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Gilberto Gil: analógico, digital, imortal, único

Registrar o pioneirismo de Gilberto Gil neste momento da vida política do Brasil, do movimento negro, é simbólico. Ele confrontou os costumes, a ditadura, cantou “Lula lá” e que “a felicidade do negro é uma felicidade guerreira”.

Gilberto Gil, outubro de 1972. Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã.
Gilberto Gil, outubro de 1972. (Imagem: Arquivo Nacional. Fundo Correio da Manhã.)

Neste artigo, o lado negro de Gilberto Passos Gil Moreira – ícone, vanguarda, cantor, compositor, produtor musical, multi-instrumentista, à frente de seu tempo, na ética e na estética, líder do tropicalismo, movimento que esculpiria o futuro da MPB (leia-se: Música Preta ou Música Popular Brasileira), o primeiro no Brasil a imortalizar a sua obra no YouTube!

Ele nasce em Salvador em 26 de junho de 1942 circunstancialmente – seus avós viviam na capital baiana. Com dificuldade de trabalho, logo após se casar, seu pai, Dr. José Gil Moreira, decide mudar-se com a esposa, Claudina Passos Gil Moreira, para a cidade de Ituaçu.

E passa a infância no sertão baiano – numa cidade com apenas 900 habitantes -, junto com a irmã caçula Gildina, um ano mais nova.

Os dois são alfabetizados pela tia-avó Lídia, professora aposentada e mãe de criação de seu pai. É ela quem apresenta os livros ao nosso pioneiro.

Lá em Ituaçu seus pais eram importantes — um médico e uma professora — e ele não se sentia  discriminado, socialmente deslocado. Só foi perceber o peso de ter a pele preta quando em Salvador, na adolescência.

Gilberto Gil na Infância (Imagem: Reprodução)
Gilberto Gil na Infância (Imagem: Reprodução)

Os pais o colocaram em um colégio de elite e ele reparou que a grande maioria – das centenas de alunos – era branca:

“Havia apenas  dez negros na melhor das hipóteses.
E, ali, comecei a notar o racismo”.

Em 21 de novembro de 2021, sobre este período de sua vida, ele postou no Twitter:

“Só fui sentir o racismo no Colégio Marista. Era uma discriminação disfarçada, mas com manifestações agudas. Lembro que uma vez, quando pedi uma explicação, um professor simplesmente disse: ‘cale a boca, seu negro boçal’.

E eu calei”.

A soma de todas as cores

Jorge Ben Jor foi fundamental na “compreensão das dificuldades de ser negro no mundo“, lembra Gil, citando a “força expressiva” do amigo:

“Ele era uma manifestação clara da afirmação da grandeza negra.”

A historiadora Débora Fantini conta do ‘encontro’ do Gil de Ituaçu com o Gil afetado por Benjor em sua tese de doutorado “O negro é a soma de todas as cores”.

No estudo, ela destaca, analisando uma década de composições, as mudanças ocorridas ao longo de sua caminhada e que evidenciam sua ligação com certa representação de africanidade, que vai do “embranquecimento” social – ele ouvia música clássica – à afirmação da negritude, mas não como um indivíduo isolado e, sim, como sujeito envolvido nos múltiplos processos de construção de identidades e memórias sobre a presença do negro na formação da sociedade brasileira.

Gil é um dos artistas que mais projetou o Brasil para o mundo com seu som, celebrando as religiões de matriz africana, a diáspora negra e denunciando o racismo:  

Se eu não fosse negro, eu não faço a menor ideia de que artista eu seria.

Ser negro, culturalmente negro, me dá uma relação com a música, com o ritmo, com o mundo religioso, com tudo, enfim, que eu não teria não sendo negro, portanto, não seria o artista que eu sou. Seria outro, outra pessoa.” declara no Dia da Consciência Negra, em 2019.

Página da revista Amiga Som de 1978. (Imagem: Reprodução)
Página da revista Amiga Som de 1978. (Imagem: Reprodução)

Em um dos seus clássicos discos, a trilha sonora original do filme ‘Quilombo’, do diretor Cacá Diegues, de 1984, isso fica escancarado no refrão da músicaZumbi’ , em que ele canta que ‘a felicidade do negro é uma felicidade guerreira’.

