Ser mulher e negra no Brasil
– Tania Regina Pinto
IX Marcha das Mulheres Negras do Rio de Janeiro (Tânia Rêgo/Agência Brasil)
“Viva a diferença com direitos iguais.”
Durante muito tempo, eu amei este slogan do movimento feminista. Ele foi lançado nos anos 1980, da assinatura da Constituição Cidadã – assim chamada quando da sua promulgação, em 1988, e desvirtuada em muito na sua intenção. Nem o slogan feminista nem a Lei Magna do país contemplaram e/ou contemplam o nascer mulher e negra.
E as estatísticas, os números, são a maior prova das úlceras da desigualdade racial, de gênero, do viver e do morrer.
Ser mulher e negra representa maior desemprego e menores ganhos
Mulheres negras têm maior participação em trabalhos sem carteira assinada e menor índice de ocupação em cargos de chefia, segundo estudo do Dieese – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. A retomada das atividades após a pandemia e a queda do desemprego não foram capazes de diminuir as diferenças entre trabalhadores brancos e negros. E as mulheres negras são as mais prejudicadas.
Enquanto a taxa de desemprego geral ficou em 9,3% no segundo trimestre de 2022, entre as mulheres negras o indicador ficou em 13,9% – o desemprego constatado entre mulheres brancas foi de 8,9%.
O rendimento mensal das mulheres negras é o mais baixo do Brasil. No segundo trimestre de 2022, enquanto o homem branco recebeu em média R$ 3.708 e a mulher branca R$ 2.774, a trabalhadora negra ganhou, também em média, R$ 1.715, e o homem negro, R$ 2.142.
E como se não bastasse, de acordo com a economista Gabriela Mendes, apesar de investir mais na profissão, a mulher negra continua sofrendo discriminação salarial: “A gente vê que há mais mulheres negras qualificadas, mas elas continuam recebendo menos”.
Ser mulher e negra representa mais solidão
Estudo do Ipea – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada contabiliza mais de 281 mil pessoas vivendo nas ruas do Brasil em 2022. Isso representa um aumento de 38% desde 2019, após a pandemia de covid-19. A maioria, homens negros.
O Sudeste concentra pouco mais da metade da população em situação de rua do país: são 151 mil pessoas, seres humanos. No Norte está a menor parcela de população de rua do país que, no entanto, de 2019 para 2022, passou de 8 mil para mais de 18 mil pessoas.
Percentualmente,
- na capital paulista, 71% das pessoas em situação de rua se autodeclaram negras e pardas;
- em Vitória, capital do Espírito Santo, 78%;
- na Cidade Maravilhosa, o Rio de Janeiro, 80%;
- em Salvador, 93% – percentual superior à parcela preta em números gerais da cidade.
Situação semelhante se constata em relatório técnico do governo do Rio Grande do Sul que sinaliza que 40% da população de rua é negra no estado, enquanto o índice de negros na população geral é de 20%.
O estudo do Ipea alerta, ainda, que o aumento de pessoas vivendo nas ruas é muito maior em proporção quanto comparado ao aumento da população em geral – no período de dez anos, de 2012 a 2022, o crescimento desse segmento vulnerável foi de 211% e o aumento populacional do Brasil, segundo o IBGE, foi de 11% entre 2011 e 2021.
Genocídio
Em 1978, Florestan Fernandes, ao prefaciar o ensaio “O genocídio do povo brasileiro. Processo de um racismo mascarado”, de Abdias Nascimento, publicado em 2016, afirma que as populações negras têm sofrido um genocídio institucionalizado. E nada mudou – registra artigo que analisa os dados referentes ao sistema prisional brasileiro, coletados pelo 17° Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública:
“Embora a categoria “genocídio” choque , é escandalosamente evidente a atualidade daquela leitura – o Brasil encarcera majoritariamente pessoas negras e persiste na recusa em prover condições dignas de vida e garantir direitos para essa população (…) se trata de um quadro de violência racial institucionalizada, que adere incondicionalmente à desumanização das pessoas negras, sob o aparato fornecido pela própria normativa vigente.”
