Primeiro grande artista do Brasil, reconhecido por sua arte pioneira no uso da pedra sabão como matéria-prima, Aleijadinho paga o preço de ter nascido do ventre de uma escravizada africana e, ao mesmo tempo, serve como símbolo da democracia racial , do sincretismo cultural e étnico brasileiro.
Você já ouviu falar de Aleijadinho, o gênio da arte barroca brasileira, cuja história é tão fascinante quanto sua obra? Nascido de uma escravizada africana, Aleijadinho se tornou um símbolo de resistência e talento, deixando um legado que transcende a arte e toca as raízes do sincretismo cultural brasileiro. Hoje, vamos mergulhar na vida deste artista extraordinário, explorando como sua cor e genialidade foram, por vezes, ofuscadas, mas nunca apagadas.
Momento singular na evolução da arte brasileira, ponto de confluência das várias raízes sociais, étnicas, artísticas e culturais que fundaram a nação, Aleijadinho é o primeiro grande artista genuinamente nacional.
O reconhecimento de sua arte extrapola fronteiras. O jornalista e investidor brasileiro Décio Bazin o louva como o “Michelangelo brasileiro“, o que fez a Madona. Para o escritor mexicano Carlos Fuentes, ele é o maior “poeta” da América colonial. O romancista cubano Lezama Lima o chama de “a culminação do Barroco americano”.
E sobram elogios que o destacam na história da arte deste hemisfério em todos os tempos.
Seu prestígio junto à crítica especializada também ecoa na conta bancária dos colecionadores de arte – sua obra é altamente valorizada no mercado – e se reflete no meio do povo.
Um público recorde de 968.577 visitantes esteve presente na exposição Aleijadinho e seu Tempo – Fé, Engenho e Arte, de 2007, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, ultrapassando números da Bienal Internacional de São Paulo (535 mil) e da exposição Picasso Na Oca (905 mil).
O cara
Um homem negro, mulato, mestiço, bastardo, deformado, nascido de ventre escravo, que não pode assinar muitas obras nem registros de pagamentos pelos seus trabalhos prestados por conta da cor da sua pele.
Um homem negro, mulato, mestiço, bastardo, deformado, nascido de ventre escravo, viveu numa sociedade preconceituosa, não teve direito à herança de seu pai por não ter nascido das entranhas da mesma mãe que seus quatro irmãos, morreu pobre, vivendo de favor para ser enaltecido em nome do pai, do filho e do espírito santo..
Importante escultor, entalhador e arquiteto do Brasil colonial, Aleijadinho é um artista forjado na religiosidade – produziu uma série de encomendas de arte sacra encomendadas pela igreja -, sem abrir mão da sensualidade, da criatividade, de seu entendimento de céu e terra.
Religiosidade pagã
No Chafariz do Alto da Cruz de Vila Rica, Aleijadinho esculpe no topo um busto feminino pagão. O ano é 1761 e registra a primeira escultura pagã do período.
Habitualmente se utilizava, como destaque, uma cruz no chafariz na posição onde Aleijadinho colocou o busto.
Bustos, aliás, guardam influências do pensamento iluminista, que vigorava na Europa. Com características humanistas. O busto criado por Aleijadinho antecipa o movimento rococó demonstrando o seu traço de inovador.
Para o artista, a samaritana para quem Jesus pede água também tinha seios fartos à mostra por conta de um decote generoso, como revela o Chafariz da Samaritana, originalmente instalado em frente a um Palácio Episcopal.
Os doze profetas do Velho Testamento, pelas mãos de Aleijadinho, têm características únicas. Esculpidos em pedra sabão, entre 1796 e 1805, são presenças marcantes em na cidade mineira de Congonhas do Campo não só pelo tamanho de cada escultura, mas também pelos cabelos cacheados, cobertos por turbantes, e os olhos puxados, meio orientais.
O conjunto arquitetônico do Santuário do Bom Jesus de Matosinho, em Congonhas, é considerado Patrimônio Mundial da Unesco.
Arte pública
Esse diálogo entre a escultura e a sua função simbólica no lugar onde se encontra é uma das características mais importantes das criações do escultor.
Destaque-se que os chafarizes públicos, além de serem um espaço para se expor arte, naquela ocasião tinham uma função social importante: poucas eram as pessoas que tinham água corrente em casa.
Outro ponto importante a ser salientado é a condição da arte: como os chafarizes, de utilidade pública também. Nem o criador reivindicava a propriedade intelectual sobre o que escrevia, esculpia ou pintava nem o povo apropriava-se da arte.
Nos tempos de Aleijadinho, a arte pertencia a todos, era dialógica. A voz do artista – um conceito que não existia como é entendido hoje – não prevalecia sobre as demais.
