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Racismo nos esportes, um confronto sem disfarces

O povo preto ‘empresta’ qualidade aos esportes, derruba o ideal de supremacia branca, enriquece os poderosos com seu talento e se enriquece também… Mas o atleta negro faz muito mais quando não esquece sua origens, quando não camufla sua própria existência.

25 de Junho de 1935: vitória de Joe Louis sobre Primo Carnera (Imagem: oseph Costa/NY Daily News Archive via Getty Images)
25 de Junho de 1935: vitória de Joe Louis sobre Primo Carnera (Imagem: Joseph Costa via Getty Images)

“E agora parece que Joe está com muita raiva, Ele acertou Carnera… Um soco de esquerda no corpo e outro de esquerda na cabeça. Um cruzado de esquerda e um de direita na cabeça. O olho direito do oponente está sangrando… Louis está penetrando em todas as defesas… o oponente está caindo… está na lona… O árbitro está contando… A luta acabou, senhoras e senhores… O vencedor e ainda campeão mundial dos pesos pesados… Joe Louis.”

Campeão mundial. Um garoto Negro. O filho de uma mãe Negra. Ele era o homem mais forte do mundo… Não seria bom um homem Negro e sua família serem pegos em uma estrada solitária na noite em que Joe Louis provou que éramos o povo mais forte do mundo.

Se Joe Louis perdesse a luta, se fosse a nocaute, seria outro linchamento, mais um Negro enforcado em uma árvore. Mais uma mulher emboscada e estuprada. Um garoto Negro chicoteado e ferido. Uma mulher Negra estapeada pela patroa branca…

Até aqui, as palavras, frases, ideias completas são das páginas 162, 163 e 164 do livro Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, uma das autobiografias da norte-americanaMaya Angelou  (1928-2014).

Johnson, campeão

A luta entre o americano Joe Louis e o australiano Primo Carnera aconteceu em 1935, auge do racismo americano, sem direitos civis para os negros e com Ku Klux Klan, a organização supremacista e terrorista que surgiu na segunda metade do século XIX.

Antes de Louis, a supremacia negra no pugilismo já se fazia presente com Jack Johnson (1878-1946) –  o primeiro boxeador negro campeão mundial dos pesos-pesados, título conquistado em 1908 e mantido até 1915.

Nestes sete anos em que foi campeão mundial,  houve um movimento chamado “grande esperança branca”, onde todos queriam que o título mundial fosse tirado dele. Na ocasião, o até então aposentado James Jeffries, branco campeão mundial e racista, aceitou suspender a aposentadoria e voltar aos ringues para “provar que um homem branco é melhor que um homem negro”.

Luta do século

Conhecida como a “luta do século”, a disputa aconteceu com a presença de 20 mil pessoas em Nevada, nos Estados Unidos, e Jack Johnson venceu depois de 15 rodadas.

Jack Johnson, 28 anos, vence com um nocaute técnico o ex-campeão, James J. Jeffries, 35 anos, em uma luta de 15 rounds em Reno, Nevada.
Jack Johnson, 28 anos, vence com um nocaute técnico o ex-campeão, James J. Jeffries, 35 anos, em Reno, Nevada.

As notícias da derrota de Jeffries desencadearam numerosos incidentes de violência branca contra negros, mas a relevância daquele dia para os afro-americanos foi transformada em poema por William Waring Cuney, chamada de My Lord, what a morning (Meu Senhor, que manhã).

“Ó meu Senhor,
Que manhã,
ó meu Senhor,
Que sentimento,
quando Jack Johnson
virou a cara branca de neve
de Jim Jeffries
para o teto.”

Fora dos ringues, entretanto, o americano do Texas teve que ir além das habilidades nos golpes. Filho de ex-escravizados, foi questionado durante toda a sua carreira, sem perder a majestade, como o rei dos pesos-pesados: 104 lutas, 73 vitórias (40 por nocaute), 13 derrotas e 10 empates.

42, sem reservas

Neste  time especialíssimo, ainda, Jack Robinson Roosevelt (1919- 1972), o Jackie, conterrâneo de Alice Coachman da Georgia, que rompe com a “exclusividade” dos brancos no beisebol e é o primeiro atleta a quebrar a segregação racial na principal Liga Americana daquele esporte.

Em 15 de abril de 1947, ele assina contrato com o Brooklyn Dodgers, de Nova York, até hoje um dos principais times do país.

