“Poeta dos escravos”, ele é sinônimo de luta e poesia, emergiu no cenário literário brasileiro como uma força revolucionária. Sua obra transcende as barreiras do tempo ao retratar as pessoas escravizadas como seres humanos. Sua poesia, carrega emoção e crítica social. Sua origem africana, no entanto, fica “escondida”.
O que este artigo responde: Quem foi Castro Alves? Por que Castro Alves é chamado de “poeta dos escravos”? Qual é a importância da obra de Castro Alves para a literatura brasileira? Castro Alves enfrentou críticas em relação à sua obra? Como a vida pessoal de Castro Alves influenciou sua poesia?
É com o baiano Antônio Frederico de Castro Alves que, pela primeira vez no Brasil, as pessoas escravizadas são vistas como indivíduos, com problemas existenciais e vidas privadas intensas, capazes de amar e odiar, perdoar e ter desejo de vingança.
Criticado por não ter ido tão longe quanto poderia, elogiado por ter ido mais longe do que todos os seus contemporâneos, a polêmica marca o olhar sobre os seus 24 anos de vida, ora visto como “mulato”, ora como “branco”!
Castro Alves é exceção na tradição literária brasileira sem protagonismo negro e onde as pessoas escravizadas são em geral retratadas sem profundidade nem humanidade. Daí ser considerado, para muitas gerações, o “poeta dos escravos”.
Polêmico
Mas há décadas se discute se ele é um autor genial ou imaturo, se poeta lírico ou político, se pioneiro da abolição ou simples fingidor. Isso porque sua obra une o lírico ao social e cria uma poesia ao mesmo tempo romântica e politicamente contundente.
Algumas críticas literárias o acusam de só lutar contra a escravidão quando ela já está quase derrotada, um poeta reacionário canonizado justamente por saber o ponto exato até onde poderia ir antes de ofender a sensibilidade burguesa de seus leitores escravocratas.
Outras, o celebram por ser abolicionista antes de o abolicionismo virar moda, quando ainda não era uma posição política conveniente para jovens responsáveis.
Algumas, o elogiam por mostrar, pela primeira vez na literatura brasileira, a humanidade da pessoa escravizada, defendendo o retorno de todos para a África:
“Lá todos vivem felizes,
todos dançam no terreiro;
A gente lá não se vende
como aqui, só por dinheiro”.
Mas há também as pessoas que o censuram por nunca adotar a perspectiva negra e escrever sempre do ponto de vista do homem branco, relegando a pessoa negra a uma eterna posição de menos importância.
Olhar a vida e a oralidade de sua poesia é perceber o contexto da luta internacional pela abolição. Em 1865, por exemplo, empolgado com a vitória do norte na Guerra Civil americana, Castro Alves compõe e declama “O Século”, um poema radical, libertário e anticlerical onde tenta incorporar a luta contra a escravidão no Brasil à luta internacional por mais democracia e liberdade.
Intimo da escravidão
Castro Alves nasce baiano, na vila de Curralinho (hoje chamada Castro Alves), em 1847. Aos sete anos, sua família se muda para Salvador, onde seu pai, médico, ensina na Faculdade de Medicina e atende clientes particulares em casa.
Na época, 1854, fazia quatro anos, o tráfico negreiro estava proibido, mas Salvador ainda era um dos principais portos de entrada de pessoas escravizadas nas Américas e a casa de Castro Alves também reproduzia esta realidade: sua família possuía pessoas cativas.
Na infância, em escola progressista para a época, assistia aulas com a defesa explícita da completa abolição de castigos corporais, mas não das correntes!
Sobre sua mãe pouco se fala, apesar de o “Castro” ser daquela que o pariu.
Clelia Brasília da Silva Castro nasce em 14 de março de 1826 e morre em 10 de abril de 1859, aos 33 anos de idade. Tudo na mesma Cidade de Salvador, na Bahia. Na época, o futuro poeta contava apenas 12 anos de idade.
