Este ativista nigeriano é pioneiro no gênero musical que impulsionou a música africana para o mercado global a partir dos anos 1970, uma mistura de jazz americano, com pitadas de rock psicodélico, cantos tradicionais e highlife da África Ocidental.
Se estivesse vivo, Fela Kuti completaria 83 anos neste 2021. Ele nasceu na cidade de Abeokuta, estado de Ogun, Nigéria em 1938, no dia 15 de outubro, como Olusegun Oludotun Ransome-Kuti, e ficou mais conhecido como Fela Kuti, ativista dos direitos humanos e da causa negra, multi-instrumentista, compositor e pioneiro do Afrobeat.
Sua criatividade musical derrubou fronteiras continentais. Sua ação política desestabilizou o governo de seu país.
A família de Fela Kuti era de classe média, comparada aos padrões sociais então vigentes na Nigéria, mas sua história já vinha com um carimbo de luta por direitos.
Sua mãe, Funmilayo Ransome-Kuti, era feminista, ativista no movimento anticolonial, com participação ativa na luta pela independência da Nigéria. Seu pai, o reverendo Israel Oludotun Ransome-Kuti, era diretor de escola e militava junto à categoria de professores. E foi o primeiro presidente da União Nigeriana de Professores.
Doutor da Música
No final dos anos 1950, Fela Kuti foi enviado a Londres, Inglaterra, para estudar medicina, como seus irmãos. Mas acabou estudando música no Trinity College of Music.
Ainda na Inglaterra, montou uma banda, a Koola Lobitos, tocando com outros músicos nigerianos que lá viviam. Em 1961, casou-se com a nigeriana Remilekum, com quem teve três filhos – Femi, Yeni e Sola. Três anos depois, retornou à Nigéria, reformulou o Koola Lobitos e trabalhou como produtor de rádio.
Ainda na África, em 1967, Fela Kuti passou um tempo em Gana, queria pensar uma nova direção musical – foi quando chamou sua música de “Afrobeat” pela primeira vez.
Em 1969, em meio à Guerra Civil na Nigéria, fez as malas de novo. Desta vez, o vôo foi Nigéria-Estados Unidos. A banda foi junto e passou a chamar-se Fela-Ransome Kuti and Nigeria 70.
Afrobeat
Nos EUA, Kuti tem contato com o movimento Black Power, o Partido dos Panteras Negras, o trabalho de Malcolm X, Eldridge Cleaver e outros militantes da causa negra. Assim, percebe que há uma grande luta em andamento, com uma gama de organizações espalhadas pelo mundo reivindicando direitos para a população negra. E a luta contra o regime colonial nigeriano também é parte dessas reivindicações.
As várias correntes do pensamento negro, como o Pan-africanismo, somado à mistura de sons de James Brown, inspiram Fela Kuti a criar um estilo musical próprio, que fica mundialmente conhecido como Afrobeat – mistura de jazz americano, com pitadas de rock psicodélico, highlife da África Ocidental e cantos tradicionais africano.
As novidades de Fela Kuti e sua banda são notáveis, como o uso de dois saxofones barítonos, no lugar de apenas um instrumento – uma técnica comum em estilos musicais africanos e que pode ser visto no Funk e Hip Hop.
Fela Kuti tocava saxofone, teclado, trompete, guitarra e bateria.
Seu grupo, por vezes, realizava espetáculos com dois baixistas tocando, ao mesmo tempo, melodias e ritmos entrelaçados. Havia sempre dois ou mais guitarristas tocando no estilo do Oeste Africano elétrico, que dão a estrutura básica no Afrobeat.
A percussão é de estilo africano, vocais e estrutura musical passam por jazz e seções de metais funk.
O “endless groove” também é usado, com um ritmo básico com baterias, muted guittar e baixo. Alguns elementos presentes na música de Fela são chamados de call-and-response (chamada e resposta) com o coro.
A música de Fela Kuti quase sempre tem mais de dez minutos , algumas atingem vinte, trinta minutos, a maioria em línguas nigerianas e Yoruba.
Nos shows, ele se recusava a tocar músicas após tê-las gravado – sua atuação de palco, aliás, era definida por ele mesmo como “um jogo espiritual underground” e seus concertos eram tidos como bárbaros e selvagens.
República independente
O envolvimento de Fela Kuti com o movimento negro americano o colocou, obviamente, no foco do serviço de inteligência dos EUA, que tinha como um dos principais alvos, na época, qualquer militante do Partido dos Panteras Negras.
Assim, não demorou que o Serviço de Naturalização e Imigração, sob o pretexto da ausência de “licença de trabalho”, o “convidasse” a sair do país. Assim, junto com sua banda, Fela gravou às pressas o que mais tarde viria a ser lançado como The ’69 Los Angeles Sessions.
De volta à Nigéria, na bagagem, a cabeça cheia de centenas de projetos, entre eles a República de Kalakuta, o mais famoso de todos – uma casa e estúdio de gravação para os ligados à banda que possuía, ainda, uma clínica de saúde gratuita e facilitava a gravação de discos de músicos independentes.
Fela Kuti, mais tarde, declarou a República de Kalakuta independente do Estado da Nigéria.
Além da República, Fela Kuti montou uma boate no Empire Hotel, chamado de Afro-Spot e, depois, Afrika Shrine, onde cantava regularmente.