Pioneiro da pedra sabão
Aleijadinho é o primeiro artista regional a usar a pedra-sabão como matéria-prima das suas esculturas. Até então a pedra-sabão era usada principalmente para substituir a cerâmica e criar peças simples como vasilhames ou panelas. Tanto que, naquela época, o material era conhecido popularmente como “pedra de panela” ou “pedra-panela”.
Um dos grandes diferenciais de Aleijadinho, se comparado com outros artistas contemporâneos, para além do material que usava, era o seu cuidado em trabalhar a anatomia de uma forma almejando a perfeição.
Por vezes fazia deformações intencionais para enfatizar um movimento, uma expressão. Esse rigor é uma das características mais importantes da sua obra.
Seus anjos, para cumprir suas tarefas, muitas vezes pesadas, têm braços musculosos.
Vida e morte
Aleijadinho morre em 18 de novembro de 1814, aos 76 anos de idade, e é a sua certidão de óbito que conta do início de sua vida como Antonio Francisco Lisboa. Filho natural de um “respeitável mestre de obras e arquiteto português”, Manuel Francisco Lisboa, “e de sua escrava africana, Isabel”.
Constada na certidão de batismo – invocada na primeira biografia escrita sobre o artista -, que Aleijadinho, nascido escravo, fora batizado em 29 de agosto de 1730, na então chamada Vila Rica, atual Ouro Preto (MG), sendo alforriado na ocasião, por seu pai e senhor.
Na referida certidão, não consta a data de nascimento da criança.
História duvidosa
A biografia de Aleijadinho é cheia de lacunas . A principal fonte documental sobre sua história é uma nota biográfica escrita em 1858 por Rodrigo José Ferreira Bretas, baseada – pelo que consta – em documentos e depoimentos de pessoas que conheceram o artista.
Quase nada ficou registrado sobre sua vida pessoal, a não ser que gostava de comer bem, desfrutar os prazeres da vida e das danças populares (?).
Bretas nada escreve sobre suas ideias artísticas, sociais ou políticas.
Sobre trabalho e dinheiro registra:
“Trabalhava sempre sob o regime da encomenda ganhando meia oitava de ouro por dia, mas não acumulou fortuna… Era descuidado com o dinheiro, sendo roubado várias vezes… Por outro lado, teria feito repetidas doações aos pobres”.
Vida e obra
A trajetória de Aleijadinho é reconstituída principalmente através das obras que deixou – existem mais de quatrocentas criações associadas ao seu nome sem qualquer comprovação documental, baseadas em critérios de semelhança estilística com peças documentadas.
É todo este acervo que o qualifica, na opinião da grande parte da crítica nacional, como o maior expoente da arte colonial no Brasil e, para alguns estudiosos estrangeiros, o maior nome do Barroco americano, lugar destacado na história da arte ocidental.
A primeira notícia oficial sobre Aleijadinho aparece em 1790 em memorando escrito pelo capitão Joaquim José da Silva, cumprindo ordem régia de 20 de julho de 1782 que determinava se registrassem em livro oficial os acontecimentos notáveis, de que houvesse notícia certa, ocorridos desde a fundação da Capitania de Minas Gerais.
O memorando descrevia as obras mais notáveis do artista e algumas indicações biográficas – este documento se perdeu.
As suas peças foram produzidas para as cidades mineiras de Ouro Preto, Tiradentes, Mariana, Congonhas do Campo, Barão de Cocais, Sabará, Felixlândia, Matosinhos, Caeté e São João del Rei.
A família
Em 1738, seu pai casa com Maria Antônia de São Pedro, portuguesa, e com ela dá quatro meios-irmãos a Aleijadinho. E é nesta família que o artista cresce e aprende sua arte.
O conhecimento que tem de desenho, arquitetura , entalhe e escultura é herança da família paterna, incluindo tios e padrinho. No internato do Seminário dos Franciscanos Donatos do Hospício da Terra Santa, em Ouro Preto, onde trabalha com seu pai entre 1750 até 1759, aprende Gramática, Latim, Matemática e Religião.
Aleijadinho viveu com Narcisa, identificada como “mulata” nos textos, e teve um filho, artesão como ele, a quem deu o nome de seu pai.
Sua nora foi quem cuidou dele no fim da vida.
Carreira solo
O primeiro projeto individual de Aleijadinho, realizado em 1752, foi um chafariz para o pátio do Palácio dos Governadores, situado em Ouro Preto. O Palácio dos Governadores foi erguido no local onde costumava funcionar a Casa de Fundição e Moeda. Na ocasião, ele tinha 14 anos e o contrato foi assinado pelo seu pai.