Os homens negros seguem como a maioria da população no sistema prisional : 68% de um total de 826.740 presos, percentual racial que só faz crescer, de acordo com a série histórica do mesmo anuário. Em 2005, os homens negros representavam 58,4% da população carcerária e homens brancos 39,8% que, passados 17 anos, somam 30,4%.
No capítulo mortes violentas, dados de 2022, o anuário registra um total de 47.508 vítimas: 91,4% homens e 8,6% mulheres, sendo que dos homens mortos, 76,5% negros e a maioria jovens (50,2%).
Como mais um exemplo da jornada solitária da mulher negra que, registre-se, vai muito além do amor romântico, se fazendo presente no mercado de trabalho, na conquista de espaços “reservados” à branquitude… Dados do IBGE informam que, no Brasil, existem mais de 11,4 milhões de famílias nessa condição, a grande maioria negra (7,4 milhões).
Ser mulher e negra representa menos educação
A exclusão de crianças e jovens pretos e pretas é histórica no Brasil. A historiadora Surya Pombo, no artigo Escravos, libertos, filhos de africanos livres, não livres, pretos, ingênuos: negros nas legislações educacionais do XIX, identifica na lei a negação do direito à educação.
Em alguns estados, se determinava que o acesso à educação fosse só para “pessoas livres”. Em outros, era explícita a proibição da presença de escravizados. Em outros, ainda, o acesso a meninas pretas era permitido para o aprendizado de tarefas domésticas.
Relatório do Banco Mundial com dados apurados até a metade do primeiro semestre de 2021 aponta que o percentual de crianças negras sem acesso a atividades escolares foi praticamente o dobro das brancas, indígenas e asiáticas – enquanto as afrodescendentes ficaram na casa dos 12,5%, as demais marcaram 6,4%.
Embora o Banco Mundial registre que o abandono da escola por brasileiros ficou na casa dos 12%, a situação preocupa por causa do tamanho da população nacional.
Ao todo, segundo a instituição, a evasão brasileira no primeiro ano da pandemia foi 172 mil crianças e adolescentes de 6 a 16 anos. Isso eleva o total do público nessa situação dos cerca de 1,3 milhão para 1,5 milhão.
Sessenta e dois por cento das crianças negras estão fora da escola, mesmo sendo quase 54,5% do total de crianças do país.
Ser mulher e negra representa menos saúde física e mental
A médica Jurema Werneck, uma das autoras do livro Vozes Insurgentes de Mulheres Negras, da Anistia Internacional no Brasil, atesta: “O racismo tem impacto na saúde em diferentes níveis. O racismo faz com que as pessoas adoeçam mais, morram mais precocemente e, muitas vezes, de forma desassistida”.
Primeira mulher negra a coordenar uma Conferência Nacional sobre este tema, conselheira nacional em saúde, ela vai além no diagnóstico:
“Acha-se que a pressão arterial das pessoas sobe do nada, como um fruto da natureza. Mas se você morar dentro da favela e viver a tensão de um tiroteio – e eu trabalhei em favela em época de tiroteio – , vai saber que os diabéticos e os hipertensos agravam muitíssimo.”
“O racismo expõe as pessoas a riscos enormes. Seja na hipertensão, diabetes, seja na gravidez, no parto, seja na saúde neonatal infantil. Mas o sistema de saúde ignora isso. Ignora que pessoas vivendo condicionadas a pressões cotidianas terão uma alteração na saúde ou podem ter. Essa cegueira é uma camada do racismo institucional”, denuncia.
Ser mulher e negra representa menos condição de vida digna
As famílias de mulheres negras e mães solos têm piores indicadores de saneamento básico e de inadequações nas suas casas que as das brancas. Mais de 40% delas não têm acesso a rede de esgoto, contra 26,7% das brancas. A ausência de coleta de lixo é 8,8% contra 3,7% e de abastecimento de água, de 13,9% contra 9,4%.
