Um olhar crítico à evolução das escolas de samba a partir da pioneira, que sonhava ser bloco ou rancho carnavalesco.

Doze anos depois do primeiro samba, Pelo Telefone, de 1916, surge a primeira escola de samba, batizada Deixa Falar – criada no bairro carioca do Estácio, pelo sambista Ismael Silva.
Por que escola?
Por a Deixa Falar estar geograficamente localizada próxima a uma escola pública que tinha curso Normal e, principalmente, porque Ismael Silva acreditava que seu grupo formaria professores do samba.
Ele gostava de repetir:
“Deixa falar, nós também somos mestres. Somos uma escola de samba!“
Mas a primeira escola de samba não chegou a desfilar ostentando a categoria de escola de samba como conhecemos hoje.
Bloco
A ideia original, de Ismael Silva, era formar um bloco carnavalesco diferente, em que os participantes pudessem dançar e, ao mesmo tempo, evoluir ao ritmo do samba – estas as bases do que seria uma escola de samba legítima.
Mas havia o grupo de Oswaldo da Papoula, outro dos fundadores, que queria criar um rancho carnavalesco, com enredo, evoluções, destaques e bailados estranhos ao samba.
Ismael e Osvaldo estavam em lados opostos e encontraram um caminho do meio.

Em metade de sua pequena história, a Deixa Falar desfilou entre os ranchos, no concurso organizado pelo Jornal do Brasil, primeiro com o enredo “O Paraíso de Dante” e, depois, com “A Primavera e a Revolução de Outubro“.
Quer dizer, foi bloco e rancho carnavalesco, mas entrou para a história como escola de samba e, hoje, rebatizada como Estácio de Sá, se auto proclama “berço do samba”.
A marca
A Deixa Falar não chegou a ostentar seu vermelho e branco no primeiro concurso oficial das Escolas de Samba do Rio de Janeiro, organizado em 1932, mas Bide, sambista da escola, em 1929, participou de Na Pavuna, a primeira gravação em disco em que foram usados marcação e instrumentos típicos de uma escola de samba – sem banda ou orquestra para fazer a base.
No mesmo 1929, tempo em que o samba ainda era marginalizado, foi organizado um concurso para escolher o melhor grupo de sambistas da cidade. A Deixa Falar participou, mas acabou desclassificada por usar instrumentos de sopro na apresentação.
Nos anos seguintes, 1930 e 1931, o concurso não aconteceu. E após o carnaval de 1932, divergências sobre os gastos da subvenção oferecida pela prefeitura e acusações de corrupção decretaram o seu fim.

Deixa Falar se funde ao bloco União das Cores, depois União do Estácio de Sá. Mas, a esta altura, o seu samba moderno já estava impregnado na cidade.
E muitos blocos passaram a adotar a denominação “escola de samba“, assimilando alguns elementos propostos pela pioneira, como a presença da cuíca – pequeno barril a que se prende em uma das bocas uma pele bem estirada – e do surdo no samba, invenção de membros da escola.
O dono do ritmo
Na bateria de uma escola de samba há três tipos de surdo – e o instrumento é invenção de membros da Deixa Falar. O maior – chamado primeiro surdo ou surdo de marcação – tem cerca de 75 cm de diâmetro, é o mais grave e fornece a referência de tempo para todos os ritmistas.
O segundo surdo, um pouco menor (cerca de 50 a 60 cm de diâmetro) e menos grave que o primeiro é chamado também de surdo de resposta. E o terceiro surdo ou cortador, o menor de todos, com cerca de 40 cm de diâmetro, toca em ritmo mais sincopado, cortando os tempos marcados pelos outros dois surdos.
É a combinação dos três surdos que fornece a célula rítmica de base para toda a escola de samba.
Ascensão (?!) do Carnaval
Os anos 1930 são um marco na história do carnaval e das escolas de samba.
É de 1932, o primeiro baile carnavalesco no Teatro Municipal e o primeiro concurso entre as escolas de samba na Praça Onze, promovido pelo jornal Mundo Sportivo.
Quer dizer, há controvérsia sobre o primeiro concurso entre escolas de samba: respeitando-se a tradição oral, o ano é 1931, sob patrocínio de jornais pequenos; respeitando-se o poder constituído é 1933, ano em que a Prefeitura assume oficialmente a festa.
Mas não sobram dúvidas quanto ao preço que se paga pela ajuda financeira com dinheiro público. É a partir daí que ‘escola de samba’ vira ‘grêmio recreativo’ por influência (ou imposição) de um delegado de polícia. É a partir daí que todos são “convidados” a colaborar com a propaganda patriótica, eminentemente ufanista do governo, com enredos que estimulem o amor pelo Brasil, seus símbolos e glórias?!
Sob correntes
Nos desfiles, é exaltada a chegada da família real, os maus feitos de Isabel, a princesa da abolição, o baile imperial! E outros tristes fatos da nossa história.
Mas tudo em prosa e verso, na cadência do samba enredo, que transforma os morros cariocas em “verde colina” e “cenário encantador”, “jóia rara” sob o “céu azul” que “resplandece” e faz surgir “gigantes” cheios de “riqueza” repletos de “natureza” – palavras e rimas usadas à exaustão por décadas!

Assim, os enredos que falavam de nosso existir foram substituídos por temas nacionais, segundo normas cada vez mais restritivas nos regulamentos, como a obrigatoriedade da ala das baianas – hoje receptivo do Brasil para o turismo internacional.
Em síntese, a liberação de dinheiro público para escolas de samba fez emergir a indústria do carnaval, sob correntes para os negros, com uma maioria branca no controle.
Principal atração do carnaval, o desfile das escolas de samba, só em 2020, movimentou R$ 3,8 bilhões na economia do Rio de Janeiro, gerando milhares de empregos e, perpetuando, um processo que, na origem, envolveu a colonização do país, a proletarização de ex-escravizados, a redefinição social do negro no contexto urbano brasileiro e a sua permanente exploração.
Coisas do Brasil
A escola de samba surgiu num tempo em que negro com instrumento de tarraxa na mão – um pandeiro, um tamborim… -, mesmo que silencioso, era levado para prisão e indiciado por crime de vadiagem. A polícia não dava trégua. Mesmo assim, a Deixa Falar, foi fundada na casa de um sargento, pai de sambista, no dia 12 de agosto de 1928.
E, até hoje, os quatro dias de carnaval são o salvo conduto para o existir negro, representam, alegoricamente, o status negado o ano inteiro. A sociedade – que ainda nos olha como desordeiros, marginais, nos vê lindamente trajados, organizados e não resistem em nos aplaudir.
A polícia – que prendia qualquer um de pele escura que segurasse um instrumento com tarraxa e hoje nos sufoca com seus joelhos – abre alas para que o povo preto, reunido, em massa, desfile, sambando e cantando…
Mas que ninguém se iluda – apesar de toda invasão da branquitude – o samba não é mera expressão musical e, sim, instrumento efetivo de luta para afirmação do povo negro na vida brasileira.
Fontes: Brasil Escola; TV Brasil
Escrito em 7 de fevereiro de 2023
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