Na sua primeira partida, uma multidão de 26 mil pessoas comparece ao jogo – uma maioria negra para apoiá-lo. Isso não impediu que, nos seus primeiros anos de carreira, enfrentasse manifestações de ódio racista, ressentimento de torcidas, de equipes adversárias e até mesmo de alguns companheiros de time.

Jackie Robinsons

Em uma ocasião, enquanto o atleta negro era alvo de racismo, o colega de time Pee Wee Reese disse: “Quem sabe amanhã todos usemos 42, para que ninguém mais consiga nos diferenciar”.

Desde 2004, no dia 15 de abril é comemorado o Dia de Jackie Robinson. Nesta data, todos os jogadores do beisebol usam a camisa de número 42, número com o qual o jogador se aposentou em 1997.

Liga Negra de Beisebol

Antes de Jackie, no período de segregação racial no pós-Guerra Civil, como em toda sociedade a separação era um fato. No beisebol, os proprietários da Liga Nacional adotaram um “acordo de cavalheiros” em 1876 para manter os negros fora e assim nasceu a Liga Negra de Beisebol.

Durante anos, a Liga, apesar de considerada amadora, estava entre os maiores orgulhos da comunidade negra. Vários torneios entre os clubes foram realizados e excelentes jogadores tinham visibilidade similar à dos brancos. Na década de 1940, as ligas brancas criaram a Major League e, pouco a pouco, foram demonstrando interesse em jogadores negros.

Um lugar de honra

A brasileira Irenice Maria Rodrigues, meio-fundista dos 800m, proibida de competir durante a ditadura militar, talvez seja a imagem maior da luta por igualdade e equidade nos esportes e na vida.

Ela iniciou sua carreira no Atletismo no Rio de Janeiro. Nos anos 1950, passou pelo Vasco da Gama, Botafogo, mas fez carreira no Fluminense, se classificando para os Jogos Pan Americanos de Winnipeg em 1967 e para os Jogos Olímpicos da Cidade do México em 1968.

Recordista sul-americana de 800 m rasos – seria titular de qualquer seleção brasileira da modalidade -, desafiou o Regime Militar e o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) – controlado pelo Conselho Nacional de Desportos ocupado por militares -, foi perseguida, silenciada e fim?!

Jornal de cena de "Procura-se Irenice" (Imagem: divulgação)
Jornal de cena de “Procura-se Irenice” (Imagem: divulgação)

Irenice não aparece em nenhuma galeria de celebridades, em nenhuma parede de laureados dos clubes por onde passou, em nenhum livro de notáveis do esporte nacional, em nenhuma biografia, longa-metragem ou seriado. É como se ela não tivesse existido!

Negra e pobre

A moça negra, pobre, nascida em Itabirito (Minas Gerais), muito resistente e com marcas extraordinárias ainda para os dias atuais incomodou a ditadura e não poderia aparecer, para o mundo, como símbolo do “país do futuro”.

Vivia-se os anos 1960, de falar contra o racismo ser considerado subversão, do padrão de beleza europeu, da mulher recatada. E Irenice usava shorts curtos, cabelo pintado de louro e não se encaixava no terreno da delicadeza, que não incluía provas de resistência.

Ela saltava, depois passou a correr 400m e 800m – esta última distância, proibida para mulheres, pois a consideravam “por demais desgastante para o corpo feminino”!

Seu técnico, Genário Simões, vendo que no aquecimento ela dava mais que o dobro de voltas que as outras atletas, sugeriu a prova de fundo e ela topou. Quiseram impedi-la de disputar os Jogos Pan-Americanos de Winipeg, no Canadá, em 1967. Ela foi e se destacou.

De personalidade forte, contestava o que considerava injusto. Denunciava a discriminação nos clubes. Confrontava o racismo. Incitava os atletas a se recusarem a participar das competições, fazerem manifestos e barulho suficiente para chegar nos ouvidos poderosos.

Expulsa das Olimpíadas

No ano  olímpico der 1968, o mundo ardia com as  lutas por direitos civis, com a eclosão do  feminismo, a luta contra a guerra do Vietnã. Martin Luther King e Malcom X estavam mortos, assassinados  e eles ouviram Irenice e a calaram. Pior, a paralisaram. O COB não a queria.

Uma briga com a colega Maria Cipriano – que a denunciou por burlar a segurança e treinar fora do horário na pista fechada -, foi encarada como indisciplina tão grave a ponto de expulsar da delegação a atleta com reais chances de chegar a uma final olímpica.