Ao ir Rio de Janeiro acompanhar um transporte de ouro e diamantes para Lisboa, Aleijadinho se deixa influenciar pelos artistas locais e, dois anos depois, em 1758, esculpe um chafariz de pedra-sabão para o Hospício da Terra Santa, lançando-se como profissional autônomo. Este chafariz, até hoje, é considerado a primeira obra do estilo barroco tardio.
Por conta da cor da sua pele, o artista segue sendo obrigado, muitas vezes, a aceitar contratos como artesão diarista e não como mestre.
Este detalhe – que não é pequeno – impede que seu trabalho, da década de 1760 até próximo da sua morte, tenha documentação comprobatória e que, com a morte de seu pai, em 1767, seja contemplado no testamento.
Um ano depois, em 1768, ele se alista no Regimento da Infantaria dos Homens Pardos de Ouro Preto, onde permanece três anos, mas sem abandonar sua arte.
Passado o tempo da farda, organiza sua oficina, como manda a lei, e a mantém aberta até 1809.
“Mito Aleijadinho”
“Obscurece-se sua formação para fixar a ideia do gênio inculto; realça-se sua condição de mulato para dar relevo às suas realizações no seio de uma comunidade escravocrata; apaga-se por completo a natureza coletiva do trabalho artístico para que o indivíduo assuma uma feição demoníaca; amplia-se o efeito da doença para que fique nítido o esforço sobre-humano de sua obra e para que o belo ganhe realce na moldura da lepra.”
No parágrafo acima, a estratégia para transformar Aleijadinho no símbolo do sincretismo cultural e étnico do Brasil, ao transformar a herança lusa em algo original, definindo um novo sentido de brasilidade. Assim os modernistas celebravam o artista no início do século XX.
E um dos elementos mais ativos na construção do “mito Aleijadinho” diz respeito à busca implacável de sinais confirmadores de sua originalidade, de sua “unicidade” no panorama da arte brasileira, representando um acontecimento tão especial que transcenderia até mesmo o estilo de sua época.
Só que Aleijadinho era e é Aleijadinho, misto de criador e criatura , com reflexos genuínos. E é assim que este pioneiro negro entra para história povo preto, com sua obra autobiográfica, que fala por si só.
Na atualidade, já se reconhece Aleijadinho como artista singular, fundido à sua obra e à frente de seu tempo, um pré-romântico genial, sem limites nem amarras.
Referência
Aleijadinho trabalha no período de transição da Arte Barroca para o Rococó, mais cheia de detalhes. Sua obra reflete características de ambos – o que é uma dificuldade a mais a somar-se ao fato de os artistas da época não assinarem seus trabalhos e pela escassez de fontes documentais – em geral, contratos e recibos acordados entre as irmandades religiosas e os artistas.
O que ninguém duvida é que Aleijadinho, com seu estilo, cria escola e é seguido por numerosos escultores mineiros, copiado até os dias atuais.
Destaque-se, pelo olhar do historiador Sylvio Carvalho de Vasconcellos, um dos precursores da arquitetura modernista brasileira em Minas Gerais, alguns traços:
- Posicionamentos dos pés em ângulo próximo do reto;
- Panejamentos com dobras agudas;
- Proporções quadrangulares das mãos e unhas, com o polegar recuado e alongado e indicador e mínimo afastados, anular e médio unidos de igual comprimento; nas figuras femininas os dedos se afunilam e ondulam, elevando-se em seus terços médios;
- Queixo dividido por uma cova;
- Boca entreaberta e lábios pouco carnudos, mas bem desenhados;
- Nariz afilado e proeminente, narinas profundas e marcadas;
- Olhos rasgados de formato amendoado, com lacrimais acentuados e pupilas planas; arcadas superciliares alteadas e unidas em “V” na altura do nariz;
- Bigodes nascendo das narinas, afastados dos lábios e fundidos com a barba; esta é recuada na face e se apresenta bipartida em dois rolos;
- Braços curtos, um tanto rígidos, especialmente nos relevos;
- Cabelos estilizados, modelados como rolos sinuosos e estriados, terminados em volutas e com duas mechas sobre a testa;
- Expressividade acentuada, olhar penetrante.
O nome artístico
Antonio Francisco Lisboa dá lugar a Aleijadinho a partir de 1777, quando começam a surgir os sinais de uma doença degenerativa – a suspeita é de que era lepra.
O corpo progressivamente deforma. Ele perde todos os dedos dos pés, vários dedos das mãos, restando-lhe apenas o indicador e o polegar. Vê-se obrigado a ter instrumentos atados às suas mãos pelos escravos para poder esculpir. Anda de joelhos.
O corpo se atrofia, mas ele segue criando, trabalhando na construção de igrejas, capelas e altares.
