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Capoeira, força ancestral

- Tania Regina Pinto

Capoeira (Imagem: Reprodução)

A partir dos golpes e dos movimentos de defesa da capoeira, com seus corpos, negros buscaram a liberdadea reconexão com o próprio eu e com os que vieram antes.

Como nas escolas de samba e nos terreiros, existe uma permanente invasão da branquitude na capoeira. Não por atitude antirracista, mas por apropriação indevida de tudo que é preto e só se torna “legítimo”, “legal”, culturalmente aceito, quando é arrancado de nossas mãos, retirado do contexto de nossa história, a ponto de ser renegado por nós.

Ser capoeira, do samba, do santo, sempre deu cadeia, acusação por crime de vadiagem ou curandeirismo. E não importa se jogado, gingado ou abençoado. Se é um corpo preto que detém a ação, o resultado é prisão.

Quantos serão os brancos que já foram detidos, inquiridos, aprisionados por um golpe de capoeira, um rabo-de-arraia, uma rasteira ou esquiva?

Escrever sobre essa luta não é tarefa fácil. A capoeira espalhou-se, virou “esporte nacional”, recurso pedagógico, fitness!!! E assim a história se perde, a ancestralidade que fortalece, devolve nosso poder, é desprezada.

Desprovidos de outras armas, foi a partir dos golpes e dos movimentos de defesa da capoeira que, com seus corpos, os escravizados resistiram à violência dos senhores de engenho, capitães do mato e feitores.

A partir dos golpes e dos movimentos de defesa da capoeira, com seus corpos, negros buscaram a liberdade, a reconexão com o próprio eu e com os que vieram antes.

No Brasil – durante o período escravista -, a capoeira uniu todo o continente africano em cabeçadas, meias-luas, tesouras

 Praticada no mundo pós-abolição, recebe a interferência, a máscara, do colonizador, e vira paixão até para os que buscam o controle emocional e a paz.

Na raiz

Ironias à parte, o mais importante para nós, povo preto, é conhecer e reconhecer a ancestralidade dessa luta por liberdade, entendê-la como movimento de resistência negra em um dos períodos mais truculentos da história.

Um conto sobre a sua história, ensina que ela nasce de um misto de raças, nações, crenças e rituais…

Muitos africanos, escravizados, que mal podiam comunicar-se, com o passar do tempo começaram a se unir, usando como linguagem comum suas tradições, religiões, danças e lutas.

Pessoas a quem tudo tinha sido tirado identificaram um modo de se apoderar da própria vida. E, nesta direção, a primeira coisa foi reconhecer as próprias origens, a própria história e sentir o ritmo da vida dentro de si.

Esse fortalecimento interior era – e ainda é – necessário para que as pessoas resistam física e ideologicamente a condições de vida impossíveis.

A capoeira se estabelece como oportunidade única de colocar em ordem valores e símbolos internos, partindo de dois pontos comuns: ser escravizado e ser negro africano.

Parte da formação da identidade nacional mergulhada em África, a capoeira uniu o continente aprisionado neste país. Moldou o samba, o futebol, a luta, os esportes, a cultura nacional. Influenciou a legislação, fazendo crescer a população carcerária e, até hoje, ajuda na defesa e no ataque, a favor e contra a vida, dependendo do ponto de vista e da cor de quem age e de quem reage.

Palmares

Documentos que comprovem onde, como, quando e com quem nasce a capoeira não existem. As tradições africanas, mantidas pela oralidade fora do continente, ganham seus primeiros registros em diários de alguns viajantes, nos arquivos da polícia e na pesquisa de estudiosos.

As primeiras referências à capoeira como luta própria do povo escravizado estão vinculadas ao Quilombo dos Palmares, em Alagoas, no século XVII, quando soldados relatam a dificuldade de capturar negros desarmados, porque eles se defendiam com uma “estranha técnica de esquivas e pontapés”.

