetória e a composição étnica do país – havia vinte vezes mais negros que brancos na ilha, no começo do século XIX, e explodiam conflitos.

Os 3 “M”

Missionários, mercadores e militares são os três “M” do colonialismo, o que implicava a imposição de doutrinas raciais, culturais e religiosas. Os primeiros levavam a “fé”; os mercadores, o comércio, e os militares garantiam os interesses dos opressores através das armas.

Orgulhosos por “financiar” a “civilização” da África, para eles, um continente “inferior” e “primitivo”, os chamados “senhores de escravos” queriam ser vistos como “salvadores” pelos cativos.

Na doutrinação cristã, se “vendia” a ideia de que a escravização era punição de Deus para que, depois da morte, alcançassem a salvação. Isso incluía arrepender-se e aceitar a “bondade” dos sinhozinhos! Para reforçar a ideia, lembravam as palavras de São Paulo sobre o dever de obediência e, mesmo, de aceitação de maus tratos por parte deles.

Vale assistir o filme “O Nascimento de uma Nação”, de 2016, que resgata uma história importante do passado norte-americano e a influência da Bíblia sobre o comportamento dos escravizados. 

Velho testamento

O livro Gênesis, na parte do Antigo Testamento, na Bíblia, afirma que os povos habitantes da região do Nilo, mais precisamente na Etiópia (África Oriental), eram descendentes do filho preto de Noé, mas os europeus insistiam que era preciso evangelizar com o cristianismo das Américas para salvar das trevas.

Uma das grandes armas do cristianismo para angariar fiéis é a linguagem cheia de simbologias da Bíblia, usada para conquistar classes oprimidas. Mas em poucos lugares essa identificação foi tão longe como na Jamaica

Na antiga colônia britânica, os escravizados tinham uma liberdade religiosa maior que seus semelhantes nas colônias espanholas e portuguesas.

Em meio a práticas de magia negra e ritos africanos variados, o ex-escravizado George Liele apresentou aos negros as histórias de dor e privação do Antigo Testamento. Mas, em meio a orações e louvores, permanece viva, entre os escravizados, a sede por libertar seus corpos

Feiticeira dos rebeldes

A principal líder dos maroons, considerada pelos ingleses, “a feiticeira dos rebeldes”, Nanny, vira heroína nacional. Nascida na África, no Império Ashanti, ela é escravizada e vendida para trabalhar em plantações de açúcar.

Como no Brasil, lá, fugia-se das plantações em direção às florestas, às montanhas e lugares remotos, a fim de construir quilombos e resistir à opressão colonial. E foi isso que Nanny fez, reeditando os passos dos primeiros escravizados quando da colonização espanhola.

Nanny of the Maroons (Imagem: Ikahl Beckford)

 

Nanny of the Maroons (Imagem: Ikahl Beckford)

Por volta de 1720, havia uma área nas Blue Mountain conhecida como Nanny Town, protegida de ataques surpresa, com vista panorâmica da região e pontos de observação guardados por guerreiros. 

Lá, os maroons reproduziam o estilo de vida e a sociedade ashanti. Criavam animais, caçavam, plantavam e mantinham comércio com as cidades próximas, para trocar comida por roupas e armas. Mas, também, invadiam e queimavam plantações para conseguir mais armas e libertar escravizados, integrando-os à comunidade.

Durante 30 anos, mais de mil pessoas foram libertadas.

Um acordo

Para combater a insubordinação, em 1739, um polêmico tratado é assinado entre o poder colonial e os negros libertos: em troca da liberdade de suas comunidades, os maroons se comprometem a não incitar mais revoltas, invadir fazendas e, até, recuperar escravizados.

Neste período, os colonizadores investiram forte no plano religioso, com os missionários reforçando o respeito às autoridades e atuando para suprimir religiões não cristãs. 

Os negros se identificaram como descendentes de hebreus, descritos no livro do Exodo, exatamente o livro do Antigo Testamento evitado por pregadores brancos por revelar que Deus estava ao lado dos oprimidos e que enviaria outro Messias para salvá-los do cativeiro.

Prejuízo e morte

Entre 1760 e 1761, os “sinhozinhos” da freguesia de Santa Maria presenciam uma revolta de cerca de 1.500 escravizados que dura 18 meses. 

O saldo da revolta?

Centenas de propriedades destruídas e 60 “sinhozinhos” mortos.

Controlada a revolta, mais de 500 rebelados também foram mortos e outros 500 levados para outras localidades nas Américas. 

