Mulherismo Africana, o feminismo que acolhe o ser negro
- Tania Regina Pinto
Mulherismo Africana, um convite para a mulher negra olhar no seu espelho ancestral, um retorno à África, não um retorno físico, mas de princípios, um norte, um caminho para educarmos nossas crianças.
O assunto é Mulherismo Africana, um movimento de resgate, de recolocação do povo preto no mundo. Ele se diferencia dos movimentos de mulheres do Ocidente, que lutam por igualdade de gênero; do Feminismo Negro, que inclui as questões de classe e raça – como marca a filósofa negra Angela Davis em seu livro Gênero, Raça e Classe, e do Mulherismo da norte-americana Alice Walker, autora de A Cor Púrpura, que não tem como prioridade discutir o gênero, mas antes a raça, depois a classe, e só então o gênero.
O filme Pantera Negra, de 2018, que com a morte do Chadwick Boseman ganhou vida nova, conta um pouco deste olhar africano para o ser mulher, a partir de um ponto de vista não de empoderamento, mas de resgate de poder.
“Mulherismo” vem de mulher, negando qualquer semelhança com a fêmea que se desdobra em pensamentos e ações de agenda ocidental.
“Africana” não se refere a gênero, mas a plural (do latim), para lembrar que existem diversas “Áfricas”, uma identidade cultural, uma localização geográfica, que coloca o povo preto no seu continente de origem.
Assim, Mulherismo Africana é, também, um convite para a mulher negra olhar no seu espelho ancestral, para dar conta da própria existência. É um retorno à África, não um retorno físico, mas de princípios, um norte.
Sem colonização
A utópica nação de Wakanda, onde se passa o filme Pantera Negra – país não destruído, sequestrado e pilhado pela escravidão -, criada para o reinado do príncipe T’Challa é uma dessas “Áfricas”.
E, para reinar, o super-herói dos quadrinhos da Marvel precisa e tem, como suporte, mulheres em armas, tecnologia, força, moral, sabedoria e amor.
As personagens femininas o cercam: é a general Okoye, à frente do exército; a irmã cientista afrofuturista Shuri; a espiã do mundo exterior, sua amada Nakia, e a rainha-mãe Ramonda, toda ponderação. E elas trabalham juntas pelo príncipe-rei e pelo povo, primeiro de Wakanda e, depois, do mundo.
Existe subalternidade das mulheres ao príncipe-rei? Existe arrogância dele na relação com elas?
O poder das mulheres, em algum momento, é questionado? A resposta é não.
E não porque as relações entre homens e mulheres, durante todo o filme, se mostram horizontais, um exemplo do viver o Mulherismo Africano.
Mama África
Nos 135 minutos de filme se desvela na tela o ser mulher preta. Lá estão elas: altivas, honradas, potentes, cientes de sua história, fortes. Não precisam convencer ninguém sobre o seu estar na vida. É uma postura que, registre-se, toda mulher preta de diáspora, tem. Mas, aqui, falta a horizontalidade das relações, ainda.
Aí, a maior diferença entre o mundo e a África! Sempre que pensamos em patriarcado e matriarcado, imaginamos ou homens ou mulheres no poder, no mando, na opressão.
Mas a base do matriarcado não é o mando, mas o co-mando, o fazer junto, sem disputas.
Ressignificados pelo Ocidente, aprendemos a entender toda e qualquer diferença entre homem e mulher como exploração. E uma das coisas que o Mulherismo Africana propõe é não alimentarmos este olhar.
Homem = Mulher, a igualdade
A diferenciação dos papéis por gênero é nociva no patriarcado porque coloca as mulheres em condição de subalternidade, mas nas comunidades e nos ritos africanos tradicionais nos vemos de outro modo.
Somos, todos e todas, feitos e feitas do mesmo barro. Na teoria, só a melanina nos difere. E o que é a melanina? Um composto químico, cuja principal função é a pigmentação e proteção contra a radiação solar.
O que existe no corpo de uma mulher negra, existe no corpo de uma mulher branca. O que existe no corpo de um homem negro, existe no corpo de um homem branco. E isso chega a ser matemático! Só que não.
Ser mulher e negra é diferente de ser mulher e branca.
Ser homem e negro é diferente de ser homem e branco.
Viemos da África, berço da Humanidade, geratriz. Nossa origem, como povo, é feminina, matriarcal.
A mulher preta é a portadora do ventre original, está ligada à terra, porque é dela que vem a vida.
No candomblé, por exemplo, a obrigação de servir a comida é feminina. E em casa de gente preta é assim. A mulher é quem coloca a comida porque é ela quem tem o poder de nutrir. Somente a mulher é vista como quem tem o dom de repartir de maneira igual. A comida é sagrada, é de todos… Não é uma expressão de subalternidade, mas de poder.
