Paulinho: Exú, futebol e Oxóssi
- Tania Regina Pinto
Paulinho, da seleção olímpica, comemora gol pelo Brasil atirando flecha de Oxóssi. Foto: Daniel Leal-Olivas/AFP
Sobre liberdade, visão de mundo, respeito
Ato 1 – 17 de junho de 2021: Ao ser escalado para as Olimpíadas de Tóquio 2021, Paulo Henrique Sampaio Filho, o jogador Paulinho, de 21 anos, da seleção brasileira de futebol, ao ser escalado para a seleção brasileira de futebol, escreve no Twitter:
“Nunca foi sorte, Sempre foi EXÚ. Laroyê. Vamos Brasilll”
Ato 2 – 20 de julho de 2021: na plataforma The Players Tribune, criada para atletas falarem em primeira pessoa sobre o tema que preferirem, Paulinho escolhe como título de seu depoimento “Que Exu ilumine o Brasil” e escreve:
“Como assentado e praticante, vou ao meu pai de santo sempre que estou no Brasil e peço proteção aos orixás, principalmente ao meu Pai Oxóssi e à minha Mãe Iemanjá. Exu é o caminho. Procuro saudá-lo antes de cada obrigação, de cada partida.”
Ato 3 – 24 de julho de 2021, Olimpíadas de Tóquio: Faltam 16 minutos para o jogo terminar, o Brasil, com um homem a mais em campo, vence a Alemanha por 3 a 1, mas logo toma o segundo gol. O meia-atacante Paulinho entra em campo e na única chance que tem de chutar a gol muda o placar – 4 a 2 – e saca uma flecha imaginária das costas em homenagem a Oxossi. Depois, em uma rede social, escreve: “Okê Arô! Saravá meu Pai”.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O orixá
Oxóssi, do Candomblé, é caçador. E o ‘ofá’, símbolo que o representa, é o arco e a flecha. Ele é o orixá que mata a miséria e a fome.
O mito, a história principal sobre a entidade, conta de um pássaro – pousado no telhado de um palácio do reino -, enviado por algumas feiticeiras para trazer a fome e a miséria para o povo.
Nenhum caçador conseguia matá-lo e, enquanto ele estivesse ali, haveria seca e os legumes não iriam brotar. Até que Oxóssi, caçador com uma só flecha, consegue afastar a dor e a miséria, e trazer a alegria.
Daí o título ‘Exu, futebol e Oxóssi’ e o Sem Mordaça reproduzido, com edição, do podcast Angu de Grilo #95.
Flecha para a liberdade
Futebol é um ambiente de opressão a denominações religiosas não cristãs, com domínio evangélico muito grande e intimidador, principalmente em relação às denominações religiosas de matriz africana – umbanda, candomblé… – que são demonizadas.
Escreveu a CNN Brasl em seu site no dia 24 de julho de 2021, no texto intitulado ‘Paulinho, atleta de exu, usa bola para plantar respeito depois de gol na estreia’:
“Se a flecha olímpica do gol de Paulinho está na prateleira das comemorações incomuns, isso se dá por contraste com um futebol brasileiro cotidianamente associado a outros cultos.
Jogadores de grandes clubes e seleções recebem visitas frequentes de pastores e padres em hotéis e concentrações, atletas que marcam 3 gols costumam pedir músicas de culto evangélico na tradicional programação de TV e a mais repetida comemoração de gol no país envolve os dedos erguidos para o céu e um grupo de jogadores ajoelhados, agradecendo a Deus pelo gol com o pacote gestual mais naturalizado que conhecemos. Deus, aliás, consta massivamente nas entrevistas dos jogadores.”
Sobre os efeitos desse contraste, para o historiador Luiz Antonio Simas, a cena da comemoração de Paulinho é especialmente relevante no sentido da afirmação de todo um modo de vida que vem sendo atacado pelo racismo religioso brasileiro.
“Desde os anos 1980 algumas designações cristãs, nas disputas do mercado da fé, elegeram os saberes afro-indígenas como inscritos no campo simbólico do maligno”, destaca o historiador. “No futebol, diversos jogadores são constrangidos pelo proselitismo cristão”.