Aos 15 anos – quando foi estudar na capital de Pernambuco, Recife, em uma escola preparatória para a Faculdade de Direito -, o acompanhava o pajem escravizado de nome Gregório, mencionado muito de passagem na maioria das biografias do poeta, e algumas vezes descrito como alguém “inseparável”…
E, de fato, Castro Alves, pelo que se sabe, não libertou o pajem. Até em seu leito de morte, Gregório estava lá!
Questão de pele
A percepção do tom da pele de Castro Alves costuma embasar as críticas à sua arte. Em seu estudo clássico, O Negro Brasileiro, de 1934, Arthur Ramos desdenha a obra de Castro Alves como “romantismo de mistificação” e “poemas de piedade branca” que somente serviriam para esconder os problemas sob “um sentimentalismo doentio, sadomasoquista” sem propostas de solução.
A pesquisadora Zilá Bernd, em sua Introdução à Literatura Negra (1988), compara desfavoravelmente Castro Alves a Luiz Gama (1830-1882), dois poetas negros e abolicionistas.
Para ela, Castro Alves teria sido um “divisor de águas” por ser o primeiro autor brasileiro a utilizar um “eu-enunciador” que assumia sua negritude e a articular um discurso transgressivo que usa as armas do homem branco contra ele. Mas seria também o porta-voz de uma condolência institucionalizada, dada a sua completa identificação com o mundo branco.
Do ponto de vista da literatura negra, ou seja, produzida por pessoas negras, a autora especializada no assunto, valoriza mais Luiz Gama — um escritor negro pioneiro que escrevia enquanto homem negro — do que Castro Alves, um “branco” (na verdade, preto de pele clara) que escolheu as pessoas escravizadas como seu assunto principal.
O poeta dos escravos
1861. O aluno Castro Alves, 14 anos, declama sua primeira poesia sobre a escravidão, em evento escolar em homenagem ao Dois de Julho de 1823, que celebra a retirada das últimas forças militares portuguesas de Salvador e a consolidação da independência do Brasil.
Este seu primeiro trabalho não aparece em nenhuma de suas obras, apesar de seu valor histórico: é a primeira associação entre independência do Brasil e liberdade das pessoas escravizadas.
Dois anos depois, em 1863, Castro Alves publica, em um jornal universitário de Recife, A Canção do Africano, na qual um escravizado canta suas saudades da África, que é considerada sua primeira poesia abolicionista canônica. Ou seja, que nunca envelhece e é referência obrigatória para as novas gerações.
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Não por acaso o nome de Castro Alves está em uma das cadeiras da Academia Brasileira de Letras, fundada em 1896.
No poema Ao Dia Dous de Julho, entretanto, ele se refere a um escravizado másculo e amargurado (humano) que chora por estar separado da esposa, por não conhecer seu filho e brada por vingança. Sugere que a liberdade conquistada pelo Brasil com a independência não era para todos, o que, por si só, justificaria uma rebelião escrava.
Sem freios
Em 1866, Castro Alves funda uma sociedade abolicionista no Recife. No mesmo ano, morre seu pai. A partir daí, sua única fonte de renda passa a ser o aluguel de uma das casas da família em Salvador.
Ele está com 19 anos e seu viver é uma afronta à moral e aos bons costumes. Ele não usa barba – atitude que, na época, tinha conotação homossexual – e divide seu cabelo exatamente ao meio, um penteado considerado feminino.
Antes de subir ao palco, se maquia para tornar sua pele mais branca e seus lábios mais vermelhos. Faz as unhas regularmente e quase sempre veste-se todo de preto.
Ao mesmo tempo, valoriza as atrizes – consideradas marginais, prostitutas – e vive maritalmente com uma delas, a atriz portuguesa Eugênia Câmara, décadas mais velha que ele e que – sugere-se – o sustentava.
Para ela, Castro escreve o drama histórico Gonzaga ou A Revolução de Minas, sobre a Inconfidência Mineira, num tempo em que a Inconfidência não era muito conhecida nem era de bom tom valorizá-la.
Detalhe: os inconfidentes não eram abolicionistas, como o poeta os retrata.
Lugar de fala
Castro Alves, vale registrar, não teve seu trabalho reconhecido por publicações em jornais, como era comum em seu tempo, mas por suas declamações públicas, muito populares.