Os quilombos eram assentamentos, comunidades negras, formados pelos que conseguiam escapar das atrocidades, violências e trabalhos forçados. Esta característica os tornava alvos constantes dos portugueses, que queriam capturar escravizados fugidos. Daí, o registro da capoeira usada como arma contra os ataques.

Outros estudos apontam para o estado de Sergipe como matriz da capoeira no Brasil, em linha direta com a África Austral, atual território de Angola, onde os jovens formavam rodas e promoviam disputas – antigo ritual n’golo.

E existem pesquisadores, ainda, que se referem à capoeira como um misto de luta e dança inspirada na observação de confrontos na disputa das zebras-macho pelas zebras-fêmeas, com coices e cabeçadas.

Banzo de combate

É verdade que, neste século XXI, a capoeira é indicada para evitar o estresse, para o equilíbrio da saúde mental e emocional. Mas essa ideia não tem nada de novidade.

Na época da escravidão, os chamados “senhores” foram convencidos de que as rodas de capoeira ajudavam a driblar a depressão, o banzo, a tristeza de saudade, dos escravizados.

No começo, sua prática nas senzalas era proibida, considerada um risco para quem detinha o poder do mando, das correntes e do chicote. Mas, disfarçada de dança, passou a ser consentida.

Assim, no “momento terapêutico”, os escravizados praticavam técnicas de combate. E, como estratégia para enganar os capatazes, o principal instrumento da capoeira, o berimbau, entrava em ação.

Luta em roda de capoeira (Imagem: Reprodução | Carta Capital)
Luta em roda de capoeira (Imagem: Reprodução | Carta Capital)

São os toques do berimbau que comandam o ritmo, mais lentos, mais rápidos… E existem alguns simbolismos relacionados aos toques, como o toque de cavalaria, utilizado para avisar a chegada dos feitores e, também, da polícia.

Bastava o toque de cavalaria para as mulheres abrirem as suas saias, como asas, e impedirem a visão do que ocorria. Aí, os capoeiristas as puxavam para o centro da roda e eles seguiam na dança de umbigada – absorvida pelo samba.

Pequena África Musical

É das percussões e cantorias que acompanhavam a capoeira que se consolidou o principal tronco musical brasileiro, do qual derivam o samba e o coco. A música de capoeira – genericamente chamada de “batuque” pelos brancos – antecede o chorinho em 50 anos e o samba em quase um século.

O continente africano vive no Brasil. E, no Rio de Janeiro, um movimento do século XIX, conhecido como Pequena África, garantia encontros musicais nas casas das “tias” baianas, mães-de-santo, como a Tia Ciata – Hilária de Almeida -, até hoje uma referência no surgimento do maxixe, também foi absorvido pelo samba.

A casa da Tia Ciata foi o palco do primeiro samba registrado em disco, Pelo Telefone, de 1917, de autoria (oficial) do Mestre Donga – Ernesto dos Santos. Há quem diga que a música é obra coletiva e de “roda”.

O peso da capoeira

Mas voltemos à capoeira, sinônimo de resistência, que sempre ativou o pânico dos traficantes, comerciantes e empresários do setor escravista.

Todos temiam uma rebelião, como a insurreição negra ocorrida no Haiti, que aconteceu entre 1791 e 1804, acabando com a escravidão e com os senhores de escravizados, que assumiram o poder político local.

Uma rebelião nos mesmos moldes no Brasil implicaria a expropriação de terras da classe dominante. Em resumo, perderiam os senhores de escravizados e perderia o capitalismo europeu.

Assim, para driblar o medo, o método de sempre: a violência!

Ilustração de roda de capoeira (Imagem: Reprodução | Carta Capital)
Ilustração de roda de capoeira (Imagem: Reprodução | Carta Capital)

A selvageria branca contra capoeiristas – lançando mão da lógica católica europeia – seria digna de excomunhão, tamanho o requinte de crueldade utilizado para a sua prática. 

A ordem do Império era exterminar, se possível, corpo e alma! Assim, todos os mestres capturados, antes de serem assassinados, eram submetidos a longas sessões de tortura, nas quais eram açoitados e tinham óleo fervente despejado sobre suas feridas.

