Marco na música e na luta pela igualdade de gênero no Brasil, a Banda Afro Didá, fundada em 1993 por um homem – Neguinho do Samba -, é um movimento que desafia o ambiente predominantemente masculino do carnaval soteropolitano e redefine o papel da mulher na música percussiva! A Didá nasce da mistura explosiva do samba de raiz com a batida africana do samba-reggae e torna-se a primeira banda de percussão formada exclusivamente por mulheres, negras e humildes. “Didá” significa “o poder da criação” em yorubá.
O que este artigo responde: O que significa “Didá” ? Quais as vertentes da Banda Didá? Qual o impacto social da Banda Didá? Como a Didá desafia as convenções de gênero na música? Quais atividades a Didá oferece além da música? Qual a primeira banda de percussão formada exclusivamente por mulheres? Mulheres podem tocar tambor? Quem é a mulher símbolo da banda Didá? Quem criou a Banda Didá? Quando a Banda Didá se apresentou pela primeira vez? Como surgiu a banda Didá? Quem é a primeira mulher a reger uma banda de samba reggae no Brasil?
Percussão é substantivo feminino, mas durante muito tempo o ato de percutir na música foi coisa só de homem! Isso até nascer – da mistura do samba de raiz com a batida africana – o samba-reggae. E da união do samba-reggae com a mulher, surgiu a Banda Afro Didá.
“Didá”, em iorubá, quer dizer “o poder da criação”.
Fundada em 13 de dezembro de 1993, na baiana Salvador, pelo mestre de bateria Neguinho do Samba (1945-2009), que também criou o samba-reggae e marcou, em definitivo, a Bahia no mapa mundial da música, a Didá é a primeira banda de percussão formada só por mulheres negras e humildes do Brasil.
E deu no New York Times! Ano 2018:
“…o ambiente predominantemente masculino
do carnaval soteropolitano teve suas tradições mudadas
com a chegada da Didá no cenário musical da cidade”.
Com cerca de oitenta componentes (números de 2019), a banda se divide em duas vertentes: “Banda Show”, para apresentações em palcos e viagens – formada por oito percussionistas, duas cantoras, uma baterista, uma saxofonista, uma trompetista, uma baixista, uma guitarrista e uma tecladista – e a “Banda Peso”, com dezenas de percussionistas e integrantes, voltada às apresentações de rua e presentes nos ensaios de carnaval.
Saliente-se, ainda, o contexto visual singular das mulheres Didá – nos cortejos pelas ruas do centro histórico de Salvador elas homenageiam Anastácia, princesa bantu que, escravizada no Brasil, foi obrigada a usar uma máscara de ferro que lhe cobria a boca, por ser considerada bela demais e como feiticeira!
Conheça outras versões da história de Anastácia.
Além do trabalho musical, a Didá mantém ações sociais e educativas visando a igualdade entre homens e mulheres, melhores condições de vida através do binômio arte-educação, o atendimento a questões raciais e, ainda, representa um espaço para a mulher negra, em especial, expor suas ideias.
Apenas mulheres têm acesso à sede e aos trabalhos do grupo – a exceção são os meninos até dez anos de idade e alguns professores.
Antimachista
Não basta ser feminista Homens, especialmente, têm de ser antimachistas – especialmente porque são muitas as mulheres que, inclusive, educam seus filhos a partir do olhar machista da sociedade – e Antonio Luís Alves de Souza, o Neguinho do Samba, entendeu o espírito de ser antimachista.
Incomodado com a ausência de mulheres no ambiente de percussão em Salvador – ele foi mestre de bateria no Ilê e no Olodum – e com a dificuldade de inseri-las no meio, decidiu criar uma banda só para elas.
Neguinho, certa vez, lembrou da frustração que sentiu ao tentar formar um grupo de mulheres:
“…não deu certo! Umas engravidavam. Outras, os namorados começaram a bater para elas não irem ensaiar. As que conseguiam, iam com medo. Outras, ainda, as mães tiravam para não criar confusão em casa…”
Mãozinha gringa
Entra em cena, então, Paul Simon e um carro importado! O cantor americano queria presentear o Neguinho do Samba por sua participação na conquista do Grammy – categoria world music -, maior prêmio musical dos EUA, pelo disco de 1990, The Rhythm of the Saints.
