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Jamelão, o tenor do samba

Figura emblemática do Carnaval e da música negra, único em sua trajetória, durante 58 anos foi porta-voz da Estação Primeira Mangueira e do Brasil.

Jamelão (Imagem: Reprodução)

José Bispo Clementino dos Santos, o Jamelão – assim batizado nos seus tempos de gafieira – nasce antes do surgimento da primeira escola de samba em 12 de maio de 1913, no bairro de São Cristóvão, na cidade do Rio de Janeiro. Sua história de pioneiro, entretanto, começa numa quadra de  escola, invade a avenida, os palcos e toma microfones. 

A beleza do cenário

Década de 1930. Começam as escolas de samba, mas sem samba-enredo. A música servia só para garantir a dança, a brincadeira. As pastoras – mulheres coralistas – cantavam a primeira estrofe e o restante era improvisado pelos versadores, precursores dos ‘puxadores de samba’.

Aos poucos, as escolas vão criando identidade própria, pensam os primeiros enredos e os compositores escrevem sambas com enredos. Os homens fazem o solo e as pastoras o coro. Tudo no gogó, no megafone.

Nada demais, não fosse a preocupação com ritmo,  que faz surgir a ideia de amplificação sonora, um divisor de águas no carnaval de rua na década de 1960, já com Jamelão à frente.

Porta-voz

Nosso tenor nunca tolerou ser chamado de ‘puxador de samba’, considerava o termo pejorativo e desrespeitoso, e não economizava na manifestação de sua indignação:

 “Puxador é o cacete! Não puxo carro nem fumo. Eu sou intérprete!

Mas vale compreender o significado das duas expressões, que contam muito de quem era este profissional da música brasileira, do samba e do carnaval.

Quando se impõe a figura do ‘puxador de samba’ é porque é dele a responsabilidade não só pelo canto, mas pelo desfile da escola na avenida. O intérprete é o especialista do canto, além de possuir boa voz, deve dominar o ritmo, a tonalidade adequada…

Jamelão (Foto: Cristina Granato)
Jamelão (Foto: Cristina Granato)

Na avenida, durante um desfile, um samba-enredo é cantado de 40 a 100 vezes, dependendo do tamanho da letra. Para esta empreitada, é preciso mais que um gogó resistente, fôlego invejável, postura corporal para obter qualidade e resistência vocal. Quer dizer, não é tarefa para qualquer um

O intérprete e aquele que “puxa” o samba são uma espécie de “dois em um” no carnaval. Nem todo intérprete consegue garantir uma relação interativa com a comunidade, a diretoria, os jurados e o público. Nem todo intérprete consegue ser o porta-voz da escola e da mensagem que ela quer comunicar, do enredo. Nem todo intérprete consegue ser a voz guia, o representante sonoro da escola, o marketing da agremiação.

Jamelão fazia as duas coisas com maestria.

Primeiros passos

Antes de ser Jamelão, José Bispo foi Saruê, o jovem que passou por dificuldades financeiras após a separação dos pais em 1920 e que, para ajudar a mãe, vendia jornais e trabalhava como engraxate no subúrbio do Rio.

Para encantar as meninas aprendeu a dançar gafieira e passou a frequentar salões de baile com seu irmão mais velho e alguns amigos, mas logo dividiu seu tempo de lazer entre a dança de salão, o toque do tamborim e as cordas do cavaquinho nas rodas de samba na Praça Onze, onde conheceu grandes nomes do meio artístico e começou a arriscar-se como cantor.

Um de seus amigos contou ao gerente da gafieira que frequentavam sobre os seus dotes musicais. O gerente guardou a informação e quando, um dia, faltou o responsável pelo som do baile, surpreendeu o jovem Saruê com um convite para ocupar o palco. Assim nasce Jamelão – o artista, a fruta brasileira marcada pela doçura e cor escura. Foi a primeira vez, de muitas, em que recebeu aplausos como atração principal.

Cantor

Jamelão criou gosto pelos palcos e passou a frequentar os concursos de calouros das rádios, muito comuns na época. Em 1945, participou do Calouros em Desfile, comandado pelo cantor Ary Barroso na Rádio Clube do Brasil e foi premiado com o contrato de um ano com a gravadora Continental.

Não demora, o que é uma diversão, passa a ser profissão de sucesso. Como cantor de rádio, é convidado para crooner da Orquestra Tabajara, unindo o samba-canção, um dos ritmos mais românticos do momento, aos instrumentos da música clássica.

