Nos dias de hoje é comum ver negros e negras recebendo medalhas de ouro, prata e bronze em seus esportes nos Jogos Olímpicos, mas nem sempre foi assim… Negros em diáspora nas Américas, mesmo com a força das mesmas chibatas, viveram histórias singulares quando chegaram em terras, originalmente, indígenas. No norte, servimos ao povoamento e, no sul, à exportação.
Nos primórdios das Olimpíadas, o esporte era só para brancos e ricos. A ideia era estimular a competição sadia entre os povos dos cinco continentes, mas só entre os poderosos, em honra a Zeus, o deus da Mitologia Grega.
Na época – a data atribuída à sua primeira edição é 776 antes de Cristo -, visto também como um festival cultural e religioso, além de atlético, o profissionalismo era proibido. Quem recebesse dinheiro para praticar alguma modalidade perdia o direito de participar. estar em uma Olimpíada.
Tal regra excluía, “naturalmente”, os cidadãos pretos e pobres que não podiam se dar ao luxo de se dedicar a algum esporte sem ter incentivo financeiro.
O dia 6 de abril de 1896, final do século XIX, marca a primeira Olimpíada da Era Moderna, na cidade de Atenas, na Grécia. E muita coisa muda, menos a proibição de pessoas negras nas disputas.
Mentira olímpica
Só na terceira edição dos Jogos Olímpicos, em Saint Louis1904, século XX, os primeiros negros participam do evento – vergonha histórica para os brancos organizadores do evento.
Dois zulus – Len Taunyane e Jan Mashiari -, estavam na cidade para participar de uma exposição sobre a Guerra dos Bôeres, confronto armado que aconteceu na Cidade do Cabo, na África do Sul, e acabaram sendo colocados para correr a maratona. Eles disputaram a prova com os pés descalços e com chapéus de palha, provocando risos do público americano.
Esta Olimpíada foi chamada de “Dias Antropológicos”, espécie de jogos disputados por membros de tribos africanas e índios americanos e serviu como argumento para atestar a inferioridade dos negros no esporte, de acordo com uma edição da “Enciclopédia Britânica” da época.
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Os primeiros campeões
Uma olimpíada, no entanto, foi suficiente para comprovar o contrário. Londres 1908 apresenta ao mundo ao mundo John Taylor, o primeiro negro campeão olímpico – especialista nos 400 m rasos e medalha de ouro no revezamento misto.
A prova, disputada apenas nesta Olimpíada, era de 1600 metros (quatro voltas na pista), corrida por quatro atletas em distâncias diferentes. Os dois primeiros corriam 200 m, o terceiro 400 m e o último 800 m. Taylor correu a ‘perna’ dos 400m em 49s8 e o tempo total dos vencedores foi de 3m29s4.
Mas foram precisos 16 anos para que surgisse um campeão olímpico negro numa prova individual, feito de William Hubbard no salto em distância em Paris-1924.
Em Los Angeles 1932 foi a vez de Eddie Tolan dominar completamente as provas de 100 m e 200 m rasos, conquistando a medalha de ouro em ambas.
Para destruir, de uma vez por todas, a ideia de supremacia branca, entra em cena Jesse Owens que faturou quatro medalhas de ouro ao ganhar os 100 m e os 200 m rasos, além do revezamento 4 x 100 m e o salto em distância, na Alemanha nazista de Adolf Hitler, em 1936.
Passadas pouco mais de três décadas, o argumento cai por terra: o negro Jesse Owens entra para a história por “sabotar” a festa nazista na Olimpíada de Berlim, em1936. Owens ganhou quatro medalhas de ouro naqueles Jogos e liderou um grupo de negros que dominou as provas de atletismo, um resultado cruel para a crença nazista da chamada raça ariana, branca e superior.
A vez das garotas
Se é difícil para o homem negro, multipliquem-se os desafios para as mulheres. A resistência era enorme e o equilíbrio de gênero ainda está por se realizar, quem sabe, neste século XXI.
Em Londres 1948 – mais de 50 anos depois do início dos Jogos Olímpicos da Era Moderna -, as mulheres eram apenas 9,5% dos 4.104 atletas inscritos para os Jogos. E foi exatamente nesta edição que Alice Coachman fez história como a primeira mulher negra campeã olímpica, ao ganhar a prova do salto em altura, se tornou a primeira negra a ser campeã olímpica.
Na mesma edição, a seleção olímpica brasileira é integrada pela primeira mulher negra, Melânia Luz dos Santos, na equipe de Atletismo. Ela correu os 200 m em 26.6, sendo a quarta colocada na primeira série eliminatória. O 4×100 m quebrou o recorde sul-americano, com 49.0, também na primeira série eliminatória.
Londres 1948, na verdade, conhece duas feras negras, pioneiras do Atletismo. Além de Melânia, Adhemar Ferreira da Silva, bicampeão do salto triplo, em 1952 e 1956, um dos maiores nomes da história olímpica do atletismo do Brasil.
Confronto direto
Os Anos 1960 são emblemáticos, em especial para os norte-americanos. A luta por direito civis, pelo direito ao voto negro, continuava acirrada, mas no ringue um negro podia bater em um branco sem ir preso e até ganhar medalha por isso. Foi assim com Cassius Marcellus Clay Jr., no boxe.
Ele chegou à capital italiana, Roma, como desconhecido, e conquistou a medalha de ouro em 5 de setembro de 1960, na categoria dos meio-pesados – e era só o início da carreira daquele que é considerado o maior pugilista de todos os tempos que, ao se tornar muçulmano, mudou seu nome para Muhammad Ali.