“Imortal”

Em 11 de novembro do ano passado, também, Gil conquista um feito para o povo preto – não como pioneiro nº 1, mas como pioneiro nº 3.

Sua carreira que se confunde com a história da música brasileira, invade a história da literatura, com sua eleição para ocupar a cadeira de nº 20, como o terceiro negro a ter assento na Academia Brasileira de Letras – a ABL.

Gil assume o lugar, oficialmente, em março de 2022.

Gilberto Gil em apresentação no Meca (Foto: Fernanda Tiné)
Gilberto Gil em apresentação no Meca (Foto: Fernanda Tiné)

Seguindo o modelo da Academia Francesa, a ABL é constituída por 40 membros efetivos e vitalícios, apelidados de “imortais”. Além desse quadro composto por brasileiros, existem 20 membros correspondentes estrangeiros.

Quando um membro da ABL morre, a cadeira é declarada vaga numa sessão denominada “Saudade”.

Os interessados em ocupar a vaga têm dois meses para se candidatar.

ABL Preta

Lima Barreto, por exemplo, tentou integrar a Academia no início do século XX, mas não conseguiu. Monteiro Lobato, à época, escreveu uma carta dizendo que Barreto só não havia entrado por ser preto; se fosse branco, seria convidado.

Em um dos livros do escritor cearense Abelardo F. Montenegro, comenta-se  que  Cruz e Sousa, o “Cisne Negro”, um dos principais representantes do Simbolismo no Brasil, chegou a ter o nome citado quando a ABL foi fundada, mas, como era negro, foi posto de lado.

E tem Machado de Assis, fundador da Academia e por mais de dez anos seu presidente que – segundo consta – só se sentou numa cadeira (a de nº 23) porque era filho de pardo forro enquanto Lima Barreto e Cruz e Sousa eram filhos de escravizados.

O segundo imortal negro é o atual presidente da ABL, Domício Proença Filho, carioca, professor e pesquisador em língua portuguesa e literatura brasileira, doutor em Letras. 

Impuro

Gil nasce  apaixonado por música e instrumentos – começa com acordeão e vibrafone. E mesmo quando se muda para São Paulo para trabalhar como administrador de empresas – área em que se forma pela Universidade Federal da Bahia, em 1964 -, acha tempo para se apresentar em festivais de música.

A notoriedade, no entanto, acontece em uma apresentação no programa ‘O fino da bossa’. Saliente-se, porém, que Gil surpreendeu pelo uso da guitarra elétrica, coisa que os mais puritanos da canção popular consideravam quase criminoso.

Gilberto Gil em apresentação no início da carreira, em 1965. (Imagem: Reprodução)
Gilberto Gil em apresentação no início da carreira, em 1965. (Imagem: Reprodução)

Elis Regina, que era uma das apresentadoras do programa, anos depois, inclusive, em julho de 1967, liderou a Marcha Contra a Guitarra Elétrica, uma manifestação na avenida Brigadeiro Luís Antônio, em São Paulo, contra a influência da música americana no cancioneiro popular brasileiro.

Mas Gil gostava da guitarra, da sanfona nordestina de Luiz Gonzaga, de música clássica…

Tropicalismo

Em outubro de 1964, junto com Caetano Veloso, nosso pioneiro lança o movimento tropicalista, que combina as influências da psicodelia norte-americana com os estilos populares brasileiros.

Tudo acontece durante o III Festival de Música da Record – sucesso imbatível da televisão brasileira na época. Ele se apresenta com Os Mutantes, tocando ‘Domingo no Parque’, combinando orquestra, berimbau e guitarra elétrica, conquista o segundo lugar e muda a Música Popular Brasileira, escurecendo-a ainda mais.

Caetano e Gil (Imagem: Reprodução/arquivo pessoal)
Caetano e Gil (Imagem: Reprodução/arquivo pessoal)

Como  ‘articulador artístico’ do movimento, ele prova que é possível ser brasileiro mesmo com a influência lá de fora.