A ideia do maestro Severino Araújo era ampliar o repertório da orquestra, contar com Jamelão para copiar manualmente as partituras para os músicos e, ainda, vender os arranjos que vinham de outros países.

A parceria rendeu convites para shows na Europa. “Não conhecia nem o meu país, mas fui conhecer a França”, brincou em uma entrevista.

“Chegou ôôô, a Mangueira chegou…”

Por intermédio de seu amigo Gradim,Jamelão conhece a Mangueira, ainda bloco carnavalesco. A paixão é imediata. E, logo, ele se torna ritmista, tocando tamborim. 

Em 1949, a sorte e reconhecimento batem à sua porta mais uma vez. Surge a oportunidade de substituir um dos vocais da escola e ele sai da bateria para ocupar um lugar na ala de compositores. 

Na década de 1950, paralelamente, ele lança a marcha “Só Apanho Resfriado” de Wilson Batista e Erasmo Silva, e o samba “Você vai? Eu não”, com Pereira Matos, além de diversos discos e composições consideradas sambas ‘dor de cotovelo’, em razão das letras mais românticas. 

Em 1955, o samba “Exaltação à Mangueira”, interpretado por ele, torna-se o hino da verde e rosa – cores escolhidas por Cartola para representar a escola. 

Quatro anos depois, em 1959, Jamelão explode como um grande sucesso ao lançar a música “Ela disse-me assim”, do gaúcho Lupicínio Rodrigues, que rendeu, nos anos 1970, o disco “Jamelão Interpreta Lupicínio Rodrigues”, com o maestro Severino Araújo e a Orquestra Tabajara. 

O gigante da voz

Em 1968, ele se torna A Voz da Mangueira, única, com seu estilo tradicional, sem firulas, mas envolvendo no desfile da Mangueira toda arquibancada, por conta de sua personalidade forte e marcante.

Jamelão é um dos responsáveis pela grandeza do carnaval carioca. Considerado patrimônio do Sambódromo da Marquês de Sapucaí, além de ser o intérprete que permaneceu mais tempo na mesma escola de samba – de 1949 a 2007 -, é o que ganhou mais títulos, 13 ao todo.

Sua história é marcada por 58 anos de Mangueira e coroada, em janeiro de 2001, quando, aos 88 anos, toma posse como Presidente de Honra escola. 

Vida de artista

O reconhecimento de seu trabalho artístico acontece também com a entrega da Medalha da Ordem do Mérito Cultural, em novembro de 2001, das mãos do então presidente da República, Fernando Henrique Cardoso.

À Medalha vem somar-se os seis Estandartes de Ouro – maior e mais antigo prêmio do samba do Rio, comparado ao Oscar do Cinema -, como intérprete, e o título, em 1999, de “Intérprete do Século” do carnaval carioca.

Registre-se, ainda, a participação de Jamelão entre os pioneiros na luta pela gravação de discos de samba-enredo, reunindo todas as escolas do carnaval carioca. Isso, em 1968, ano em que a Mangueira foi campeã com o enredo “Samba, a festa de um povo”.

Discos, aliás, são uma forma de acompanhar nota por nota a carreira deste tenor do samba. O número supera as oito dezenas, entre discos de vinil – compactos, long plays, 78 e 33 rotações – e CDs. 

Bastidores

Com respostas firmes e diretas, Jamelão sempre demonstrou desconforto com câmeras, fotógrafos e jornalistas. E fingia dormir ao perceber a chegada de fãs. Cultivava um mau-humor característico e uma mania – estava sempre com as mãos envoltas em diversos elásticos, que dizia que era para utilizar quando ganhasse dinheiro pelo seu trabalho. 

Era casado com a compositora Delice Ferreira dos Santos, a Tia Didi, com quem teve uma filha. Aos 95 anos, em 14 de junho de 2008, morreu vítima de infecção generalizada no Rio de Janeiro. Seu corpo foi velado no Palácio do Samba – Sede da Mangueira – e sepultado no Cemitério do Caju. Levou consigo a bandeira verde-e-rosa e teve a sua passagem celebrada pelo ritmo do samba.

Inspire-se também com a história de Grazzi Brasil, a voz feminina do samba.

Fontes: NSC Total, G1-2018, G1-Rio, Rolling Stone, Uol, Veja, O Globo – A maior voz, Renato Vivacqua, EBC, Revista Raça, O Globo – Entenda a morte, Museu Afro Brasil, Documentário Jamelão, Documentário Mangueira, Academia do samba

1 comentário em “Jamelão, o tenor do samba”

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