Aos 18 anos, o norte-americano mostrou um talento incomum, ao bailar sobre o ringue, se esquivar dos golpes adversários e atacar com grande precisão.
Nos Anos1960, também, Abebe Bikila, membro da guarda imperial da Etiópia, África, faz história ao correr descalço e bater o recorde olímpico e mundial da maratona de Roma.
Registre-se que só nessa década passou a ser mais “normal” ver negros destacando-se nos esportes. Só em Roma foram três: Wilma Rudolph, Abebe e Cassius.
Conhecida como Gazeta Negra, Wilma Rudolph teve poliomelite na infância e subiu no alto do pódio nos 100 m, 200 m e revezamento 4 x 100 m.
Negros superam negros
Nos Jogos Olímpicos da Cidade do México1968, marcados por protestos contra o racismo, o americano Bob Beamon é o campeão do salto em distância com 8,90 m, marca que é o recorde olímpico mais antigo da categoria.
Seu desempenho é o segundo melhor de todos os tempos. Em 1991, Bob foi superado por seu compatriota, também negro, Mike Powell, que bateu o recorde mundial, com 8,95 m, no Mundial de Tóquio, fora de uma Olimpíada.
Mike é detentor, também, do salto mais longo já realizado da história, 8,99 m, que só não é recorde mundial por ter sido obtido com vento acima de 2,0 metros por segundo, nos Jogos Olímpicos de 1988, nos Estados Unidos.
Em Los Angeles 1984, é a vez do norte-americano Carl Lewis igualar o feito de Jesse Owens, vencendo nos 100 m, 200 m, 4×100 m e salto em distância.
Em quatro edições dos Jogos, Carl Lewis ganhou dez medalhas, nove de ouro e uma de prata. Só no salto em distância, ele foi tetracampeão: 1984, 1988, 1992 e 1996. Ele é, até hoje, o negro que mais vezes subiu ao pódio dos Jogos Olímpicos.
Nadando contra a maré
Se a presença negra, hoje, é garantida nas pistas de Atletismo, não se pode dizer o mesmo na natação. Nos esportes elitistas, as conquistas demoraram um pouco mais.
A natação integra o programa olímpico desde a primeira edição dos Jogos da Era Moderna, em Atenas 1896. Mas os resultados da modalidade reservam uma curiosidade: a primeira medalha de um atleta negro no esporte só foi conquistada 80 anos depois, em Montreal 1976, com Enith Brigitha, que nasceu em Curaçao, ilha caribenha que pertence à Holanda, em 1955.
Nos Jogos Olímpicos de Seul 1988, Anthony Nesty, do Suriname, quebrou o tabu em um dos esportes mais complicados para superar a segregação racial. Ao derrotar por um centésimo o favorito americano Matt Biondi, ele ganhou os 100 m borboleta e se tornou o primeiro negro a ser campeão olímpico na natação.
A versão feminina da derrubada desta barreira tem como protagonista Simone Manuel e como palco Rio 2016. Ela fatura duas medalhas de ouro e se torna a primeira negra a ser campeã olímpica na natação.
E pensar que, no Brasil, até 1950, apenas brancos podiam frequentar piscinas em clubes sociais, quanto mais participar de Olimpíadas. Nem 6% dos atletas que já representaram o país em Olimpíadas são negros.
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Outros dois esportes pouco amigáveis com negros e negras também tiveram de render-se a mulheres excepcionais, como Serena Williams, quatro ouros no tênis, e Gabby Douglas, da ginástica artística, que em Londres 2012, é alçada à condição de primeira afrodescendente campeã do individual geral nos Jogos Olímpicos. Serena, ao lado de sua irmã Venus Willians, são consideradas duas das maiores tenistas da história.
Nas Olimpíadas de Londres, em 2012, aliás, negros e negras ampliaram a visibilidade nos jogos.
As principais modalidades de corrida no atletismo permaneceram sob domínio avassalador de jamaicanos, etíopes, quenianos e até na pequena Granada, ex-colônia britânica no Caribe. Delegações de holandeses, franceses e britânicos mostraram a força negra no ciclismo, esgrima, tiro, hipismo
Time dos sonhos
O maior time da história das em esportes coletivos, o Dream Team (equipe dos sonhos) é de Barcelona 1992, com os astros da NBA, finalmente autorizados a participar dos Jogos Olímpicos.
Os Estados Unidos colocaram em quadra craques negros como Magic Johnson, Michael Jordan, Scottie Pippen, Charles Barkley, Karl Malone e Patrick Ewing e eles conquistaram a medalha de ouro.
África
A Nigéria, no esporte coletivo, em Atlanta 1996 entrou para a história ao ganhar a medalha de ouro no futebol.
Também em 1996, a África do Sul teve um negro campeão olímpico – o país que ficou afastado dos Jogos por 32 anos por causa do apartheid, regime de segregação racial imposto pelos brancos, comemorou em Atlanta a vitória de Josia Thugwane, um segurança de minas de carvão, na maratona.
Em Tóquio 2020/2021 são muitas as possibilidades de somarmos mais um punhado de medalhas, às de outros pioneiros como John Taylor, William Hubbard, Usain Bolt, Simone Biles, Kobe Bryant e Michael Jordan, apenas para citar alguns.
Fontes: COB, Olimpíada Todo Dia, Estadão
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