Sua voz poderosa e as palavras revolucionárias eletrificam plateias. Antes mesmo de cursar uma única aula na faculdade, já é aclamado, inclusive pelos veteranos, como “primeiro poeta da academia”.
No auge de sua carreira, declama talvez o seu poema mais famoso, O Navio-Negreiro:
…“Negras mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!…
…Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos… o chicote estala.
E voam mais e mais…
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!…”
A crítica mais comum que se faz a este poema – um dos mais citados e estudados de nossa literatura – diz respeito ao fato de ter sido escrito dezoito anos depois do tráfico de africanos ter sido abolido.
Mas é incontestável que Castro Alves não poupa o próprio país – bem diferente dos norte-americanos, que não ousavam a auto denúncia em sua literatura, sempre representando os traficantes de pessoas escravizadas como estrangeiros, sem pátria definida.
Para Castro, a escravização promovida nas Américas justificaria a dissolução do Brasil e dos Estados Unidos, em penitência por seus pecados. Seria melhor a nação nem existir, ele brada, angustiado, do que existir para promover tamanho mal. .
A Cachoeira de Paulo Afonso
Na defesa das pessoas escravizadas,Castro Alves não poupa nem Deus nem a nação, nem a Lei. Colocar a palavra “vingança” em lábios escravos não era algo feito levianamente no Brasil do século XIX.
E ele faz isso! Um poema revolucionário numa época em que a sociedade ainda debatia a abolição e temia a desordem civil e o caos social com a libertação das pessoas escravizadas. Isso porque o fantasma da vitoriosa Revolução do Haiti, onde os negros tomaram o poder, assombrava uma pequena e mal-armada elite branca escravocrata cercada por uma multidão de pessoas negras e mestiças, cafuzas e mamelucas, livres e escravizadas, todas marginalizadas e exploradas.
Está tudo lá no poema A Cachoeira de Paulo Afonso, publicado doze anos antes da abolição, em 1876, em algumas edições póstumas de Os Escravos.
Nele, a história de Lucas, um escravizado consciente de que Deus, família e lei pertencem ao homem branco – homem branco que estuprou sua mãe e sua amada, sendo ele mesmo filho de tal violência. Daí, não fazer sentido os cativos respeitarem a sua existência.
…“Ser escravo — é nascer no alcoice escuro
Dos seios infamados da vendida…
— Filho da perdição no berço impuro
Sem leite para a boca ressequida…
“É mais tarde, nas sombras do futuro,
Não descobrir estrela foragida…
É ver — viajante morto de cansaço —
A terra — sem amor!… sem Deus — o espaço!”…
Ocaso
Aos 22 anos, sofrendo de tuberculose e com o pé infeccionado – por conta de um tiro no próprio pé enquanto caçava -, Castro volta ao Rio de Janeiro (onde tem o pé amputado) e morre, em julho de 1871, aos 24 anos de idade, sozinho.
Tal isolamento foi fatal para a sua popularidade contemporânea, mas vital para a permanência e canonização de sua obra, referência para as gerações futuras.
Sem poder declamar, pode finalizar o único livro que publicaria em vida, Espumas Flutuantes, em 1870, uma coleção de poemas líricos, românticos e sensuais; escrever talvez sua obra-prima, o longo poema A Cachoeira de Paulo Afonso, e dar redação final aos poemas abolicionistas que pretendia reunir no livro Os Escravos, antologia póstuma, idealizada por Afrânio Peixoto em 1921.
Apesar de ser mais lembrado por suas poesias abolicionistas, 70% dos seus obituários nem mesmo mencionam o assunto.
Só no décimo aniversário da sua morte, o advogado, intelectual, antigo companheiro de república e colega na Faculdade de Direito de Recife, Rui Barbosa se manifesta em defesa da sua obra. Na ocasião, ele afirma que o grande valor de Castro Alves é ter encarnado artisticamente o maior tema do seu tempo, a luta contra a escravidão.
Fontes: Alex Castro, Folha Uol, Mundo Educação, Geni
Outubro de 2022/ Atualizado em maio de 2024
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