Em maio de 2003, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva escolheu o procurador da República Joaquim Benedito Barbosa Gomes, então com 48 anos, como o primeiro negro indicado para compor a mais alta corte do país desde sua criação no século XIX.
Joaquim Barbosa
Só que não. Antes de Joaquim, Pedro e Hermenegildo vestiram a toga no Supremo Tribunal Federal (STF). Mas a presença negra é tão rara na Corte que toda vez que um ocupa o cargo é como se fosse a primeira vez.
E, na época, Joaquim Barbosa festejou a indicação, mas corrigiu o equívoco, com um pouco de colorismo: já houve dois negros no STF, um mulato escuro, Hermenegildo de Barros, ministro de 1919 até a aposentadoria em 1937, e outro mulato claro, Pedro Lessa, ministro de 1907 até sua morte, em 1921.
Detalhe: os três mineiros.
O primeiro
O jurista Pedro Augusto Carneiro Lessa, o primeiro juiz afrodescendente a ocupar lugar no STF, formou-se bacharel em 1883, na Faculdade de Direito em São Paulo, doutor, em 1888, já com carreira na vida pública.
Em 1887, conquistou o primeiro lugar em concurso para docente na Faculdade de Direito de São Paulo. Não foi nomeado, insistiu e, no ano seguinte, voltou a prestar o concurso, obtendo outra vez o primeiro lugar, sendo nomeado professor catedrático.
Pedro Lessa
Em 1891, trabalhando como chefe de polícia do Estado de São Paulo, é eleito deputado à Assembleia Constituinte de São Paulo, onde foi um dos principais colaboradores da respectiva Constituição.
Abandonando a política, dedicando-se à advocacia e ao magistério superior, deu nova orientação ao estudo da Filosofia do Direito no Brasil. Seus triunfos como advogado deram-lhe tal destaque que os conselhos e pareceres que emitia eram acatados em toda parte. Entretanto, em outubro de 1907, volta a servir o Estado, sendo nomeado ministro do STF.
Na Corte, ele foi responsável pela ampliação do instituto do “habeas-corpus” a casos não previstos na Constituição brasileira de 1891, que veio a culminar com o mandado de segurança.
Além de assento na Corte, Pedro Lessa ocupou a cadeira n° 11 da Academia Brasileira de Letras, conquistada em 7 de maio de 1910.
Na sua história, também, a fundação da Liga de Defesa Nacional, a favor do serviço militar obrigatório, e a participação em várias instituições culturais, entre elas, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
O segundo
Hermenegildo Rodrigues de Barros, o segundo negro ministro do STF, é exemplo de funcionário público: nunca faltou a nenhuma sessão do STF, marca que lhe valeu, inclusive, o não comparecimento ao casamento da própria filha, porque marcado para a mesma hora do trabalho!
Hermenegildo Rodrigues de Barros
Nascido em 31 de agosto de 1866, na cidade de Januária, província de Minas Gerais, formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais na Faculdade de Direito de São Paulo, em 1886, aos 20 anos.
Começou a carreira em Minas Gerais. Primeiro como promotor público, depois, juiz, desembargador, até chegar a ministro do Supremo Tribunal Federal em 1919.
Por força do Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro de 1932, que instituiu o Código Eleitoral e a instalação do Tribunal Superior de Justiça Eleitoral, e da Constituição de 1934, foi pioneiro na Presidência do Tribunal Superior Eleitoral, por ser o vice-presidente da Corte Suprema, até o golpe de 1937, com o Estado Novo, ocasião em que foi aposentado.
Antes disso, em 1933 e 1935, Hermenegildo Rodrigues presidiu as sessões preparatórias da Assembleia Nacional Constituinte.
No Tribunal, sua conduta foi de defensor e garantidor de todas as liberdades que as leis asseguram. Seu nome sempre é associado à cultura e integridade de caráter.
O mais humilde
Joaquim Barbosa, relator do histórico julgamento do Mensalão, é o primeiro presidente negro do STF. Hermenegildo de Barros foi eleito vice-presidente do Tribunal, em 1931, e reeleito em 2 de abril de 1934.
Hermenegildo Rodrigues de Barros foi eleito em 1931 – e reeleito em 1934 – presidente do tribunal. Joaquim Barbosa foi confirmado no cargo uma única vez, em 10 de outubro de 2012.
O terceiro juiz negro do STF – 55º presidente da Corte, desde o Império; 44º desde a República -, carrega também como pioneirismo ser o de origem mais humilde dos três – e é ele quem conta.
Nasceu pobre, realizou os trabalhos mais simples para pagar seus estudos e conseguiu formar-se nas melhores universidades internacionais. Trabalhava de madrugada, estudava de manhã e dormia à tarde. Na universidade, sustentou-se como funcionário da gráfica do Senado e, antes de se formar, prestou concurso para o Itamaraty.
Obteve três diplomas de pós-graduação entre 1988-1992. Fez doutorado em Paris e tornou-se professor visitante de duas universidades americanas – Columbia, em Nova York, e Ucla, em Los Angeles.
É fluente em inglês, francês e alemão. Tem dois livros publicados. Um em francês, sobre o Supremo no sistema político brasileiro, e outro em português, a respeito da questão legal das ações afirmativas em favor dos negros.
Joaquim Barbosa
Mineiro de Paracatu, homem discreto, ganhou fama como relator implacável do processo contra o antigo círculo político do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, em um esquema de corrupção envolvendo a Petrobras e a compra de apoio de parlamentares.
E foi o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva quem o indicou para o cargo. Mas antes de ser nomeado ministro do STF, atuou como membro do Ministério Público Federal de 1984 a 2003; chefe da Consultoria Jurídica do Ministério da Saúde, de 1985 a 1988; advogado do Serviço Federal de Processamento de Dados (SERPRO), de 1979 a 1984; oficial de chancelaria do Ministério das Relações Exteriores, de 1976 a 1979, tendo servido na Embaixada do Brasil em Helsinque, Finlândia.
Resumindo: em 192 anos de STF, criado no dia 9 de janeiro de 1829, apenas três juízes negros integraram o Poder Judiciário – um dos pilares da nossa Democracia. Apenas três juízes em um país com a segunda maior população negra do mundo depois da Nigéria, marcado pela desigualdade e pelo abismo social e racial.
Curiosa – se não, irônica – a fala do ministro Celso de Mello, quando da posse de Joaquim Barbosa na Presidência do STF:
“Cumpriu-se a tradição que tem prevalecido ao longo de muitas décadas nesta Corte Suprema e é importante destacar este momento, sob uma perspectiva histórico-institucional, porque se hoje o STF exerce o seu poder de autogoverno, elegendo entre os próprios membros o presidente da Corte, nem sempre foi assim”!
Durante o Império, cabia ao imperador nomear o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que exercia mandato de três anos. Com a República, consolidou-se o autogoverno no Poder Judiciário, sem a participação do povo negro.
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Muito bom texto! Muito elucidativo da difícil situação de distribuir cargos com mais equilíbrio entre raças, principalmente quando vemos que cada raça tem a sua voz própria e condições e necessidades próprias é realmente preciso que haja mais vozes além da raça branca no governo. Senão, não é um governo, um governo se identifica quando todas as vozes que compõem a força ativa do país são ouvidas.
Falta o Kassio Nunes Marques nessa lista.
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