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A cor sempre roubada

– Tania Regina Pinto

Nós, negros, sequestrados, traficados, escravizados, trazemos a marca do assalto, do furto, do saque, da espoliação – inclusive da nossa pele preta – ao longo dos séculos e as eleições municipais 2020 vêm confirmar os fatos históricos, com candidatos mudando a cor da pele.

“Somos enganados desde os livros de escola…
Os antepassados de nossas crianças não ergueram as pirâmides da Núbia, do Egito…
Iemanjá não é uma deusa negra iorubá e, sim, a sereia grega de Ulisses.
Como pode alvorecer um país que insiste em negar-se a si mesmo, sem que haja, com urgência, transgressores em campanha abolicionista para desacorrentar a verdade?
o Museu do Negro, os aparelhos de tortura, mas onde foram parar a farda de gala de Machado de Assis, a de João Candido, a régua de André Rebouças, a pena de Castro Alves, a batuta de Chiquinha, a bengala de Patrocínio, o colar de Dandara, a obra de Valentin, o barroco do padre José Maurício?”

Este é um pequeno trecho de uma carta aberta do cantor, compositor e guitarrista Altay Veloso que percorre as redes sociais. E se refere à cor roubada dos negros importantes da história do Brasil.

Nos pintaram de branco!!! E muitos fazem isso, ainda, quando dizem: “Ah, você não é negro…”. Ou nos chamam de “morenos”, entre outras expressões para nos tornar quem não somos.

O advento da máquina fotográfica, da foto preto-e-branco, no século XX, ajudou bastante neste processo. Mas, antes disso, na pintura, na escultura, muito se fez para esconder, se tornar invisível, para se roubar, a cor da nossa pele, a nossa origem, o nosso ponto de partida.

Pioneiros negros

Como lembra Altay Veloso, Iemanjá foi transformada em sereia grega.

Só que ela, como as pioneiras Chiquinha Gonzaga, primeira maestrina a reger uma orquestra e primeira mulher a compor uma música de Carnaval, e Maria Firmina dos Reis, que publicou Úrsula, em 1859, primeira escritora a publicar um romance no Brasil, eram negras.

As mãos que seguraram as penas de Lima Barreto – autor de O Triste Fim de Policarpo Quaresma -, Machado de Assis, um dos mais relevantes literato da língua portuguesa, e CastroAlves, são negras também.

Negras, ainda, as mãos dos irmãos André, Antonio e José Rebouças, que projetaram e executaram, em 1885, uma das mais ousadas obras de engenharia mundial, a estrada de ferro que liga as cidades de Curitiba a Paranaguá, de 110 km de extensão, unindo as regiões produtora do Paraná ao centro-oeste do país.

Os 110 km da ferrovia incluem 420 obras de engenharia, entre elas: 13 túneis, 30 pontes, seis estações e vários viadutos de grande vão. Destaque para a Ponte São João, com 55 metros de altura, e o Viaduto Carvalho, ligado ao Túnel do Rochedo, assentado sobre cinco pilares de alvenaria na encosta da rocha.  

Quem identifica a negritude de Nilo Peçanha, patrono da educação profissional, na galeria de fotos de presidentes da República no Palácio do Planalto? Nilo Peçanha assumiu a Presidência com a morte de Afonso Pena, em 14 de junho de 1909 e governou até 15 de novembro de 1910.

E nos nossos museus estas histórias não são realçadas – em muitos, nem aparecem.

O destaque é, sempre, para a dor imposta aos negros, para a ideia de subalternidade, enão de luta, de força, coragem, enfrentamento.

O destaque é, sempre, para a dor imposta aos negros, para a ideia de subalternidade, enão de luta, de força, coragem, enfrentamento.

Por isso, temos de falar da guerreira Dandara, deJoão Candido, almirante negro da Marinha de Guerra do Brasil, líder da Revolta da Chibata que, como o nome indica, foi um motim contra o uso de chibatadas para punir marinheiros negros em 1910 – não, por acaso, o Brasil foi o último país do Ocidente a abrir mão da escravidão, oficialmente.

Temos de falar de todas as formas de luta que nós negros lançamos mão, diuturnamente para existir, o que inclui reverenciar o engenheiro negro Teodoro Sampaio. Ele foi fundamental para a fundação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo e da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP). E honrar, também, o padre José Maurício, famoso por sua produção de música sacra; o jornalista e farmacêutico José do Patrocínio, e o pintor, escultor e professor Rubem Valentim, com sua linguagem negra nas artes plásticas.

Emblemas – Rubem Valentim

Ver e ser visto

Representatividade importa. Importa muito. Nos faz entrar em contato com nossas possibilidades de vida, para além dos esportes e da música, áreas em que também somos imbatíveis.

Como todo ser humano integral, nós negros e negras, podemos tudo. E repetimos esta verdade, exaustivamente, a nossas crianças, adolescentes, jovens, adultos, contemporâneos. Mas são muitos os nossos inimigos, conscientes e inconscientes.