Neguinho recusou o presente e contou para o artista o seu desejo de criar “um quartel-general de mulheres percussionistas” e a necessidade de uma sede para que pudesse realizar o seu sonho, indicando um casarão colonial em ruínas no Pelourinho.
O cantor comprou o imóvel que, reformado, passa a ser a sede definitiva da Didá, uma organização não governamental que, oficialmente, se chama Associação Educativa e Cultural Didá. É a associação que mantém a Banda Didá.
Como registrou o New York Times, “a visão de Neguinho era de longo prazo: formar um grupo de percussão só feminino, mas também garantir a perenidade do grupo com oficinas gratuitas de confecção de instrumentos e aulas de música para mulheres e crianças”.
No casarão de três andares, a Didá oferece oficinas de canto, dança, percussão, jazz, teatro, capoeira, fotografia digital, fabricação de instrumentos musicais, línguas estrangeiras, corte e costura, entre outras. E também mantém uma loja com produtos da marca Didá.
Estreia
A primeira aparição pública da Banda acontece em 1994 durante a Lavagem do Bonfim – celebração inter-religiosa que acontece na quinta-feira que antecede o segundo domingo após o Dia de Reis, no mês de janeiro -, despertando curiosidade, surpresa, admiração e comentários preconceituosos diante da novidade.
Este é o início da história da mulher na percussão baiana e brasileira. E, no mesmo 1994, a banda se apresenta pela primeira vez para a entrega das chaves da cidade para o rei Momo. No ano seguinte, 100 mulheres já se organizam como bloco afro, chegando a mais de duas mil folionas em 1996!
Em paralelo, a banda participa da gravação da trilha do filme A Luz de Tieta, de Cacá Diegues, e viaja em turnê nacional com Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa.
O primeiro e único CD da banda, A Mulher Gera o Mundo, acontece em 1997, dando início à carreira internacional – elas já tocaram em sete países e participaram do projeto social Red Hot and Lisbon.
Entre os temas levados no gogó e nos tambores, o tropicalismo, a infância, as baianas do acarajé…
Também pioneira Adriana Portela é a primeira mulher a reger uma banda feminina de samba-reggae no Brasil. No grupo desde a sua formação, a maestrina participa de todo o processo de formação do grupo ao lado de seu mestre, Neguinho do Samba.
E – registre-se – comanda também a Oficina Percussiva para Povos de Terreiros que, além da prática musical, ensina sobre a origem dos sons percussivos; a construção de instrumentos de maneira sustentável; a história e introdução ao Ijexá – ritmo oriundo da Nigéria e levado para a Bahia pelo enorme contingente de iorubás escravizados que aportou no estado.
“Olodum feminino?” – NÃÃÃOOO!
Didá e Olodum têm em comum Neguinho do Samba – ele é o fundador da banda e do bloco. E, no começo, os instrumentos que as meninas utilizavam eram emprestados do Olodum. Segundo Vivian, Neguinho até tentou tocar o projeto no bloco afro, mas não teve apoio.
Mas a mídia ignora o histórico do grupo e insiste em chamar as meninas da Banda Didá de “Olodum feminino”?! Aconteceu durante o encerramento da Copa do Mundo 2014, quando a banda se apresentou ao lado de Shakira e Carlinhos Brown, e na Globo, com o jornalista Galvão Bueno, quando do jogo entre Brasil e Jamaica, durante a Copa do Mundo de Futebol Feminino em 2019.
Na ocasião, a filha mais velha de Neguinho, Débora de Souza, que preside o projeto, tocou na ferida: “A Didá não é o Olodum feminino. A Didá foi criada por um homem que fez parte do Olodum. Essa comparação faz com que nos sintamos desvalorizadas. Sou apaixonada pelo Olodum e o grupo tem a história dele que eu bato palmas, assim como bato palmas para a história da Didá”.
A jornalista Vivian Caroline de Jesus Queirós, relações públicas da Banda, foi além, salientando o trabalho da Didá para além da música, da Bahia e mostrando que não é por acaso que as percussionistas participam da da Copa do Mundo de Futebol Feminino:
“A Didá é um projeto que vem cuidando do empoderamento feminino há 25 anos para, além de torcer, chamar atenção para a necessidade de essas mulheres receberem apoio da sociedade, dos patrocinadores, da mídia. Não há por que ter um tratamento tão diferenciado entre homens e mulheres dentro do esporte.”