Homem + Mulher, a soma
“No filme, o herói é homem, mas sem as mulheres ele não toma nenhuma decisão – assim é a vivência do matriarcado. A mulher é a figura central de sua comunidade, sendo respeitada e ouvida, pois conhece melhor os anseios e necessidades de cada um. É a responsável por pensar as estratégias para melhorar a vida do seu povo”
Descreve a jornalista Joceline Gomes, que imergiu em debates sobre o filme para consolidar o olhar para esta experiência ficcional no Mulherismo Africana.
O matriarcado estabelece uma relação de complementariedade entre o masculino e o feminino, explica Nah Dove, na obra Mulherisma Africana: Uma teoria afrocêntrica. Homens e mulheres trabalham juntos pela organização social, porém, “a mulher é reverenciada em seu papel como a mãe, como condutora para a regeneração espiritual dos antepassados”.
“E com a escravização dos corpos, todo um conjunto de valores e comportamentos de gestar potências e permanência comunitária torna-se ainda mais presente”
Complementa Aza Njeri, doutora em literaturas africanas e pós doutoranda em filosofia africana.
Sentido de existir!
Clenora Hudson, mulher preta africana, nascida nos Estados Unidos em 1945, foi quem “nomeou o ser mulher preta” para a academia, chamando de ‘Mulherismo Africana’. Na época, ela explicou que nomear se refere a “contar uma vivência, com a autoridade de ancestrais reencarnadas que somos”.
“Uau! Isso é maravilhoso! Isso é inspirador! Uau! Olha Dihya al-Karina! Olha Zacimba Gaba! Olha que maravilhosa a construção delas de ser! E isso merece um nome! Um nome criado por nós, para nós! Um nome que sintetize essa belíssima trajetória milenar, matriarcal, matrilinear, matrifocal e exclusivamente preta!”
Reagiu Clenora ao ressignificar o próprio existir.
Dihya al-Karina foi uma líder militar e religiosa do século VII, que liderou a resistência do seu povo à expansão árabe no Norte da África. Zacimba Gaba foi princesa que, escravizada, se tornou líder guerreira.
E Clenora insiste na diferença entre enxergar a vida a partir do Ocidente, da Europa, das Américas, e enxergar o mundo a partir da África:
“Os movimentos e teorias europeias agem como igrejas neopentecostais à procura de quem catequizar. O que me interessa não é que amanhã todas as mulheres pretas acordem dizendo ‘Sou mulherista africana’ … Eu não catequizo pessoas. O que me interessa é que amanhã todas nós, mulheres pretas, nos levantemos ao lado de nossos irmãos homens recobrando o nosso sentido ancestral de existência. O que deve nos mover é o resgate de sentido de existência, é o resgate de poder para o nosso povo.”
E uma nota do racismo geográfico auxilia na construção proposta por Clenora: o Meridiano de Greenwich, a Linha do Equador de pé, divide o mundo em Oriente e Ocidente. Mas o que vale na nossa sociedade é a divisão política (leia-se: religião, valores e cultura). Na prática, judaico-cristãos de um lado; muçulmanos e o que mais existir, de outro. Assim, 90% da Europa, que está geograficamente no Oriente, faz parte do Ocidente, e a África, invadida de todos os lados, é “sem lugar”.
Eu, mulherista africana
Descobri que sou mulherista africana. Nem imaginava! Meu viver conta desta raiz. Ao escrever sobre o assunto, como costumo dizer, “coloquei teoria na minha prática”, na minha compreensão de sociedade, de mundo.
O meu olhar para as relações é mulherista africana porque inclui as mulheres que vieram antes como fonte de potência para homens e mulheres. Minha ancestralidade é em mim e fora de mim, vibrante, plena.
Sempre entendi que não se luta por igualdade sem a inclusão do homem. Não somos nós contra eles, mas nós e eles.
Sempre olhei para o existir homem. Pensando melhor, desde que pari um ser do sexo biológico masculino, percebi como é desafiador e até cruel nascer homem no Ocidente ou, pior, ter que se forjar homem ocidental, ainda mais sendo negro.
Somos África
Sabe aquela frase de Simone de Beuavoir, “não se nasce mulher, torna-se mulher”? Vale para povo negro espalhado pelo mundo. Nos impuseram como referência de ser humano o homem branco, que só se enxerga poderoso subjugando, humilhando, desumanizando outros seres humanos. Mas o povo preto não é assim.
O homem que eu criei chora, usa todas as cores, fala de seus sentimentos, de suas dores, pede colo, troca fralda, faz comida, lava, passa, cozinha, tem vida profissional e soma com sua companheira. Como me disse, certa vez: é pessoa.
Nós aprendemos, desde sempre, que Homem é sinônimo de Humanidade – errado.
Pessoa, talvez, seja a palavra que mais se aproxime. Mas também não. Somos diversos, plurais demais, no sentir, amar, viver, compreender-se, relacionar-se… Humanidade é a palavra perfeita, única. Ela contém respeito.
