Pan-Africanismo: um direito do povo negro
- Beth Brusco
Ao fundo: uma das paradas promovidas pela UNIA que reunia uma multidão que tomava as ruas do Harlem. No carro, é ostentada uma placa com os dizeres “O Novo Negro Não Tem Medo”. (Imagem: Reprodução)
A ideia é a África para africanos e afrodescendentes – homens e mulheres, apesar de a ativa participação feminina no movimento ter sido invisibilizada -, como um Estado soberano, livre da opressão, identificado com a sua ancestralidade.
Outubro de 1945. Noventa representantes de diferentes partes do mundo se dirigem a Manchester, na Inglaterra, para debater o futuro da África. Não era a primeira vez que uma reunião na Europa discutia a vida do continente vizinho. A diferença é que, agora, os próprios africanos – ou seus descendentes nascidos em outras partes – tinham a palavra. Começava o 5º Congresso Pan-Africano, uma das reuniões mais importantes do século XX.
A África não queria mais ver suas fronteiras impotentes e seus governos sendo mudados pela vontade de potências distantes – esta era a mensagem principal do encontro.
Com um destaque: os vencedores da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) enquanto afirmavam lutar pela liberdade contra Hitler, continuavam cerceando, impedindo, a autonomia de outros seres humanos não muito longe dali, os negros!
Neste congresso, também, foi aprovado o lema do movimento:
Choque de realidade
A guerra mal havia terminado quando as lideranças negras de dentro e de fora da África se encontraram no 5º Congresso. No front europeu, pela segunda vez em 30 anos, africanos saídos das colônias haviam sido convocados a lutar, em nome da nação que os dominava.
E, assim como ocorrera na Primeira Guerra (1914-1918), os sobreviventes encontraram um velho cenário após o último tiro de fuzil ser disparado: os africanos tinham a mesma importância dos brancos na hora de morrer lutando, mas, na vida cotidiana, seguiam sendo tratados como cidadãos de segunda classe.
As guerras eram um duro choque de realidade para quem nascia África colonizada.
“África para os africanos, em casa e no exterior”
bradou o intelectual jamaicano Marcus Garvey, alguns anos antes.
A essência
A presença negra nas guerras mundiais e a vitória nos campos de batalha ajudou o movimento a imaginar o continente africano como uma potência.
Ao mesmo tempo, passada a peleja, as nações da Europa estavam enfraquecidas e cheias de dívidas. Em outras palavras, era o momento ideal para virar a página do colonialismo e deixar que os africanos governassem a si mesmos.
De um jeito ou de outro, a ideia do pan-africanismo fazia sentido. A proposta era de estruturação social do continente africano, por meio de um remanejamento étnico.
O pensamento embutia, ainda, o resgate de práticas religiosas, como culto aos ancestrais, e o incentivo ao uso de línguas nativas, proibidas pelos colonizadores.
É a pedra fundamental, o marco do ativismo negro em território nacional. Conta de nossa potência, de nossa excelência. Pensar na total destruição do maior quilombo do Brasil e da América Latina é falácia, sofisma, raciocínio falso que simula a verdade!
Estamos aqui, quilombolas!
Estamos aqui e continuaremos aqui como quilombolas, não admitindo a dominação branca sobre a existência negra!
Os pensadores
Mas tudo começa com os negros da diáspora – nas Américas e no Caribe -, que se unem em torno de bandeiras comuns – inicialmente, o fim da escravidão.
A partir do século XVIII, antigos escravizados libertos, estudados, passam a integrar a linha de frente.
Entre as figuras ilustres, pensando o pan-africanismo, estão William Edward Burghardt Du Bois, Marcus Musiah Garvey, Alexander Crummell, Sylvester Williams, George Padmore…
O historiador sueco Muryatan Santana Barbosa, autor dos livros “Guerreiro Ramos e o Personalismo Negro” e “A razão africana: Breve história do pensamento africano contemporâneo”, salienta a importância do diplomata e político liberiano Edward Wilmot Blyden:
“Ele é o primeiro crítico pan-africanista que procurou promover a África como o lugar do pan-africanismo. Por que que eu estou falando isso? Porque o pan-africanismo do século XIX nasce entre os negros da diáspora ocidentalizada, que achavam que seriam os porta-vozes, a elite da raça, que levaria a África para sua libertação e para um lugar melhor… Edward Blyden foi o primeiro a tentar construir uma luta política contra essa visão.”