O Tropicalismo se liga às correntes mais audaciosas da música, que defendiam a ruptura com o convencionalismo estético, artístico e político. E, além da introdução dos elementos da música estrangeira, Gil traz para o som nacional influências do afrobeat – em 1977 ele conhece Fela Kuti, se inspira na música africana e incorpora elementos do seu som no clássico álbum ‘Refavela’.

Capa do álbum Refavela, de 1977.

A disco music se faz presente nos discos ‘Luar’ e ‘Um Banda Um’. O reggae se mostra em ‘Realce’ com a versão de ‘No Woman no Cry’ (Não chore mais) e se evidencia em ‘Kaya N’gan Daya’, uma homenagem ao ícone jamaicano Bob Marley, em 2002.

Aquele abraço!

As canções de Gil são relevantes não só pela qualidade estética, na qual reservou lugar de destaque para falar do povo negro, quanto no que se refere ao seu ativismo político.

Uma prova é que o Tropicalismo também não agradou os generais. Vivia-se o golpe militar e Gil tornou-se alvo da ditadura logo após o Ato Institucional nº 5, o AI-5, decretado em 13 de dezembro de 1968, que marca um período de censura e repressão e é historicamente conhecido como o mais duro dos Atos Institucionais em nosso país.

Em dezembro de 1968, ele é preso por ‘tentativa da quebra do direito e da ordem institucional’ e, na quarta-feira de cinzas de 1969, liberado.

A escolha pelo exílio, em Londres, ele anuncia sutilmente com a música “Aquele Abraço”, em uma crítica direta aos militares, gravada na véspera da partida.

Abaixo, alguns versos:

“O Rio de Janeiro continua lindo
O Rio de Janeiro continua sendo
O Rio de Janeiro, fevereiro e março

Alô, alô, Realengo
Aquele abraço
Alô torcida do Flamengo
Aquele abraço (…)
Alô, moça da favela
Aquele abraço
Todo mundo da Portela
Aquele abraço (…)

Meu caminho pelo mundo
Eu mesmo traço
A Bahia já me deu
Régua e compasso
Quem sabe de mim sou eu
Aquele abraço
Pra você que me esqueceu
Aquele abraço

Alô Rio de Janeiro
Aquele abraço
Todo o povo brasileiro
Aquele abraço”

De acordo com a crítica, Gil poderia estar mais do que rico depois de ‘Aquele abraço’, mas ele não é homem de repetir fórmulas de sucesso:

“Eu nunca fiz música pra estabelecer uma linha de montagem, pra explorar os filões de mercado. Eu gosto de fazer sucesso,  de vender disco, mas não gosto de fazer os mesmos sucessos duas vezes.”

Em Londres, Gil teve contato com novos sons, pessoas, ideias e  passou a beber de uma fonte religiosa oriental.

Gil em show no início da sua carreira. (Imagem: Reprodução)
Gil em show no início da sua carreira. (Imagem: Reprodução)

Mas no disco ‘Um Banda Um’, de 1982, além de  ‘Drão’ e ‘Esotérico’, tem ‘Andar Com Fé’, cujo trocadilho faz referência à Umbanda.

O sincretismo de Gil, que combina esoterismo oriental e a sabedoria das religiões de matriz africana vêm desde ‘Filhos de Gandhi’, canção em homenagem ao afoxé homônimo da Bahia, do disco ‘Gil e Jorge’, com Jorge Bem Jor.

Mais uma curiosidade: Gil é um dos primeiros famosos adeptos da dieta macrobiótica no Brasil, fato que influenciaria sua filha Bela a se formar em culinária macrobiótica e ayurvédica.

O retorno

De volta do exílio, três anos depois, Gil, em um dos seus discos mais importantes, ‘Expresso 2222’, na canção-título traz o olhar para o futuro, com “o expresso que parte direto de Bonsucesso pra depois do ano dois mil.

Ele não imaginava, entretanto, que voltaria a ser detido pela ditadura, em 1976, por porte de maconha. Seu julgamento fez com que, pela primeira vez, o debate sobre drogas fosse tema em toda imprensa nacional.

