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Afroconveniente,
afro conveniência

– Tania Regina Pinto

SEM MORDAÇA

“Afroconveniente, afro conveniência” é um artigo que mergulha na problemática dos “negros de ocasião”, abordando a histórica apropriação cultural e identitária da negritude pela branquitude. O texto discute como, especialmente em contextos eleitorais e de políticas afirmativas, indivíduos brancos têm se autodeclarado como negros ou pardos para acessar benefícios destinados à população negra, evidenciando uma falta de ética e respeito pela luta e pela identidade negra.

Al Jonson atuando em “The Jazz Singer”, o primeiro filme sonorizado com falas a ser produzido nos estúdios Warner, em 1927  (Imagem: Reprodução | Getty Images)

Afroconveniente, afro conveniência. ‘Negros de ocasião’ não é um dado novo quando se olha a história de apropriação de tudo que é negro pela branquitude.

‘Negros de ocasião’ não é um dado novo quando se olha a história de apropriação de tudo que é negro pela branquitude. As Eleições 2022 só confirmam a falta de pudor, a falta de vergonha, da parte privilegiada da sociedade brasileira, sempre pronta a xingar, desqualificar e desumanizar a população preta e, ao mesmo tempo, ficar horas ao sol “para ganhar um bronze” ou nos centros de médicos para engrossar lábios, aumentar bunda… Mas se trata de muito mais do que estética

Tudo começa com a apropriação dos nossos corpos na escravização do povo negro – apropriação da força para o trabalho, para o prazer, para sustentar a preguiça, garantir o entretenimento e alimentar a selvageria.

Apropriação de nossa cultura, de nossas mentes brilhantesroubando a cor de intelectuais, artistas, inventores, profissionais liberais e até orixás, vide Iemanjá e os Ibejis, transformados em Cosme e Damião, bem como histórias da mitologia africana, reproduzidas na Bíblia Sagrada. E são apenas exemplos ilustrativos!

Focando no século XX temos a Lei de Cotas que, em seus dez anos de existência, é marcada pela afroconveniência de autodeclarar-se “pardo” ou “negro”.

A cor da fraude é branca também na Lei de Cotas. São pessoas brancas que têm roubado vagas, que têm mentido em sua autodeclaração racial. Expediente utilizado também por um terço de famílias das classes A e B que solicitaram auxílio emergencial durante a pandemia de covid-19.

Pardo?!

A vida inteira me incomodou a classificação “parda” nos documentos – o termo me soa pejorativo. Mas sempre soube que a expressão indicava uma “variação” na cor da pele de pessoas da raça negra.

Historicamente, o pardo é atribuido ao mestiço de negro ou de indio, com traços fenotípicos distintos dos traços dos brancos. Pardo ou mulato ou moreno escuro… Mas, sempre, reconhecidamente com traços negros ou ameríndios. 

Pelo IBGE pardos e pretos são negros. Mas os que se autodeclararam também querem ser pardos sem ser negros. O caso mais emblemático é o do político baiano ACM Neto, branco até ontem!

ACM Neto (Imagem: Divulgação)
ACM Neto (Imagem: Divulgação)

É indecente que, nos últimos 10 anos, a branquitude reivindique para si tal condição! Não que a atitude seja nova. Inédito é o descaramento.

Já aconteceu nas Eleições de 2018, quando mais de 40 mil candidatos mudaram a cor da pele. 

Nas Eleições de 2020, 22 partidos políticos ignoraram as regras e estavam sujeitos a punições, como multa, devolução de valores ou suspensão do fundo partidário. Mas eles mesmo ajudaram a aprovar no Congresso a anistia, um perdão para as legendas que descumpriram as cotas de mulheres e negros. 

Quem tem a cor do pecado?

ACM Neto é branco, tem a cor do pecado – pelo seu passado e pelo seu presente. Decidiu, no meio da campanha eleitoral 2022, virar o candidato “pardo” ao governo da Bahia. E ele ia bem, em primeiro lugar nas pesquisas, até a questão de sua autodeclaração racial tornar-se pública.

De acordo com o Datafolha, a diferença entre o candidato do PT, Jerônimo Rodrigues, e o ex-prefeito de Salvador, ACM Neto (União Brasil), diminuiu de 21 para 17 pontos percentuais e gerou memes (ideia que espalha rapidamente pela internet) e repercussões inusitadas até na televisão.