Na mídia

Nossa primeira linguagem é a visual, antes de falarmos “papai”, “mamãe”, “gugu-dada”, somos expostos a imagens, cada vez mais e mais e mais. E as mídias têm uma visão muito limitada do que é ser negro e, só com muita conversa, debate, luta por legislação inclusiva, se direciona para refletir o povo brasileiro em sua inteireza – a população negra brasileira é maior que a população branca.

Mesmo assim, a presença de pretos e pretas na tela da tv, nas imagens de  jornais e revistas, tem espaços predeterminados, quase sempre. Foi por força da lei que, no século passado, as agências de publicidade, passaram a colocar pessoas de pela negra para divulgar seus produtos. Teve publicitário, na época, que esbravejou:

“Negro não consome. Não compra fralda descartável. Por isso, não aparece nos anúncios”.

Esta inverdade já foi desmascarada. Mas continuamos a parte da população menos representada proporcionalmente. Muitos de nós, entretanto, já aprendemos a força de um boicote, a buscar funcionários negros quando vamos às compras, a chamar atenção das emissoras de TV para a ausência de profissionais negros no jornalismo. TV Tribuna?

Eu, na discriminação positiva, escolho vendedores e vendedoras negras para indicar uma verdade que as grandes corporações já descobriram: diversidade faz bem para a economia

No disfarce

A maioria das pessoas ama televisão. Mas a tv pode ser muito cruel com o povo negro, a rainha dos que eram “baixinhos” no século passado que o digam.

Xuxa, por décadas, referência para as crianças de todas as raças, sempre recheou seu palco de garotas loiras, de cabelos longos. Essas assistentes de palco eram chamadas “paquitas”.  E o movimento negro denunciava…

Depois de muito disfarçar, ganhou um pequeno espaço Adriana Bombom (foto). Só que ela nunca fez parte do time oficial das paquitas. No palco, sua imagem era hiper sexualizada, o momento exótico do programa.

Problema nenhum se as crianças negras, como todas as crianças da época, não sonhassem em ser paquitas, pelo menos, nos eventos escolares.  O vídeo Cores e Botas, de Juliana Vicente, retrata bem a dor de ser ridicularizada, descartada, pelas coleguinhas e pelas professoras, por ter a cor errada (?!).

Historicamente, também, o domingo com Fausto Silva sempre foi composto por uma maioria de brancas bailarinas. Foi preciso muito tempo – o programa está desde 1989 – para isso mudar. Desde 2019, é possível ver um número significativo de negras no balé. Mas continua a ser um desafio conter o racismo do apresentador.

Black Face

Em 2013, a Rede Globo, pode-se dizer, reeditou uma das maneiras mais racistas de se fazer arte, com a produção da novela Segundo Sol, rodada na Bahia, com um elenco bronzeado, apesar de o estado ter 76% da sua população autodeclarada negra.

Esta estratégia de se tentar dar cor de negro a pessoas brancas foi utilizada em 1915, nos Estados Unidos, no filme considerado um grande marco do cinema por seu preciosismo técnico, intitulado O Nascimento de Uma Nação. A narrativa glorifica a Ku Klux Klan e opta pelo infame black face, utilizando-se de atores brancos pintados de preto, para não contratar atores negros.

Tanto na época de O Nascimento, como de Segundo Sol, houve grita geral, com uma vantagem para a militância do século XXI: uma ação no Facebook, do Trick Tudo, reuniu 53 artistas negros que já atuaram em novelas da Globo em um álbum de fotos intitulado Eu poderia estar na novela Segundo Sol, gerando 19 mil compartilhamentos.

Apropriação indevida

E sem sair de Salvador, vale refletir sobre as palavras da youtuber Patrícia Ramos, no seu Um abadá a cada dia, do último 9 de junho.

“Tô cansada de não poder ser a protagonista da novela das 8, que se passa numa cidade que tem a maior população negra fora do continente africano… Tô cansada. Mimimi porque não é você que toma. Tá reclamando de que, a maioria dos cantores da Bahia é tudo branco. E você acha que isso é que? Como se isso não fosse mais uma das facetas do racismo, clarear para ser aceito. Você acha que por que a cor da cidade de Salvador é Daniela Mercury? Você acha que não tem cantor preto? Quando mexe com os privilégios, todo mundo fica nervoso…”

Esta é mais uma apropriação indevida, duas na verdade.

O Carnaval – festa negra, de rua, espontânea – ganhou passarela, arquibancada, cordões, artistas e  foliões de pele clara com direito a camarote.

Lembro de uma conversa com o pessoal da velha guarda do Rio de Janeiro, que se alegrou com a chegada da outra metade da população brasileira no samba. Afinal, a polícia ia deixar de pegar no nosso pé. Mas o que sobrou? Observem quem está à frente das escolas de samba, quem desfila, quem apropriou-se da festa nos quatro cantos do país.

É. Nossa cor é escondida, roubada, indevidamente apropriada, desfrutada, sempre. Isso é feio, cruel, desumano!