O estudo das movimentações dos revoltosos indica que a revolta foi muito bem planejada. E mostra que eles possuíam um vasto conhecimento da topografia da região.

No ano de 1774, nasce a primeira igreja batista na ilha, para o povo preto, também voltada à política e à luta por liberdade.

“Haitianismo”

Anos se passaram… É 1804 e o mundo vê surgir a primeira nação negra livre desde que os europeus botaram os pés no continente americano: o Haiti, fundado a partir de uma revolta de negros escravizados. 

A Revolução Haitiana (1791-1804) significa – para os negros escravizados nas Américas e para os colonizados em África – que a liberdade é possível. E no caso da Jamaica, outra ilha caribenha, a 180 quilômetros de distância, pode ser sentida como realidade.

Negros escravizados e libertos expulsaram os franceses da mais rica colônia que possuíam, a “Pérola das Antilhas”, e conquistaram o posto de primeira república preta da história, a República do Haiti.

Revolução do Haiti (Imagem: Reprodução)

 

Revolução do Haiti (Imagem: Reprodução)

Tal conquista, preta, gera um fenômeno que fica conhecido como “haitianismo”, que é o medo que surge no meio das elites colônias europeias de que uma onda de rebeliões vitoriosas ecloda no mundo. 

Napoleão Bonaparte, quando tudo aconteceu, tentou retomar o controle da região, mas quando percebeu que seria impossível, trabalhou para isolar econômica e politicamente a ilha – como ocorreu, por outras razões, com Cuba no século XX e segue acontecendo no Haiti neste século XXI.

A insurreição de Sharpe

É 25 de dezembro de 1831, dia de Natal, eclode mais uma rebelião contra o domínio colonial britânico. Desta vez, desencadeada pela recusa dos proprietários de plantações em conceder aos escravizados os mesmos direitos e liberdades que os livres.

Na liderança, Samuel Sharpe, nascido escravo na Jamaica em 1801, mas que, ao contrário de outros escravizados, pode estudar. Ele acreditava na promessa de liberdade do cristianismo e tornou-se conhecido pregador, líder e missionário na Igreja Batista.

Sharpe passava a maior parte de seu tempo livre viajando para diferentes paróquias na ilha, evangelizando os escravizados e preocupava-se com o tratamento brutal impingido ao povo negro e com o fato de eles terem poucos direitos ou liberdades.

Resistência passiva

Nos anos que antecedem a rebelião, Sharpe se envolve no movimento batista por abolição e liberdade, desenvolve uma estratégia de resistência passiva e convence os escravizados da plantação de açúcar na paróquia ocidental de St. James a se recusarem a trabalhar no dia de Natal.

Mas a greve dos trabalhadores escravizados se espalha rapidamente para outras plantações, dura 11 dias e entra para a história como “Rebelião do Natal” ou “Guerra Batista”. 

No final do primeiro dia, havia cerca de 20 mil escravizados paralisados. No último, 60 mil escravizados haviam se mobilizado! Principalmente depois do 27 de dezembro, quando os canaviais de Kensington Estate, em St James, foram incendiados e a casa grande totalmente queimada.

Injustiça grosseira

Muito sangue derramado marca a virada do ano de 1831 para 1832 na Jamaica. A rebelião foi esmagada em uma semana. Não houve vitoriosos, mas a brutalidade da repressão à revolta acelerou o processo de abolição. 

Duzentos negros foram mortos. Centenas de rebeldes foram condenados. Os que escaparam da pena de morte – com enforcamento, cabeças cortadas – foram castigados severamente. Alguns não resistiram. 

Samuel Sharpe, 28 anos, foi capturado e enforcado em praça pública em 23 de maio de 1832, junto com vários de seus seguidores. Sua execução e as represálias dos proprietários de escravos, no entanto, provocaram indignação. 

Samuel Sharpe (Imagem: Reprodução)

 

Samuel Sharpe (Imagem: Reprodução)

Muitos – na Jamaica e no exterior – classificaram como injustiça grosseira e exemplo flagrante da brutalidade e opressão das autoridades coloniais britânicas. A execução de Sharpe tornou-se um grito de guerra para o movimento abolicionista.

Cerca de 14 brancos, entre donos de terra e superintendentes, também morreram. Na época, a Jamaica já era conhecida pela alcunha de “cemitério dos europeus” e terra “sem senhores” – prefeririam eles, enriquecidos, comandar seus negócios da Europa ou teriam eles medo de morrer, devido à insubordinação bem mais frequente na Jamaica do que em outras colônias inglesas no Caribe? Fica a dúvida. 