Irenice voltou sozinha para o Brasil e insistiu no esporte, continuou a competir até sua carreira ser interrompida definitivamente em 1971. Ela foi punida por caminhar, ao invés de correr, quando foi reclamar do sistema de largada de uma competição.

Cena de "Procura-se Irenice" (Imagem: divulgação)
Cena de “Procura-se Irenice” (Imagem: divulgação)

Ela não conseguiu estudar Educação Física, não davam seus resultados, ocultaram suas fotos, informações e participações. Morreu em 1981. 

As pesquisadoras Katia Rubio, da Universidade de São Paulo, e Cláudia Farias, da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, resgataram sua história. Ela também está no curta-metragem Procura-se Irenice, de 2016, de Marco Escrivão e Thiago B. Mendonça, e empresta seu nome a  maratonas.

Lilian, a voz  

O engajamento político e social do futebolista francês Ruddy Lilian Thuram-Ulien, ao contrário de Irenice, não lhe custou a carreira. Ao contrário, ecoa ainda mais após sua aposentadoria dos campos aos 36 anos de idade.

Thuram atuou com excelência no futebol tanto como zagueiro como lateral direito, durante 17 anos,  profissionalmente, sempre em clubes de primeira divisão, na França, Itália e Espanha por mais de 15 temporadas.

Recordista de partidas com a Seleção Francesa – disputou 142 jogos – , entre 1994 e 2008, venceu a Copa do Mundo em 1998 e a Eurocopa em 2000, além de ter sido vice na Copa do Mundo de 2006.

Contra o racismo e a homofobia

Thuram sempre se destacou por ter inteligência muito acima da média dos jogadores de futebol.  Se tornou embaixador oficial da Unicef e foi convidado por Nicolas Sarkozy, em 2008, para ser “ministro da diversidade”, mas recusou o cargo e justificou em entrevista publicada, na época, pelo jornal “Le Monde“.

Thuram disse, com todas as letras, que o presidente francês tinha um “discurso racista”, além de ser crítico de sua política imigratória, bem como de seu costume de chamar jovens gays de “decadentes” ou “escória da sociedade”.

Thuram palestrando na unicef (Imagem: Alejandro Garcia / Ansa)
Thuram palestrando na unicef (Imagem: Alejandro Garcia / Ansa)

Isso não o impediu de viajar pelo mundo como militante do movimento negro e figura importante nas lutas contra a homofobia ao redor da Europa, participando de marchas em apoio ao casamento de pessoas do mesmo sexo, pela independência da Catalunha e pedindo atenção ao fato de haver recrutamento infantil em guerras civis na África.

Thuran, ainda, criou a Fundação Lilian Thuram que desenvolve atividades de conscientização como forma de combate ao preconceito racial. Em 2010, ele lançou o livro chamado “Mes étoiles noires” (“Minhas estrelas negras”, em português), no qual aborda questões relacionadas ao racismo.

De joelhos em campo

Talvez o personagem de menos sucesso esportivo deste texto seja o ativista de direitos civis e jogador de futebol americano Colin Rand Kaepernick. Ele atuava na osução de quarterback na National Footeball League – NFL, foi selecionado pelo San Francisco 49ers na temporada 2011. Tinha ótimas atuações. Em 2014 assinou uma renovação de seis anos e que poderia chegar ao 126 milhões de dólares ao final do contrato, mas…

Dois anos depois, após uma série de lesões, entrou em rota de colisão com a NFL e, durante o hino nacional norte-americano, se ajoelhou como forma de protesto ao genocídio negro. Foi multado, mas repetiu o gesto durante toda a temporada.

Colin Rand Kaepernick ajoelhado durante o hino americano (Imagem: The Sun)
Colin Rand Kaepernick ajoelhado durante o hino americano (Imagem: The Sun)

Seu talento não foi suficiente e, desde 2017, Colin Kaepernick segue sem jogar. E há quem afirme que a ausência de emprego se deve a um boicote racial por parte dos donos dos times.

Participante ativo de causas sociais como o Black Lives Matter, Kaepernick também contribuiu financeiramente em prol da luta contra a Covid-19.


Leia também: Naomi Osaka, Lewis Hamilton e Olimpíadas: Palco para o Combate ao Racismo

Fontes: Wikiwand, Uol Esporte-Colin,Olimpíada Todo Dia, Globo Esporte, Esporte Rio, Uol Esporte,

Escrito em 6 de julho de 2021

4 comentários em “Racismo nos esportes, um confronto sem disfarces”

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