As casas das mães negras têm mais chance de enfrentar adensamento excessivo (11,9% contra 7,7%), que é quando mais de três moradores da casa utilizam o mesmo cômodo como dormitório.
Em mais da metade das casas das mães negras não tem máquina de lavar e a falta desse eletrodoméstico é um indício de que a população preta, em especial as mulheres, tem maior carga de trabalho doméstico, como a lavagem de roupa, entre outros trabalhos não remunerados.
Nascer mulher e negra representa mais abuso sexual, não importa a idade
As mulheres negras são mais pobres, moram em áreas mais precárias, mais distantes da rede de atendimento. Têm menos recursos financeiros para procurar ajuda, para conseguir um carro, um transporte e têm redes de apoio menores. Quando chegam aos serviços de saúde e segurança pública nem sempre são ouvidas, nem sempre são respeitadas, nem sempre têm suas queixas levadas a sério. Em outras palavras, enfrentam o racismo institucional, o que acaba por desestimular essas mulheres a fazerem denúncia e procurar ajuda do Estado.
Assim pessoas negras seguem sendo as principais vítimas da violência sexual, têm elevada à potência máxima a violência que sofrem e nem assim conseguem desaparecer as estatísticas sombrias que desafiam seu próprio viver.
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As mulheres negras são mais pobres, moram em áreas mais precárias, mais distantes da rede de atendimento. Têm menos recursos financeiros para procurar ajuda, para conseguir um carro, um transporte e têm redes de apoio menores. Quando chegam aos serviços de saúde e segurança pública nem sempre são ouvidas, nem sempre são respeitadas, nem sempre têm suas queixas levadas a sério. Em outras palavras, enfrentam o racismo institucional, o que acaba por desestimular essas mulheres a fazerem denúncia e procurar ajuda do Estado.
Assim pessoas negras seguem sendo as principais vítimas da violência sexual, têm elevada à potência máxima a violência que sofrem e nem assim conseguem desaparecer as estatísticas sombrias que desafiam seu próprio viver.
Os dados divulgados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública revelam um “cenário devastador” – classifica artigo da edição 2023 -, com o maior número de registros de estupro e estupro de vulnerável da história: 74.930 casos notificados às autoridades policiais – 88,7% das vítimas do sexo feminino e 11,3% do sexo masculino. Crimes cometidos, em 68,3% dos registros, na casa das vítimas.
No Brasil, em 2022, 56,8% de meninas negras e 42,3% de meninas brancas foram vítimas de estupro. Aproximadamente 8 em cada 10 vítimas de violência sexual eram menores de idade e sofreram em 86,1% dos casos o abuso foi cometido por familiares e outros conhecidos : 10,4% das vítimas de estupro eram bebês e crianças com idade entre 0 e 4 anos; 17,7% tinham entre 5 e 9 anos e 33,2%, entre 10 e 13 anos. Ou seja, 61,4% tinham no máximo 13 anos.
Em relação ao sexo biológico, as proporções têm-se mantido as mesmas ao longo dos anos: em 2022, 88,7% das vítimas eram do sexo feminino e 11,3% do sexo masculino.
Nascer mulher e negra representa mais abuso sexual, não importa a idade
O Anuário da Segurança Pública 2023 confirma, ainda, que entre as vítimas de feminicídio têm-se que 61,1% são negras e 38,4% brancas. Nos demais assassinatos de mulheres, o percentual de vítimas negras é ainda maior, com 68,9% dos casos, para 30,4% de brancas.
E o pior é saber que estes dados não são um retrato fiel – nem completo – do que é ser mulher e preta neste espaço territorial marcado pela apropriação da terra, dos saberes, dos corpos e da vida dos povos originários e dos povos escravizados em Áfrika.
Segue a resistência e re-existência de Tereza de Benguela, Lélia Gonzales, Anastácia, Mãe Menininha, Esperança Garcia e todas Pretas do Brasil que vieram antes e seguem em nós.
Julho 2023
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