Kuti mudou seu nome do meio (Ransome) por considerá-lo nome de escravo, e adotou “Anikulapo”, que significa “aquele que carrega a morte no bolso”.
As músicas foram ficando mais e mais politizadas e ele se tornou bastante popular entre os nigerianos e africanos em geral. Isso porque ele cantava em Pidgin (uma versão simplificada de uma linguagem que se desenvolve como meio de comunicação entre dois ou mais grupos que não têm um idioma em comum), de forma que sua música pudesse ser apreciada por indivíduos de toda a África, onde as línguas faladas são muito diversas e numerosas.
Povo x Poder
À medida que a sua música se tornava popular em todo continente africano, aumentava o ódio do governo nigeriano e os ataques à República Kalakuta.
Em 1974, a polícia chegou com um mandado de busca e um cigarro de maconha para prendê-lo, acusado de uso de drogas. Ele percebeu a estratégia e engoliu o cigarro. Em resposta, a Polícia levou-o em custódia para examinar suas fezes. Com ajuda de amigos, Fela entregou à polícia fezes de outra pessoa e foi liberado. Todo o ocorrido foi descrito em seu lançamento Expensive Shit.
Em 1977, Kuti e Afrika 70 (novo nome de sua banda) lançaram o sucesso Zombie, um ataque mordaz aos soldados nigerianos, usando a metáfora “zumbi” para descrever os métodos das forças armadas nigerianas. O álbum foi um sucesso esmagador entre o público e enfureceu o governo, dando início a um cruel ataque à República Kalakuta.
Mais de mil soldados invadiram a República. Fela Kuti foi espancado e sua mãe, idosa, arremessada de uma janela e assassinada. Fela enviou o caixão de sua mãe para o quartel principal em Lagos, como resposta ao ataque, e escreveu duas canções: Coffin for Head of State e Unknown Soldier.
A República Kalakuta foi incendiada e o estúdio, instrumentos e gravações originais de Kuti destruídos.
27 esposas e a Presidência
Todos se mudaram para o Crossroads Hotel. E, no mesmo 1978, para marcar o aniversário do ataque na República Kalakuta, Fela casou-se com vinte e sete mulheres, muitas das quais dançarinas e vocalistas do grupo.
1978 foi marcado também por dois notórios espetáculos: um festival organizado em Gana, que ficou conhecido pela série de distúrbios desencadeados durante a execução da música Zombie, que lhe valeu a proibição de voltar ao país, e o Berlin Jazz Festival, após o qual a maioria dos músicos o abandonou, devido a rumores de que planejava utilizar a totalidade dos lucros para financiar sua campanha presidencial.
A obstinação em participar da vida política fez com que Fela Kuti criasse seu próprio partido político, o Movimento do Povo. Em 1979, ele se candidatou a presidente nas primeiras eleições da Nigéria após mais de uma década – sua candidatura foi recusada.
A essa época, Fela criou uma nova banda chamada “Egypt 80” e continuou a gravar álbuns, viajar pelo país, enfurecer autoridades políticas e fazer sucesso, como aconteceu com o International Thief Thief.
Preso outra vez em 1984, atacado pelo governo militar, teve seu caso acompanhado por vários grupos de direitos humanos e, após 20 meses de cárcere , foi libertado pelo general Ibrahim Babangida.
Livre, Fela divorciou-se de suas doze esposas restantes dizendo:
“Casamento traz ciúme e egoísmo”.
E seguiu gravando discos e fazendo turnês nos Estados Unidos e na Europa, sem abandonar a atuação política.
“Fela, Esta Vida Puta”
Fela Kuti transformou-se em musical com seu nome – uma adaptação da sua história para a Broadway, que ganhou três prêmios Tony, considerado o Oscar do teatro – e no livro “Fela, Esta Vida Puta”, sua biografia oficial, escrita em 1982 pelo jornalista cubano Carlos Moore.
O seu legado principal, o Afrobeat, permanece, como na pegada africana muito marcante em Loud!, álbum de Rihanna, e na cadência que Beyoncé trouxe em 4, para citar apenas dois exemplos.
De suas ações, a apresentação, em 1986, no Giants Stadium, em Nova Jérsei, como parte do show Conspiração da Esperança da Anistia Internacional, e Fela & Egypt 80, famoso álbum antiapartheid, Beasts of No Nation, de 1980, que exibe em sua capa o presidente dos Estados Unidos Ronald Reagan, a primeira-ministra britânica Margaret Thatcher e o primeiro-ministro da África do Sul, P.W. Botha, com os dentes caninos pingando sangue.
Fela Kuti morreu em 1997, em consequência da aids. O instrumentista múltiplo acreditava que a música era algo místico e isso fazia com que muitos o considerassem um profeta.
A família
Fela Kuti era primo do escritor Wole Soyinka, primeiro africano a ganhar um Prêmio Nobel de Literatura.
Femi Kuti é seu filho mais conhecido e, com certeza, o membro do clã que mais vezes tocou no Brasil, desde a primeira vez no extinto festival Free Jazz, em 2000, até as apresentações mais recentes, em 2010 e 2013.
Escrito em novembro de 2014
Este comentário foi removido pelo autor.
Muito legal poder conhecer mais sobre a vida e obra do Fela Kuti
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Adorei o documentário sobre a vida do Fela, emocionante do começo ao fim, ri, chorei, amei. ❤️🌟🌞
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