O rosto também é atingido e – registra o biógrafo Bretas – o artista tem “plena consciência de seu aspecto terrível e desenvolve um humor perenemente revoltado, colérico e desconfiado”, imaginando que mesmo os elogios que recebe são escárnios dissimulados.
Para ocultar sua deformidade, veste roupas amplas e folgadas, usa grandes chapéus e passa a trabalhar à noite, em espaços fechados.
A eternidade
Nos seus últimos dois anos de vida, quando já não pode trabalhar e passa a maior parte do tempo acamado, o artista tem parte de seu corpo coberto de chagas e não enxerga.
Seu corpo está na Matriz de Antônio Dias, junto ao altar de Nossa Senhora da Boa Morte.
Em Ouro Preto, existe um museu especialmente dedicado à preservação de sua memória, o Museu Aleijadinho. Na mesma cidade está a Igreja de São Francisco de Assis, uma das suas maiores criações.
E uma curiosidade: além de assinar o projeto da igreja, o artista também é responsável pelo altar-mor, pelo retábulo e pela fonte – um dos poucos exemplos de construção católica onde um mesmo artista é responsável por este conjunto da obra.
A cor roubada
Não é todo mundo que sabe da pele preta de Aleijadinho. O cinema e o televisão muito contribuem para o apagamento da cor, para o roubo da cor deste pioneiro negro.
Aleijadinho foi descrito em sua primeira biografia nos seguintes termos:
“Era pardo-escuro, tinha voz forte, a fala arrebatada, e o gênio agastado: a estatura era baixa, o corpo cheio e mal configurado, o rosto e a cabeça redondos, e testa volumosa, o cabelo preto e anelado, o da barba cerrado e basto, o nariz regular e algum tanto pontiagudo, os beiços grossos, as orelhas grandes, e o pescoço curto”.
Mas o “pardo-escuro” virou branco, de olhos claros, nas telas, a partir dos atores escolhidos para viverem o personagem: Geraldo Del Rey no filme Cristo na Lama, de 1968; e Stênio Garcia no Caso Especial da TV Globo, de 1977.
A exceção fica por conta do filme Aleijadinho – Paixão, Glória e Suplício, de 2003, onde o artista é interpretado pelo ator Maurício Gonçalves.
O Aleijadinho é o título da primeira cinebiografia sobre o artista, dirigida por Guelfo Andaló, em 1915, e do documentário dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, em 1978.
Você também vai gostar de conhecer a história de Tebas, arquiteo pioneiro em São Paulo.
Aleijadinho: O Legado de um Artista Negro na Arte Barroca Brasileira
Aleijadinho, ou Antônio Francisco Lisboa, é reconhecido como o primeiro grande artista brasileiro, notável por sua inovação no uso da pedra-sabão e por suas contribuições fundamentais à arte barroca no Brasil. Apesar de enfrentar o estigma de sua origem africana e as limitações físicas impostas por uma doença degenerativa, Aleijadinho deixou um legado indelével na história da arte brasileira. Suas obras, que incluem esculturas, igrejas e chafarizes, são celebradas por sua originalidade e profundidade espiritual, refletindo a complexidade da identidade cultural brasileira. A vida de Aleijadinho, marcada pela luta contra a discriminação racial e pela dedicação à sua arte, é um testemunho de sua genialidade e resiliência.
Quem foi Aleijadinho? Aleijadinho, nascido Antônio Francisco Lisboa, foi um escultor, entalhador e arquiteto do Brasil colonial, considerado o primeiro grande artista brasileiro, notável por seu trabalho pioneiro com pedra-sabão.
Qual a importância de Aleijadinho para a arte brasileira? Aleijadinho é fundamental para a arte brasileira por ser um dos principais representantes do Barroco no país, com obras que mesclam influências africanas, europeias e indígenas, refletindo a diversidade cultural do Brasil.
Como Aleijadinho superou as barreiras raciais em sua carreira? Apesar de enfrentar preconceitos por sua origem africana, Aleijadinho alcançou reconhecimento por seu talento excepcional e inovação artística, tornando-se um símbolo de superação e genialidade.
Quais são algumas das obras mais famosas de Aleijadinho? Entre suas obras mais famosas estão os “Doze Profetas” esculpidos em pedra-sabão e o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas, ambos reconhecidos por sua expressividade e técnica.
Como Aleijadinho influenciou gerações futuras de artistas? Aleijadinho deixou um legado que transcendeu gerações, inspirando artistas a explorar a riqueza cultural e a diversidade do Brasil em suas próprias obras, além de ser um pioneiro na utilização da pedra-sabão como material artístico.
Pingback: Afroconveniente, afro conveniência
Pingback: Educar africano