Em entrevista à TV Bahia, o candidato falou sobre o assunto, dizendo que é “pardo, mas não negro”. E confrontado com a informação de que o IBGE denomina como negras o conjunto de pessoas pardas e pretas, declarou que o Instituto está errado!

Esclareceça-se: na nossa sociedade, ser pardo não tem nada a ver com ter avó, tio ou pessoa preta ou indígena na família e sim ser reconhecido e tratado como negro e negra socialmente.

No caso de ACM Neto, o tiro saiu pela culatra e a favor do candidato do PT que passou a ser o favorito e levou a eleição para o 2º turno como primeiro colocado.

Mas já no 1º turno, os dados de 2022 da Bahia surpreendem! De uma bancada federal de 39 deputados eleitos, são 21 os autodeclarados negros (pretos ou pardos). Algumas pessoas, inclusive, com trajetória longa na representação parlamentar, passaram repentinamente a se identificar como negras.

Afro oportunistas

A partir de registros da Justiça Federal se constatou que mais de 42 mil postulantes alteraram a raça nas fichas cadastrais para as Eleições de 2020, resultando em uma mudança histórica nos registros

Afro conveniência - black face
Al Jonson atuando em “The Jazz Singer”, o primeiro filme sonorizado com falas a ser produzido nos estúdios Warner, em 1927  (Imagem: Reprodução | Getty Images)

Mas o aumento não acontece por acaso. Além da pressão popular por mais representatividade, o ministro do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, assinou uma liminar para equilibrar o fundo eleitoral entre candidatos negros e brancosobrigando os partidos políticos a dividirem proporcionalmente seus recursos aplicados em campanha e tempo de rádio e TV.

Além disso, até 2030, as candidaturas femininas e negras vitoriosas passaram a contar em dobro na distribuição das verbas. Quer dizer, quanto maior o números de negros e pardos autodeclarados – desde de que sejam brancos -, melhor. Assim se mantém o privilégio branco!

É fraude!!!

Com políticas públicas voltadas a inclusão do povo negro na política institucional, acompanhadas de contrapartida financeira para os partidos políticos, a apropriação se escancara ainda mais, comprometendo inclusive uma aferição real dos avanços da população negra na representatividade parlamentar.

“Não deixe sua cor passar em branco”

(uma das campanhas do movimento negro)

Vinte e oito mil brasileiros se inscreveram para disputar algum cargo nas Eleições de 2 de outubro de 2022. E os candidatos que se autodeclararam pretos ou pardos são quase 50%. Pela primeira vez, uma maioria negra. Será?!

Se autodeclararam brancos menos de 49%. Considerando as mulheres que se autodeclararam pretas, houve um aumento de 37% em relação a 2018. Será?!

O Brasil elegeu um número recorde de negros para a Câmara dos Deputados: 135 parlamentares, a maior representação da história. Será?

Sessenta destas “candidaturas pretas” vitoriosas estão sendo racialmente contestadas. Quer dizer, elas podem transformar uma conquista em perda. A somar-se o fato de a representatividade negra no parlamento ainda estar abaixo dos 54% da população negra, de acordo com os dados do IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.

Sem mentira!

A autodeclaração racial é um marco importante da luta negra por representatividade na política institucional, implementada pelo Tribunal Superior Eleitoral em 2014. Ajuda na reafirmação identitária do povo negro

O Ministério Público orienta os partidos para que seus filiados preencham adequadamente a autodeclaração racial e avisa:

Caso seja constatada fraude, é possível que haja investigação de crime de falsidade ideológica eleitoral.

Mesmo assim, cresce exponencialmente a prática visando desfrutar das políticas afirmativas voltadas a reparar a dívida do Estado com o povo negro. 

Vinte por cento das vagas no serviço público do Executivo Federal, por lei, são reservadas ao povo preto, via autodeclaração. E é aí, também, que acontece a apropriação das conquistas do movimento negro.

Afro conveniência é oportunismo eleitoral puro, elevado à máxima potência! É fraude escandalosa sobre políticas públicas conquistadas a duras penas. É racismo institucional, que opera uma lógica de exclusão racial sem evocar a questão da raça, mas a partir de uma naturalização da ideia de pertencimento a determinados espaços.