Julgamento de Gilberto Gil
Julgamento de Gilberto Gil em 1976. (Imagem: Reprodução Estadão)

A posição de Gil é a favor da legalização das drogas.

O político

Mais à esquerda, em especial com o fim da ditadura militar, é sua  a voz do icônico  jingle de Lula, quando de sua primeira candidatura à Presidência da República, em 1989, ‘Lula Lá’.

E, passados bem mais de dez anos, quando o petista ascende ao poder para dois mandatos consecutivos, após as eleições de 2002, é Gil quem se torna o Ministro da Cultura do nosso país, de 2003 a 2008.

Gilberto Gil debatendo projetos. (Imagem: Agência Brasil)
Gilberto Gil debatendo projetos. (Imagem: Agência Brasil)

Antes, ele é eleito vereador de Salvador, entre 1989 e 1992, e se filia ao Partido Verde, como defensor do meio ambiente.

É controversa sua gestão à frente da Cultura brasileira. Mas, durante os cinco anos de sua gestão, uma de suas principais pautas foi a reforma da Lei Rouanet, transformando-a em um sistema mais justo, amplo e democrático de acesso a recursos culturais.

Visionário

Sua carreira inteira que se confunde com a história da música brasileira está inteira no YouTube desde 30 de janeiro de 2008 e são mais de 50 álbuns! Gilberto Gil é pioneiro no Brasil ao imortalizar a sua obra no YouTube!

Na época, Felix Ximenes, diretor de Comunicação do Google Brasil, foi quem anunciou a parceria entre Gil e o Google, com a criação de um canal exclusivo do artista com vídeos, histórico e até música inédita para os fãs, escrevendo:

“Até pouco tempo, uma boa discografia era o suficiente para imortalizar os sucessos de um músico. Hoje, com a internet e a multimídia, as canções representam uma boa parte da obra dos grandes artistas, mas não é tudo. Gilberto Gil, um dos músicos mais aclamados do planeta, foi um dos primeiros a perceber isso e lançou um canal exclusivo no YouTube, o site de vídeos mais popular do mundo”.

De modo profético e magistral, entre o digital e o analógico, entre passado e futuro, Gil chegou no mundo virtual primeiro!

A maior evidência disso está em ‘Pela internet’, do disco de 1997 – muito antes da tecnologia da informação ser massiva -, a primeira música a ser transmitida em um show ao vivo pela rede de computadores, nos idos de 1996. 

Os termos ‘hacker‘, ‘vírus’, ‘site’, ‘homepage’ e em uma interpretação, as próprias redes sociais, estão ali.

Gilberto Gil na década de 70. (Imagem: Reprodução)
Gilberto Gil na década de 70. (Imagem: Reprodução)

Detalhe: a música é uma referência a ‘Pelo Telefone’, primeiro samba gravado da história do Brasil, de 1917.

O canal de Gil no YouTube traz:

Videoteca Completa– com videoclipes, vídeos oficiais e  feitos durante turnês e momentos pessoais do artista em diversos locais e situações;

Interatividade em mão dupla –  os usuários podem ver todos os

vídeos de Gil enviar vídeos para o canal, com moderação do artista;

Músicas inéditas – no lançamento foi divulgada uma faixa do álbum ‘Banda Larga’.


Em família, Gil teve diversos relacionamentos de amor. Atualmente, vive com  Flora. No total, são oito filhos – um morreu em acidente de carro -, dez netos e um bisneto.

Dos muitos títulos e prêmios, o de embaixador da Organização das Nações Unidas para agricultura e alimentação; a Ordem Nacional do Mérito, do governo francês, a nomeação como “Artista pela Paz”, pela Unesco –  Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, e o Grammy Awards Latino de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira.


Fontes: Vermelho, Hypeness, Academia, GauchaZH, DW, UnB, Ig, Brasil Googleblog, Wikipédia-Domício, Wikipédia-Gil

Este artigo foi escrito em dezembro de 2021.

3 comentários em “Gilberto Gil: analógico, digital, imortal, único”

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