Quer dizer, existe toda a questão social, de combate à misoginia, à violência, a ser realizado. E é disso que uma copa de mulheres fala, sobre a busca por equidade… Na cena artística, a gente também precisa se igualar aos homens no sentido de reconhecimento, de cachê, de mercado…
Didá, pós Neguinho
Débora Souza preside a associação, desde a morte do pai em 2009. Sua irmã Andrea e a maestrina Adriana Portela compõem a diretoria. E uma das novidades no trabalho da Didá com estas mulheres à frente foi exatamente a animação do público no Pelourinho durante a transmissão dos jogos da Copa do Mundo de futebol feminino.
Quando da criação da Banda, a primeira coisa com que Neguinho se preocupava era alimentar as crianças. Havia dias em que não tinha comida na instituição e ele saía com dois, três meninos, e voltava com sacolas cheias. E o almoço só era servido no fim da tarde, com todo mundo cansado, porém alimentado.
Depois de comer, a maioria das crianças voltava para casa. Cerca de dez permaneciam na sede. Não tinham para onde ir. Daí também a inspiração para o projeto Sódomo – traduzido do yoruba, “criar uma criança como se fosse seu próprio filho” -, que até hoje ensina percussão para crianças.
Pedras no caminho
Machismo + falta de dinheiro + machismo + falta de dinheiro + racismo são as pedras de sempre no caminho que se somaram à ausência de Neguinho do Samba…
Quase 30 anos se passaram e nada ficou mais fácil, Vivian, que também é viúva de Neguinho do Samba, conta que depois da morte do marido, em 2009, “o desafio de sempre tem sido manter o projeto vivo”.
Quando há dinheiro extra, é usado para ajudar no transporte das integrantes, que costumam dividir o tempo com trabalhos externos. Graduada em Recursos Humanos e pós-graduanda em Psicologia Organizacional, a maestrina Ivone, por exemplo, dá aula de música e atua como consultora de vendas. Ela sonha com estabilidade, com salário, carteira assinada.
Segurança financeira, aliás, é o sonho da Didá – a associação e a banda. Mas, por enquanto, “estabilidade” só para fazer o carnaval, com o apoio contínuo da Gope, que mantém as peles dos tambores.
As apresentações, shows corporativos da banda, são os que geram renda para as meninas e para a instituição. Se não fosse a propriedade da casa e a equipe de voluntários, a dificuldade seria ainda maior.
Para desfilar na Banda Didá basta doar alimentos e produtos de limpeza. A arrecadação, compartilhada com outras instituições sem fins lucrativos, amortece os custos mensais.
Quilombo de tambores
Toda a história da Didá, em detalhes, está na dissertação “Quilombo de Tambores: Neguinho do Samba e a criação do samba-reggae como uma tradição negro baiana”, de autoria de Vivian Carolina, apresentada na Universidade Federal da Bahia.
Para ela, o nascimento da Didá é mais importante que do próprio samba-reggae. Isso porque o projeto é muito mais desafiador e arrojado: incluir mulheres negras, pobres, em um espaço totalmente proibido para elas.
“A primeira geração foi formada por meninas convidadas por Negunho”, historia Vivian. “Ele convidou o primeiro grupo e nós começamos a fazer apresentações em comunidades. As meninas que viam, perguntavam se podiam vir e a gente ia acolhendo…”
Hoje também as meninas procuram a Didá para se matricular. A maioria chega sem qualquer referência de música e “a gente costuma dizer que elas renascem, aprendem do zero”, comenta a jornalista. Algumas, depois de formadas, permanecem no grupo. “O fim da Didá não é o palco, é a vida. Desenvolvemos a ideia de corpo transformador, do que a gente pode fazer além de tocar”.
A proposta da Banda Didá é que as mulheres possam se desenvolver plenamente enquanto tocam. “O ritmo é o convite, um atrativo que conecta os nossos corpos a essa cultura, a essa necessidade de se identificar, de se firmar, de ter narrativas que nos represente”.
“A ideia é que, dentro da nossa casa, o máximo de conhecimento chegue para as nossas meninas e que esse conhecimento possa atuar no autoestima, na sua percepção do seu próprio corpo, nas suas escolhas, nos seus projetos de vida”, discursa. “Quando as mulheres vêm tocar, elas passam por um ritual que desperta. Todo contexto da instituição é dedicado ao que hoje chamamos de empoderamento feminino.”
Fontes: Wikipédia, Carnaval Ouro Negro, G1, A Tarde, AlôAlôBahia
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