Carlos Eduardo Dias Machado e as omissões históricas da genialidade negra
– Primeiros Negros
Carlos Eduardo Dias Machado segurando seu livro Gênios da Humanidade – Ciência, Tecnologia e Inovação Africana e Afrodescendente (Denise Andrade/Reprodução)
“Gênios da Humanidade” é o título resumido do livro escrito pelo professor e ativista negro Carlos Eduardo Dias Machado, Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo, em coautoria com Alexandra Baldeh Loras. O nome completo da obra, lançada em 2017 e com edição esgotada, é “Gênios da Humanidade – Ciência, Tecnologia e Inovação Africana e Afrodescendente”.
É dele a entrevista* desta edição do primeirosnegros.com
A conversa começa com Carlos Eduardo comentando a ideologia subjacente às práticas racistas que, muitas vezes, inclui a ideia de que os seres humanos podem ser subdivididos em grupos distintos, que são diferentes em seu comportamento social e capacidades inatas e classificados como inferiores ou superiores.
Um exemplo clássico desta distorção do pensar, de racismo institucional, é a escravidão transatlântica, patrocinada pelos europeus e seus descendentes nas Américas, responsável pela morte de milhões de pessoas, com base na sua raça e pelo maior deslocamento humano da história.
Mas nosso assunto principal é a genialidade deste povo.
Vamos à entrevista…
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A que se deve a ocultação da civilização africana dos pensadores ocidentais?
Carlos Eduardo: À construção da ordem mundial branca, a partir do século 16, na conhecida Era das Grandes Navegações, onde os europeus progressivamente dominaram praticamente todo o mundo – não sem resistência – e impuseram um sistema político, econômico, religioso e social ao planeta. A história foi reescrita e ocultou-se o legado africano das ciências, construiu-se um imaginário do berço grego. Criou-se uma idéia de que a humanidade é dividida em raças e
fez-se uma hierarquia racial, onde o homem branco está no topo,
a princípio com uma explicação religiosa cristã e, depois, utilizando-se a ciência para justificar a desigualdade, a escravidão, o colonialismo e o racismo antinegro e antiindígena.
Que papel tiveram as mulheres para a história da ciência?
Carlos Eduardo: Mulheres africanas desenvolveram uma técnica, pouco divulgada, de cortar e arranhar a pele com pedras afiadas, galhos, espinhos, lascas de cristal ou facas, para polvilhar as feridas e, assim, estimular seus corpos a criar anticorpos para resistir às doenças. Mulheres africanas inventaram perucas, produziram espelhos polidos feitos de cobre, joalheria, fizeram perfumes e perfumaram óleos e pomadas, usando henna para pintar as unhas e mãos.
Durante quinze séculos, Hipácia foi considerada a única cientista feminina da história,
a primeira mulher cientista, cuja vida está bem documentada. Ela era egípcia e, portanto, de origem africana. Viveu livre e publicamente de suas atividades científicas, lecionando Matemática, Filosofia, Física e Astronomia. Escreveu tratados importantes sobre álgebra e seções cônicas. À ela, é creditada a concepção de um astrolábio, instrumento para medir o nível da água e um hidrômetro.
Os egípcios antigos eram conhecidos por suas habilidades de cura…
Carlos Eduardo: Sim, médicos egípcios antigos eram conhecidos por suas habilidades de cura e alguns, como Imhotep, permaneceram famosos muito tempo – mesmo depois de suas mortes. Heródoto observou que
havia um alto grau de especialização entre os médicos egípcios,
com alguns tratando apenas a cabeça ou o estômago, enquanto outros eram oftalmologistas e dentistas. Viajantes europeus na região dos Grandes Lagos (Uganda e Ruanda), durante o século 19, observaram operações de cesariana – a anestesia era com vinho de banana e misturas de ervas para incentivar a cura. Pela natureza bem desenvolvida dos procedimentos utilizados, os observadores europeus concluíram que vinham sendo empregados há muito tempo.
E no campo da Matemática, da Física e da Astronomia?
Carlos Eduardo: A história da Matemática é tão eurocêntrica que a maioria dos relatos de sistemas matemáticos antigos parece começar e terminar na Grécia. Mas o osso de Lebombo, encontrado na Suazilândia, e o osso de Ishango, descoberto na fronteira entre Uganda e antigo Zaire (atual República Democrática do Congo), ambas fíbulas de babuíno, são os dois objetos matemáticos mais antigos do mundo – os primeiros com pelo menos 35 mil anos de idade. O osso de Ishango consiste em uma série de marcas de registro esculpidas em três colunas que percorrem o comprimento do osso. As interpretações comuns são de que o osso de Ishango é a demonstração mais antiga das sequências dos números primos ou de um calendário lunar de seis meses. Ele pode ter influenciado o desenvolvimento posterior da matemática no Egito.
A aritmética egípcia também fez uso de multiplicação por dois.
Por falar em números, onde nasce o comércio internacional?
Carlos Eduardo: As raízes africanas no comércio são milenares. A África foi o fornecedor principal do ouro no comércio mundial durante a idade medieval. Os impérios africanos tornaram-se poderosos controlando as rotas comerciais transarianas, que cruzavam o deserto do Saara. Eles forneceram dois terços do ouro na Europa e no Norte da África. O ducado de Gênova e Veneza e o florim de Florença foram impressos em ouro dos impérios sahelianos. Quando as fontes de ouro foram esgotadas no Sahel, os impérios se voltaram para o comércio com o Reino Ashanti. Os comerciantes Suaíli, na África Oriental, foram os principais fornecedores de ouro para a Ásia, no Mar Vermelho e nas rotas comerciais do Oceano Índico. As cidades portuárias comerciais e as cidades-estados da costa africana oriental estavam entre as primeiras cidades africanas a entrar em contato com exploradores e marinheiros europeus durante as grandes navegações.
