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Frente Negra Brasileira, o primeiro partido político

Em 16 de setembro de 1931, nasce em São Paulo a maior entidade negra do século XX: a Frente Negra Brasileira. Sua missão:

integrar o povo preto à sociedade.

Se autodenominando “órgão político e social da raça”, a Frente Negra conquista dimensões inusitadas. É o nosso primeiro partido político, uma vanguarda com o objetivo de preparar o negro para assumir uma posição política e econômica na representação do povo brasileiro no Congresso Nacional.

Como movimento de massas, proporciona à população desassistida e marginalizada não só assistência social, mas um meio de organização e combate ao preconceito.

A Frente Negra, também, é a primeira no país a mostrar uma ação coletiva dos negros, a partir da participação política e da presença no debate nacional. Isso 30 anos antes dos movimentos negros por direitos civis nos Estados Unidos.  

Orquestrava protestos contra a discriminação racial em lugares públicos. Confrontava hotéis, bares, barbeiros, clubes, guarda-civil, departamentos de polícia que proibiam a entrada de pessoas negras… Marcava presença.

Assim, a Frente Negra – precursora dos movimentos ativistas que até hoje lutam contra o racismo – ganha status de partido político, o primeiro e único partido negro do país. Representatividade importa, desde sempre.

Mas a meta como partido – no curto prazo -, de participar das eleições de 1937, não pode ser cumprida´. Com o golpe de 1937 de Getúlio Vargas e a instauração do Estado Novo, foi declarado ilegal e sobreviveu na clandestinidade até 1938.

Racismo científico

A atuação da Frente Negra Brasileira como partido político deveria ser a coroação, a evolução natural da mais importante organização negra pós abolição do Brasil¸ que lutava pela inserção do negro em todos os setores da sociedade e no enfrentamento do racismo em suas mais diversas facetas.

Vivia-se o auge das teorias cientificistas que se esforçavam por provar a inferioridade natural, biológica, da raça negra, portanto, predestinada ao desaparecimento, em nome, inclusive, da evolução do país e do povo brasileiro – este era o discurso.

Tais teorias resultavam em políticas públicas que incentivavam à imigração europeia, com vistas ao ‘embranquecimento’ do povo brasileiro, e alimentavam o racismo estrutural, inviabilizando inclusive o ingresso no mercado de trabalho.  

Os anúncios de emprego, nos jornais da época, avisavam:

Precisa-se de empregado, mas não queremos de cor”.

Para o combate à discriminação, a Frente Negra mantinha escolas, tanto de educação básica, como cursos profissionalizantes e de formação política. E, ainda, apostava em um trabalho socioeducativo e cultural, envolvendo aulas de música e teatro, esportes, assistência social, jurídica e na área da saúde, com atendimento médico e odontológico.

O jornal A Voz da Raça, que existiu de 1933 a 1937, na sua primeira edição avisava no subtítulo:

“O preconceito de cor no Brasil só nós, os negros, podemos sentir”.

Um partido de direita

A Frente Negra era um partido de extrema-direita, próximo ao fascismo e ao integralismo, numa época anterior à Segunda Guerra Mundial e ao holocausto, quando Hitler ainda era celebrado pela comunidade internacional como governante. 

“A organização acreditava que a solução para o Brasil era um governo forte, que tivesse compromisso com a nação, como falavam que Hitler tinha com a Alemanha”, contextualiza o historiador Petrônio Domingues, autor do livro Protagonismo Negro em São Paulo.

E “o integralismo tinha uma narrativa de inclusão da população negra –  ressalta o cientista social Márcio Macedo, coordenador de diversidade da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas, em entrevista à BBC News Brasil.

Estes argumentos ajudam a compreender o apoio da Frente a políticas de extrema-direita e a Getúlio Vargas, que se colocava como um presidente nacionalista e era visto como uma esperança de melhoria nas condições de vida dos libertos.

Áurea 2.0

Uma ideia que nasce com os integralistas – e é abraçada pela Frente Negra – é o conceito de segunda abolição, por entender que a primeira, de 1888, havia deixado um legado de exclusão social e pobreza.

Mesmo assim, o 13 de maio era celebrado. Semanas antes da Revolução de 1932, a cidade de São Paulo assistiu a uma partida de futebol entre “Brancos x Pretos”, organizada pela Frente Negra, em que perdemos por 6 x1.

Na época, o secretário da entidade, Izaltino B. Veiga dos Santos, declarou ao jornal Folha da Noite:

“É um momento a mais para a sociedade demonstrar que deseja a aproximação do negro brasileiro, reconhecendo-lhe o valor indiscutível nos diversos ramos da atividade humana.”

Pura ilusão.

Integração ao mundo branco

Mas, na cabeça dos ativistas da Frente, o caminho a seguir era o negro brasileiro se integrar aos valores dominantes, o que incluía o catolicismo e o eurocentrismo.

E a Frente Negra fez mais em nome da inclusão: substituiu o subtítulo original de seu jornal, A Voz da Raça” pelo lema dos integralistas, apenas acrescentando a palavra “raça”, transformando-o em: “Deus, Pátria, Raça e Família”.

Por este caminho, o único partido negro da história se aproximou do poder e do então presidente da República. E conseguiu ter algumas de suas reivindicações atendidas, como o fim da proibição de ingresso de negros na Guarda Civil de São Paulo.