Cotas surrupiadas

Depois de anos e anos de luta do movimento negro, finalmente, as cotas transformaram-se em política pública. Não só para caminharmos para a redução da desigualdade racial, mas como reparação ao mal impingido ao povo preto.

Qual a nossa surpresa?! Tem gente que acha que não temos direito, que 350 anos de trabalhos forçados, tendo por salário o aço quente na pele, a chibata, ou luta na Guerra do Paraguai, em nome da pátria, foram só ‘força das circunstâncias’. Tem também quem se engana afirmando não ter nada com isso. Afinal, nunca teve escravos!!!

O que vivemos hoje, prós e contras, é herança de quem veio antes, pais, mães, avôs, avós, bisavós, trisavós, tataravós… Assim como nós negros, até hoje pagamos com a vida por ter tido nossos ancestrais escravizados, os herdeiros de quem nos escravizou e enriqueceu com isso têm de assumir a responsabilidade pelo modo como tudo se deu.

Sempre me surpreendo ao ver como as pessoas lutam por suas heranças, mesmo sem nunca terem trabalhado para conquistá-las.

Aí, a loirinha, com sua pele alva, seus olhos verdes, é aprovada no curso de Química da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) pelo sistema de cotas. E ela diz  se “considerar parda” e ser de uma família de negros. Pode ser? Pode. Mas sobram denúncias de que não é bem assim.

Só na UFRJ já foram 280 as denúncias de possíveis fraudes desde a implantação do sistema de cotas.

Segundo a universidade, dos 186  estudantes questionados, 96 – praticamente a metade – foram considerados aptos a ocuparem as vagas reservadas para pretos, pardos e indígenas.

No curso de Medicina da Unicamp, alunos brancos, já avançados contavam piadas para colegas sobre o fato de terem passado no vestibular se valendo das cotas. A universidade já desligou nove deles.

Na Universidade Estadual da Bahia, um aluno de cabelo ruivo e sardas entrou no curso de Medicina através das cotas. A USP investiga 41 denúncias e a Unesp expulsou 30 alunos que tiveram as autodeclarações consideradas inválidas.

Claro, as denúncias são resultado de uma grande mobilização do movimento negro para identificar e combater este tipo de fraude. Mas este não é o papel do movimento negro, pelo menos, não deveria ser. Só que não dá para baixar a guarda.

Mudança de cor 2020

Mais de 42 mil candidatos de todo o país que disputarão as eleições deste ano mudaram a declaração de cor e raça que deram em 2016, de acordo com registros disponibilizados pela Justiça Eleitoral.

O número equivale a 27% dos cerca de 154 mil que concorreram em 2016. Pouco mais de um terço (36%) alterou a cor de branca para parda – isso sem contar os que ‘viraram’ pretos e estão candidatando-se pela primeira vez ou não se candidataram nas últimas eleições municipais.

O Tribunal Superior Eleitoral – TSE passou a perguntar a cor dos candidatos a partir de 2014 e nas três eleições ocorridas até agora – sem cota racial, sem verba para o povo preto – os brancos sempre ocuparam mais de 50% das vagas de candidatos.

E detalhe: o número de candidatos já registrados junto no TSE que mudaram a cor, de acordo com contabilização realizada pelo jornal Folha de S. Paulo, dobrou em quatro dias!!!

Como saber se, de fato, é recorde o número de mulheres e negros inscritos na corrida eleitoral?!

Os autodeclarados pretos e pardos somam 51% dos candidatos (264 mil) contra 48% dos brancos (249 mil).

Só que este cre$cimento de negros na disputa às prefeituras e Câmaras Municipais tem como pano de fundo o estabelecimento recente de cotas de distribuição da verba de campanha e da propaganda eleitoral para o povo preto.

Atravessar a rua

“Por isso, quando estou andando e vejo um branco vindo na minha direção, eu agarro a minha bolsa e, rapidamente, atravesso a rua. Afinal, eles já nos roubaram tanto!”

Palavras de Érica Malunguinho, a primeira mulher negra trans deputada estadual do estado de São Paulo.

Arrepiei quando ouvi ela dizer isso em alto e bom som, em um ambiente de brancos e negros. E pensei: “É verdade!”, fazendo eco para a voz da artista plástica. Era uma performance no Aparelha Luzia, o quilombo urbano na região central da capital paulista, um centro cultural e político de resistência negra.

Na época, ela não tinha sido eleita, ainda. Mas já falava aos quatro ventos:

“Não basta mais não ser racista. Tem que ser antirracista”.

Que ninguém duvide. Representatividade importa. Representatividade importa muito. Mas nunca será o suficiente para lidar com a questão do racismo, que permeia nossas relações econômicas, sociais, jurídicas, educativas, emocionais. É preciso atuar para que o racismo não prolifere.

11 comentários em “A cor sempre roubada”

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  2. Interessante que algumas universidades no Brasil fizeram uma comissão para atestar a côr preta dos alunos pardos,ou pretos.Muitos negros passaram pelo constrangimento inquisitório da comissão,mas quando é política em que tem verba pública, então muda a forma do “modus operandi”, e pior de tudo, a justiça cala.

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