A capoeira era classificada como vadiagem. A habilidade corporal e a destreza dos capoeiristas era “entendida” como crime!

Trégua?

O período da Guerra do Paraguai, de 1864 a 1870 – perdoem o trocadilho – representou tempo de paz para os capoeiristas. Seus corpos eram considerados armas de guerra – só que na defesa da Pátria!

Após a assinatura da abolição, também na capital do país, o Rio de Janeiro, muitos capoeiristas foram contratados como seguranças. E havia a temida “Guarda Negra” – a milícia que protegia a monarquia.

Mas este poder e esta trégua nunca foram reais.

No primeiro código penal do país – Código Penal do Império do Brasil, de 1830 – não havia referência direta aos praticantes de capoeira, mas a polícia os enquadrava no capítulo que tratava dos vadios e mendigos.

Já no segundo código penal do país, na República, de 11 de outubro de 1890, Decreto 847, assinado pelo Marechal Deodoro da Fonseca, a criminalização da capoeira é explicitada, conforme registra o artigo 402.

Fica proibido:

“Fazer nas ruas e praças públicas exercício de agilidade e destreza corporal conhecida pela denominação Capoeiragem: andar em carreiras, com armas ou instrumentos capazes de produzir lesão corporal, provocando tumulto ou desordens, ameaçando pessoa certa ou incerta, ou incutindo temor de algum mal.” 

E quem for pego praticando a capoeira pode ser condenado a pena de dois a seis meses de prisão ou o dobro, se identificado como líder.

No mesmo código, a criminalização do desemprego – chamado de vadiagem – e da religiosidade que cura – classificada de curandeirismo. Tudo que é preto vira transgressão, erro, deslize, mal, pecado.

República Imperial

O Estado brasileiro nasce oficialmente com a proclamação da independência em 1822. E, na América Latina, o Brasil é o único país a manter a escravidão, pela lei, por mais 66 anos, até que é proclamada a república um ano depois, em 1889.

A lei áurea – nunca é demais lembrar – em duas linhas “liberta” os escravizados à marginalidade, à míngua, sem possibilidade de acesso à saúde, trabalho e educação. A mão-de-obra que passa a interessar é a branca, dos imigrantes.

O que acontece com os negros? Não ganham o status de cidadão! São livres, mas não podem votar ou ocupar os espaços públicos com seus corpos – nem mesmo participar de desafios e apresentações públicas em troca de dinheiro…

Eles insistem em nos matar…

Absolvição!?!?!

Somente em 1937, a capoeira deixa de ser crime! Mestre Bimba cria a primeira academia de capoeira, em 1932, que ganha alvará de funcionamento, após uma apresentação de capoeira para o então presidente Getúlio Vargas que, por decreto, interrompe a perseguição à luta e lhe confere o status de esporte nacional, praticado inclusive nos quartéis!

A estratégia do governo Vargas, ao incluir a capoeira em seu projeto nacionalista, como representação autêntica da brasilidade, enterra o real papel da capoeira na história do país e sua importância na luta pela liberdade do povo preto.

A visão atlética do que passa a ser visto como esporte abre espaço para que a prática seja ensinada em escolas, academias, clubes, sem sua essência ancestral.

Por isso, a luta pelo reconhecimento real da capoeira alcança o século XXI. Em 2004, Gilberto Gil, então ministro da Cultura, em discurso na Organização das Nações Unidas – ONU, chama atenção para a importância da capoeira para a formação histórica e cultural do país:

“A capoeira deixa entrever em cada gesto o jogo de lendas e histórias heroicas do martírio do povo negro no Brasil.
Chegou o momento de potencializar essa prática cultural milenar, vista apenas como esporte. Que possamos nós, em vez de desapropriar, valorizar essa base cultural imensurável.”

Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, por expressar a resistência negra no Brasil. 

Quanto a nós, negros, continuamos sendo assassinados desde a mais tenra idade. Mas insistimos em não morrer. 

Povo Preto.

Presente.

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Abril 2023

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