Mais ou menos livres

No rescaldo da rebelião, em 29 de agosto de 1833 foi aprovada a lei da abolição, que acaba formalmente com a escravização em todo o Império Britânico. Mas o processo até a libertação de fato dos 311 mil escravizados foi demorado e as condições de vida e trabalho dos negros pouco mudaram. 

Na transição da escravização para a liberdade, os escravizados tiveram de trabalhar por mais de cincos anos como aprendizes. Não houve ampliação dos direitos políticos.

No pós-abolição, estimulou-se a imigração europeia enquanto acontecia o êxodo rural, com o inchamento das periferias das grandes cidades, marcando o início da “guetização”.

No “RH”

Uma maioria de ingleses, escoceses, alemães e irlandeses vieram trabalhar na agricultura, além de cerca de 20 mil indianos – entre 1845 e 1945 –, que enfrentaram forte repressão religiosa e uma tensa disputa com os negros por postos de trabalho de baixa qualificação

Houve também o afluxo em torno de 6 mil imigrantes chineses entre 1854 e 1930, mas muitos morreram de desnutrição e outras doenças.

Entre 1888 e 1920, cerca de 146 mil jamaicanos, descendentes de africanos, deixaram o país com destino aos Estados Unidos, Panamá e outras localidades do Caribe. 

O poder do dinheiro

É fato da história que na Jamaica a abolição foi assinada 55 anos antes que no Brasil, mas a motivação foi a mesma: a escravização era percebida como inadequada às demandas de expansão do sistema capitalista, que precisa de indivíduos com dinheiro para consumir.

Além dos argumentos econômicos, o movimento político na Inglaterra, denunciava, por exemplo, o conflito que havia entre as leis escravocratas e a lei que sugeria ser ilegal escravizar cristãos

No Brasil, não foi diferente. Vieram os imigrantes europeus. Mas, aqui, se sabia, havia um desejo ardente de branqueamento do território.

Pan-africanismo

O colapso do sistema de plantações e a grande crise de 1929 – gerada pela superprodução e pela especulação financeira – afetaram a cultura da cana-de-açúcar e outros cultivos de exportação. 

A classe média negra e mestiça, em ascensão na época, recebeu um duro golpe e vivenciou-se um novo processo de êxodo rural, que evidenciou as divisões da sociedade em classes, etnias e culturas, com uma suposta hegemonia dos brancos.

Essa conjuntura propiciou a emergência dos movimentos de direitos civis, liderados pelo ativista negro Marcus Garvey, que havia participado do movimento sindical e fundado em 1914 a Associação Universal para o Progresso do Negro, inspiradora do pan-africanismo e do movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos.

Garvey ainda funda, em 1929, o Partido Político Popular, o primeiro do país.

Movimento Rastafari

O despertar da consciência preta por meio do Garveyismo e do Etiopianismo – a Etiópia, único país não colonizado na África, onde surge o ser humano – proveram os fundamentos ideológicos para o surgimento do Movimento Rastafari nos anos 1930, que rejeita o colonialismo, protesta contra a opressão política sociocultural e fala de amor como solução para os dilemas da humanidade.

Leia os artigos: Rastafari, um jeito de estar no mundo e Haile Selassie, o Poder da Trindade.

O hinduísmo levado à Jamaica pelos indianos, no pós-abolição, também foi fundamental para a formação das bases do movimento.

Independência

A Jamaica se torna independente em 1962, década do surgimento do reggae, e adota o lema nacional: De muitos, Um povo

Apesar de os rastas serem minoria na Jamaica e de serem perseguidos e criminalizados desde sempre, a cultura deles identifica o país no mundo e é a maior fonte de atração de turismo para a ilha.

A presença negra no país se manifesta na cultura local também por meio de manifestações como a capoeira, a luta e a dança.

Atualmente, 90% da população da Jamaica é de origem africana e aproximadamente um quarto dela vive na capital, Kingston. 

O país passa por um período de conflito social, causado pelo aumento da pobreza e tensão racial

Desde 2015, o Reino Unido tem recebido pedidos de reparação histórica de bilhões de libras pelo passado colonial na Jamaica, além de um pedido de desculpas. 


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Fontes: USP, Brasil Escola, Negrê, BBC, Insight News, Veja, Opera Mundi

Escrito em março de 2024

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