Blyden acreditava que os negros americanos poderiam acabar com o sofrimento da discriminação racial retornando à África e ajudando a desenvolvê-la. Mas foi criticado porque os afro-americanos queriam obter direitos civis completos nos Estados Unidos, e não se identificavam com a África.
Parênteses para as pan-africanistas
Mas não só do pensamento masculino viveu e cresceu o pan-africanismo, apesar de a presença feminina no movimento não ser celebrada!
Na primeira conferência pan-africana, realizada em Londres, em 1900, apenas uma mulher, Anna Julia Cooper, foi autorizada a participar do comitê executivo da conferência.
Desde então, questões que impulsionavam o debate sobre gênero foram desarticuladas e minimizadas sob a justificativa de que tais questões não se relacionavam ao pan-africanismo ou não eram tão urgentes para a emancipação e autoafirmação dos povos negros.
“A questão da mulher” – como foi denominada por estudiosos e políticos da época, – só foi inserida de forma contundente no movimento durante o 5º Congresso, o de 1945, por Amy Ashwood Garvey e Alma La Badie.
Foram as ativistas que garantiram a inclusão de cláusulas relevantes para as mulheres nas ações políticas do movimento, a exemplo de remoção de obstáculos que afetam a contratação de mulheres e salário igual para trabalho igual.
A realização de muitos eventos pan-africanistas também só foi possível porque as mulheres se organizaram e arrecadaram fundos.
Toda esta informação se encontra na dissertação de mestrado “Entre ativismos e pan-africanismos: ‘travessias’ internacionais de mulheres negras”, de autoria de Blenda Santos, sobre o diálogo do pan-africanismo com o ativismo de mulheres negras na diáspora do Atlântico Negro, como Claudia Jones (Trinidad), Lélia Gonzalez (Brasil) e May Ayim (Alemanha).
Para a acadêmica da área de Relações Internacionais, Blenda Santos, resgatar a história das ativistas negras enriquece o movimento pan-africanista e, especialmente, os princípios pan-africanistas da libertação, integração, solidariedade e personalidade:
“Taís mulheres desenvolveram táticas pioneiras de um pensar-fazer (teórico-político) pan-africanista. Táticas que dialogavam com raça, gênero e classe numa perspectiva internacionalista e revolucionária”.
“Liberdade”
Por muito tempo, o que prevalecia em solo africano eram os reinos relativamente autônomos, que não se viam em termos de mapas e fronteiras, mas a partir da língua, da religião ou da etnia. Reinos que ora colaboravam entre si, ora guerreavam, escravizavam os rivais e até os vendiam para os europeus.
Quando o movimento abolicionista ganha força, o embate passa a ser outro: com a extinção do tráfico negreiro, a Europa divide a África na Conferência de Berlim e “inaugura” um novo modo de lucrar ainda mais, com o colonialismo no continente.
Apenas dois países ficaram de fora da partilha: Etiópia e Libéria, mas não por falta de tentativas.
Leia também o artigo “Movimento Negro, movimentos antirracistas”, e confira a linha do tempo dos movimentos na história!
Descolonizar é a meta do pan-africanismo, com a união política e social entre os que descendiam de africanos, onde quer que estivessem, buscando pôr um fim à opressão europeia.
Correntes ideológicas até se dividiam quanto à maneira de lutar pela autodeterminação do continente, mas partiam sempre de um mesmo princípio: o mais importante era a identificação com as terras ancestrais.
Sementes
A partir do movimento pan-africanista foi criada a Organização de Unidade Africana (OUA), em 25 de maio de 1963, em Addis Abeba, na Etiópia, por iniciativa do imperador etíope Haile Selassie.
Divulgada e apoiada por uma maioria de afrodescendentes vivendo fora da África, sua consolidação se deu através da assinatura da sua Constituição por representantes de 32 governos de países africanos independentes, para enfrentar o colonialismo, o neocolonialismo e a apropriação das suas riquezas.
A OUA foi substituída pela União Africana em 9 de Julho de 2002 e, no ano seguinte, tomou iniciativas agressivas em relação a possíveis soluções para as crises da região, além de incentivar a integração entre os países.
Identidade africana
Vale saber que duas diferentes combinações de três cores são referenciadas como as cores pan-africanas: o verde, o dourado e o vermelho e o vermelho, o preto e o verde.
Cores usadas em bandeirsa da Etiópia e outros emblemas para representar também a identidade africana ou os negros como raça.
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Publicado em novembro de 2022
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