Numerosos objetos metálicos e outros itens foram usados como moeda na África: búzios, sal, ouro (pó ou sólido), cobre, lingotes, correntes de ferro, pontas de lanças de ferro, facas de ferro e pano.
O cobre, na África, era tão valioso quanto o ouro. E havia outros metais valiosos, como o chumbo e o estanho. O sal também foi tão valioso quanto o ouro. Devido à sua escassez, foi usado como moeda. Reinos Suaíles, da Idade Média, são conhecidos por terem ilhas portuárias comerciais e rotas de comércio com o mundo islâmico e Ásia e foram descritos por historiadores gregos como metrópoles.
Qual a importância da África na história do mundo?
Carlos Eduardo: O uso de estimativas, apoiadas por evidências genéticas, arqueológicas, paleontológicas e outras sugere que
a língua falada provavelmente surgiu em algum lugar da África subsariana,
durante a Idade da Pedra – as primeiras palavras de humanos foram faladas por africanos. As ciências sociais em África, incluindo a educação, têm uma longa história: a Casa da Vida (em egípcio, Per Ankh) era o nome dado à instituição existente no Antigo Egito, em Kemet, dedicada ao ensino no seu nível mais avançado, funcionando igualmente como biblioteca, arquivo e oficina de cópia de manuscritos. A Biblioteca de Alexandria, em 295 a.C., fundada no Egito, era considerada a maior biblioteca do mundo clássico. A Universidade Al-Azhar, fundada entre 970 e 972, como uma madrassa, é o principal centro da literatura árabe e da aprendizagem islâmica sunita no mundo. Três escolas filosóficas no Mali existiram durante a época de ouro do país, entre os séculos 12 e 16, a Universidade de Sankoré, a Universidade de Sidi Yahya e a Universidade de Djinguereber. No final do reinado de Mansa Musa, no Mali, a Universidade de Sankoré – capaz de abrigar 25.000 estudantes – tinha uma das maiores bibliotecas do mundo, com cerca de 1000.000 manuscritos…
Sobre a marcação do tempo, que papel os africanos ocupam na história?
Carlos Eduardo: Antes de se conceber a ideia de que o osso de Ishango pode ser um calendário lunar de seis meses, artefatos pré- históricos descobertos na África, datados de 35 mil anos, sugerem tentativas de quantificar o tempo. Por volta de 4800 a.C., as pessoas no Sudão construíram círculos de pedras eretas, que podem ter marcado eventos astronômicos como as estações do ano. Os egípcios foram os primeiros a desenvolver um calendário de 365 dias e 12 meses. Era um calendário estelar, criado observando as estrelas.
As primeiras e mais importantes invenções científicas também são de África?
Carlos Eduardo: As pessoas na África começaram a fazer suas próprias ferramentas de pedra, cerca de dois milhões de anos atrás, antes mesmo de evoluírem seus cérebros.
Os povos em África inventaram o fogo, aproximadamente 50 mil anos atrás.
Aproximadamente 200 mil anos atrás, os seres humanos evoluíram no leste da África. Eles inventaram a carroça como mostram pinturas rupestres na Líbia. Para a construção das pirâmides, os antigos egípcios tiveram que transportar pesados blocos de pedra e grandes estátuas pelo deserto. Eles colocavam os objetos pesados em um trenó que os trabalhadores puxavam sobre a areia e molhavam o caminho para facilitar a tração, fato comprovado recentemente pela Universidade de Amsterdã.
As primeiras e mais importantes invenções científicas também são de África?
Carlos Eduardo: Etiópia é o berço do café. No século X, os povos nômades etíopes de montanha foram os primeiros a reconhecer o efeito estimulante do café – eles comiam diretamente as cerejas vermelhas e não o líquido, como se faz na atualidade. Os místicos peregrinos sufis do Islã espalharam o café por todo Oriente Médio. De lá, esses grãos se espalharam para a Europa e, em seguida, por todo império colonial, incluindo a Indonésia e as Américas. A manteiga de karité, gordura esbranquiçada ou de cor de marfim, extraída da castanha do karité africano, é conhecida na forma de hidratante corporal, bálsamo ou loção e cresce em 19 países africanos. No Egito de Cleópatra, caravanas transportavam potes de barro com manteiga de karité, valiosa para uso cosmético. As camas funerais dos primeiros reis foram esculpidas na madeira de árvores de karité. O cuidado da pele e as propriedades curativas da manteiga de karité foram aproveitados pela primeira vez há milhares de anos. Até hoje, a manteiga de karité continua a ser usada para proteger o cabelo e a pele no sol forte e dos ventos quentes dos desertos africanos e savanas, espalhando-se pelo mundo…
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O livro Gênios da Humanidade – Ciência, Tecnologia e Inovação Africana e Afrodescendente, de Carlos Eduardo Dias Machado, em coautoria com Alexandra Baldeh Loras, pode ser encontrado em PDF na internet.
Fontes: *Entrevista concedida em 15 de junho de 2017 ao Bom Dia Europa – editada por primeirosnegros.com em outubro de 2023
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Saudações!
Venho por meio deste tornar visível o meu apreço pela participação do Professor e Ativista Carlos Eduardo Dias Machado no Programa Negros em Foco.
Representatividade Negra !
Sou Professora, Voluntária e Pesquisadora em Tecnologia Assistiva para Pessoas com Deficiência Visual.
Que alegria em lhe conhecer e firmar, em conversa, o quanto NÓS NEGROS somos protagonistas em invenção de tecnologias e afins.
Sou grata,
Valeria Cristina de Jesus Lopes Gomes
Professora e Pesquisadora