A autodeclaração de cor e raça, bastante subjetiva, em mãos erradas pode ser utilizada como estratégia de ampliação ou desvio de recursos, como aconteceu em 2018 com as candidaturas femininas do partido PSL, que serviram de laranja.

“Barrados no baile”

Para conter tal estratégia no plano eleitoral, uma possibilidade é implantar as bancas de heteroidentificação, as mesmas que têm conseguido conter as fraudes nas políticas públicas e de ação afirmativa voltadas à inclusão do povo preto nas universidades e nos serviços públicos. 

Chamadas de Bancas de Heteroidentificação para Verificação de Autodeclaração Étnico-Racial ou, ainda, de procedimento complementar de verificação da autodeclaração, na prática, significa a identificação por terceiros da condição autodeclarada, realizada por uma comissão específica. 

O objetivo é averiguar o fenótipo, as características evidentes do candidato que se autodeclara negro ou pardo para concorrer às vagas reservadas a esta população, com o propósito de conferir a autenticidade da autodeclaração.

Imagem: Reprodução | Alma Preta Jornalismo
Imagem: Reprodução | Alma Preta Jornalismo

No Brasil, a questão racial não tem a ver com genética. Em outras palavras, tem a ver com a pessoa ser reconhecida como negra em sociedade. Na prática, implica ser parado pela polícia, dia sim, dia sim; ser xingado de “macaco”, “de preto sujo”, ser inferiorizado, ter menores oportunidades de emprego, ser impedido de entrar em lugares públicos, ser questionado sobre a propriedade de bens, ter seu conhecimento profissional posto em dúvida… E tudo por ter pele mais escura, cabelo carapinha, lábios grossos, ter jeito de preto.

Outra alternativa é garantir cotas nas estruturas parlamentares no município, no estado e a nível federal e não apenas nas candidaturas.

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Fontes: podcast O Assunto de 6 de outubro de 2022, Notícias.Uol – ACM Neto  

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Negros de Ocasião: A Controvérsia da Afroconveniência na Sociedade Brasileira

O conceito de “Afroconveniência” refere-se à prática de pessoas brancas se autodeclararem como negras ou pardas para tirar proveito de políticas afirmativas ou vantagens sociais destinadas à população negra. Este artigo, inspirado no livro “História Preta das Coisas” de Bárbara Carine Soares Pinheiro, destaca como essa prática não é apenas uma questão estética, mas também uma apropriação profunda da cultura, da história e das lutas negras. A discussão se estende para a Lei de Cotas e como a autodeclaração racial tem sido manipulada por indivíduos brancos em contextos eleitorais e acadêmicos, comprometendo a integridade e os objetivos dessas políticas. O artigo também reflete sobre a necessidade de mecanismos mais rigorosos para garantir a autenticidade das autodeclarações raciais, como as bancas de heteroidentificação, para combater fraudes e respeitar a verdadeira identidade e direitos da população negra.

O que é Afroconveniência? Afroconveniência é a prática de pessoas não negras se autodeclararem como negras ou pardas para acessar benefícios ou vantagens sociais destinadas à população negra, como cotas raciais e políticas afirmativas.

Como a Lei de Cotas é afetada pela Afroconveniência? A Lei de Cotas é afetada pela Afroconveniência quando indivíduos brancos se autodeclaram negros ou pardos para acessar vagas em universidades e concursos públicos destinadas à população negra, comprometendo a eficácia e o propósito dessas políticas de inclusão.

Quais são as implicações da Afroconveniência na sociedade? As implicações incluem a desvalorização da identidade e da luta negra, a perpetuação de desigualdades raciais, e o enfraquecimento de políticas afirmativas destinadas a reparar injustiças históricas contra a população negra.

Como combater a prática da Afroconveniência? Combater a Afroconveniência envolve implementar mecanismos de verificação, como bancas de heteroidentificação, para garantir a autenticidade das autodeclarações raciais, além de promover uma maior conscientização sobre a importância e o respeito à identidade negra.

Qual é a importância de discutir a Afroconveniência? Discutir a Afroconveniência é crucial para entender e combater as formas de apropriação cultural e identitária, garantindo que as políticas afirmativas cumpram seu papel de promover igualdade e justiça para a população negra, respeitando sua identidade e história.