Inegável, portanto, o poder de barganha que o movimento negro detinha naquele momento no cenário político.

A Frente reunia, como sócios, entre 8 e 50 mil negros, incluindo professores e funcionários públicos, dos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Pernambuco, Rio Grande do Sul, Bahia e São Paulo – dependendo da fonte que se consulte.  

Dissidência interna

Nos bastidores da Frente, no entanto, a polarização política era palpável: de um lado Arlindo Veiga dos Santos, líder do Movimento Patrianovista, de caráter nacionalista; de outro, José Correia Leite, da corrente socialista. E havia, também, negros e negras monarquistas e comunistas.  

Quando eclodiu a Revolução de 1932, a Frente  Negra – que sempre apoiou Getúlio e tinha sua sede na capital paulista – divulgou uma nota afirmando neutralidade no conflito.

Parte dos militantes, indignada, rompeu com a organização, formando a Legião Negra que se uniu à elite paulista, a setores da classe média e à milícia estadual para um conflito armado contra as tropas de Getúlio.

Uma luta entre Davi e Golias – como São Paulo não tinha exército, milhares de paulistas se alistaram voluntariamente para lutar contra as forças federais — muito maiores e melhor equipadas.

São Paulo exigia a destituição do presidente e uma nova Constituição — daí o nome de Revolução Constitucionalista.

Luta errada

Essa nova entidade, a Legião Negra, liderada por Joaquim Guaraná Santana e Gastão Gourlart, lançou uma “Proclamação a todos os negros do Brasil“, na qual “expressava seus ideais de liberdade associados aos direitos, cidadania e à participação” – segundo artigo de Petrônio Domingues no livro Dicionário da Escravidão e Liberdade.

E a Legião conseguiu arregimentar cerca de 2.000 combatentes, que receberam uniforme, armas, equipamentos bélicos e um rápido treinamento militar; fizeram um juramento e foram enviados aos campos de guerra.

As mulheres negras, arregimentadas no agrupamento, trabalhavam na retaguarda, em serviços de enfermagem e cozinha. Uma delas, inclusive, ficou famosa nos jornais: a voluntária, conhecida como Maria Soldado, cozinheira de uma família rica que não avisou aos patrões sobre seu alistamento e chegou a se passar por homem para participar das batalhas.

Para a Legião Negra, lutar pela Constituição – e contra o governo federal -significava opor-se à opressão e defender o regime da lei, da democracia e, no limite, defender a própria pátria. Além disso, homens negros muito pobres viram no alistamento militar uma oportunidade de sobreviver e ganhar algum dinheiro.

Mas São Paulo, em três meses, se rendeu. “O governo paulista pagou indenizações às famílias de soldados mortos e de combatentes que ficaram inválidos. Mas os jornais mostraram que muitos negros e familiares de mortos não receberam as indenizações, como os brancos. Alguns reclamaram que não ganharam sequer o soldo”, conta o historiador Petrônio Domingues, que também é autor de pesquisa pioneira sobre a participação da Legião Negra na Revolução Constitucionalista.

Para o historiador, a Frente Negra mostrou como a população negra da época “buscou inserir-se na história do país, não ficando alheia à situação política”. Até hoje, entretanto, a participação dos soldados negros no conflito não é reconhecida nem lembrada.

O começo

A Frente Negra acontece no Brasil, pelo menos 30 anos antes de os Panteras Negras existirem – há quem afirme, inclusive, que a Frente Negra foi a inspiração para os Panteras, que também se tornaram partido político.

As duas organizações das Américas seguiram linhas de ação semelhantes na proposta de garantir saúde, educação e condições básicas de vida para o povo negro, e se diferenciaram no viés político e no uso das armas – no caso dos Panteras, em nome da causa.

Nos anos 1930, a discriminação e a segregação racial eram práticas normais e aceitáveis no Brasil, e é exatamente esta naturalização da diferença que faz surgir a Frente Negra, reivindicando direitos sociais e políticos.

Para se tornar sócio, pagava-se uma taxa de inscrição e uma mensalidade, que financiava a organização, bem como seu jornal, A Voz da Raça.

A mobilização do povo negro tornou a Frente Negra grande, a que teve maior projeção e repercussão na história, a primeira organização no país a falar que o então chamado ‘preconceito de cor’ era um problema nacional e estrutural. Hoje isso é consenso, mas nos anos 1930 não era.

Fontes:

“https://www.geledes.org.br/frente-negra-brasileira-2/”

“https://www.bbc.com/portuguese/brasil-53000662”

8 comentários em “Frente Negra Brasileira, o primeiro partido político”

  1. Rute Aparecida Pinto Lucio

    Texto excelente! Poucos sabem esse início da luta contra o racismo em São Paulo e no Brasil!

  2. O preto no Brasil precisa se organizar e manter-se como uma rocha.Conseguiram a nossa desunião, esse é o modo operante dos previlegiados. Luta é continua com união, educação, organização, senão seremos engolidos pela minoria branca que se acha maioria.

  3. E certo que muitas pessoas nunca obtiveram essas informações, resgates como esse impulsionam vontades de muitos a empreender e com isso conquistamos o que não se pode ganhar, a liberdade.

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