Erik Killmonger, o “vilão” de Pantera Negra, desafia o príncipe T’Challa ao dizer que “a vida não começou em Wakanda”, e escuta como resposta uma afirmação pan-africanista, outro pilar do Mulherismo Africana:
“Somos todos daqui”
Não importa onde nossos ancestrais tenham sido sequestrados e escravizados, nós, negros no mundo, somos todos africanos.
Enegrecer, uma atitude
E, se a gente pensar bem, é assim que se consideram os nascidos no Brasil, descendentes de italianos, espanhóis, portugueses… É verdade que não temos países a referenciar.
Mas sabemos que 20% das terras firmes e habitadas do planeta guardam a nossa raiz.
E, se a gente pensar bem, é assim que se consideram os nascidos no Brasil, descendentes de italianos, espanhóis, portugueses… É verdade que não temos países a referenciar.
Afirmar-se pan-africanista implica união na luta pela libertação da mente, implica o reconhecimento de que a opressão racial se expressa de maneira semelhante em qualquer lugar do mundo onde uma pessoa preta esteja.
E a escritora Nah Dove reforça a ideia de que o sequestro, o tráfico e a escravização tiraram a população negra da África, mas não conseguiram arrancar os elementos culturais, espirituais e individuais de homens e mulheres que, mesmo fora do continente, trazem na essência a sua origem.
Outra coluna mestra do Mulherismo Africana aparece no final do filme Pantera Negra, quando Wakanda abre-se para o mundo, para o cuidado do povo preto, a afrocentricidade.
Fomos segregados, precisamos reagir juntos.
Na prática, é o preto vota em preto, preto compra de preto, preto emprega preto, preto educa preto… Nós por nós.
Machismo negro
Sim, a interiorização do patriarcado branco se reflete em forma de machismo no homem negro. Mas, na essência, o homem negro não é igual ao homem branco – nem em raça nem em classe, nem em humanidade.
Tanto que o machismo do homem negro não lhe traz ganhos. Mas, ao contrário, multiplica perdas.
O patriarcado, cuja origem são as sociedades nômades, é desequilibrado nas relações de gênero. Baseia-se na disputa de poder. Traz em si o racismo civilizacional, estrutural, cultural, religioso, institucional e ambiental como pilar estruturador. E é xenofóbico.
E é deste rápido esboço sobre o patriarcado que nasce a base para a compreensão da mulher negra sobre o que acontece com o negro, a quem foi imposto como ‘modelo de homem’ o padrão ocidental judaico-cristão e branco, que considera as mulheres perpetuadoras do pecado!
O homem negro, por estar desenraizado e descentralizado de sua essência, reproduz o violento modus operandi patriarcal branco como forma de se sentir incluído, de se sentir homem.
Mas ele pode retornar à centralidade masculina negra, a partir da tomada de autoconsciência e desconstrução desses padrões.
E o Mulherismo Africana – explica, ainda, a filósofa Aza Njeri – propõe que esta empreitada aconteça com “homens e mulheres juntos porque, historicamente, nunca estivemos separados”.
Luta mulherista
Partir desta realidade ancestral é criar a possibilidade de reintegrar vidas destroçadas pelo racismo, um caminho para “entender, refletir e agir rumo à saída dessa condição”, aponta ainda a filósofa, referenciando-se à Maat, deusa da verdade e da justiça, do Egito Antigo, que traz à tona nosso papel de líderes na luta para recuperar, reconstruir, criar e defender princípios de reciprocidade, equilíbrio e harmonia, em nome da nossa sobrevivência.
O mais importante é estarmos mais pertos uns dos outros, nos protegermos. E isso não é ficção nem a busca da África mística, perfeita, trata-se da nossa plenitude.
Em seu artigo Vamos falar sobre Mulherismo Africana?, Aza Nejri escreve:
“A lógica africana não é individualista e privatista, e nós, de maneira ampla, somos enraizados em um quilombo familiar, independente da configuração que ele tenha. Nutrir potências não possui exclusividade de gênero.”
Valores africanos que incluem o respeito à natureza e o coletivismo social nos fortalecem. Somos negros e negras no Brasil que, como comprovam as estatísticas, nunca nos quis, nunca nos incluiu e nos mata diariamente. Somos 56% da população, nossa pele é preta e o Mulherismo Africano, como proposta política, nos convida a existir a partir dela e não do verde-e-amarelo.
Pingback: Hipersexualização do corpo negro masculino • Primeiros Negros
Pingback: Escolinha Maria Felipa, educação infantil afro-brasileira • Primeiros Negros
Pingback: Filosofia Africana
Pingback: Sankofa
Pingback: Yabás, as orixás femininas
Pingback: A gente, homem negro, é da hora!
Pingback: Pais Pretos Presentes
Pingback: Educar africano
Pingback: Sueli Carneiro, a visibilidade feminina no movimento negro