O movimento Atletas de Cristo trouxe aproximação formal entre discurso, prática e diplomacia religiosa, ainda que enviesada, para dentro dos vestiários. São numerosos os relatos, ao longo dos anos, de elencos com líderes que, de tão engajados e comprometidos com determinado livro religioso, tendiam a excluir os colegas de outra fé.
“A flecha do Paulinho reconecta minimamente o futebol com a dimensão da pluralidade da fé nos gramados – salienta Simas – e é um marco de alta representatividade para os povos de axé.” (Leia-se: energia positiva, do afeto, do abraço.)
Para além do jogo
A cena – a imagem mais poderosa da estreia brasileira nas Olimpíadas de Tóquio – aquece o debate sobre liberdade de credo, um direito constitucional.
“Não é proselitismo. A gente não quer converter ninguém. Religiões de matriz africana não são religiões de conversão imposta. Religiões de matriz africana são filosofias de vida. É a cosmogonia, uma visão de mundo, uma forma de interagir com a natureza, com o autoconhecimento, com o corpo…”, define Flavia Oliveira em seu podcast.
Este debate é sobre poder falar livremente e ser respeitado na sua escolha. Não existe a figura do demônio no candomblé.
Mas o medo, o constrangimento de se falar da própria religião, quando ela é tão demonizada, especialmente quando se pratica um esporte coletivo, é um dado da realidade.
Como Exu é um orixá muito próximo das energias que estão emanadas pelas ruas, das encruzilhadas, e como tem a função de mensageiro, foi vinculado, sobretudo pelos primeiros mensageiros cristãos, à figura do demônio, do Mal.
Leia mais em Exu, Jesus no Culto aos Orixás, responsável pela mediação entre o humano e o divino que ‘vive’ a contradição de “confundir-se” com o casamenteiro Santo Antônio e satanás!
Basta para a intolerância
A intolerância religiosa pode bloquear oportunidades de trabalho e projeção dentro da carreira. Nos jogos em equipe, um atleta depende do outro para trabalhar, pegar ou passar uma bola, ter uma boa performance… O atleta depende do técnico para ser escalado, da equipe técnica para acompanhar o seu rendimento…
Se um colega de equipe acha que é outro acredita no demônio, na ‘magia negra’, pode boicotá-lo durante o jogo., com uma ação do tipo:
“Não passo mais a bola porque ele é ‘macumbeiro’…”
Isso acontece no mundo do trabalho. Há um ambiente de muita intolerância no Brasil e isso tem que ser escancarado e combatido. Existe uma influência crescente dessa moral religiosa excludente na política, nas questões de Estado, nos debates sobre políticas públicas, de Educação, Saúde, Direitos Humanos…
É importante que quem é de axé se revele e brigue por essa existência. A gente já passou do tempo de estar escondido e isso vale, especialmente, para pessoas públicas.
Artistas, jornalistas, quem, em alguma medida, consegue se proteger por ter visibilidade, precisa assumir sua religiosidade, falar dela para ajudar a desconstruir e condenar esse crime de ódio.
É uma ação pedagógica, de caráter educativo, as pessoas públicas assumirem suas religiões para desmitificar informações de demonização que foram espalhadas e não fazem qualquer sentido.
As pessoas públicas, com espaços de manifestação, têm mais obrigação do que qualquer outro brasileiro de ajudar a esclarecer o tamanho dessa perseguição.
Você que é famoso, declare sua fé e, se não for do santo, explicite o respeito pelas religiões de matriz africana.
Isso é sobre democracia. Isso é sobre liberdade.
*podcast semanal das jornalistas negras cariocas Flavia Oliveira e Isabela Reis, mãe e filha, intitulado Olimpíadas e Paulinho. O texto, com pequenas edições e informações complementares, foi retirado de parte do programa #95, no ar desde 27/07/2021.
Leia também sobre Olimpíadas Negras, para além dos Jogos, em Palco de Combate ao Racismo, Naomi Osaka, Questão de Gênero e Raça e Tóquio 2020, balanço final .
Compartilhe com a sua rede:
Pingback: Os oborós, orixás masculinos