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Ilê Aiyê, o mundo negro resiste

Você já ouviu falar de Ruby Bridges? Imagine ter apenas 6 anos e se tornar o centro de uma luta histórica contra a segregação racial. Ruby não era apenas uma criança indo para a escola; ela estava pisando em território inexplorado, desafiando normas sociais arraigadas no sul dos Estados Unidos. Sua jornada para a William Frantz Elementary School em Nova Orleans não foi apenas um passeio até a escola, mas um passo gigantesco para a igualdade racial. Vamos mergulhar na história dessa pequena, mas poderosa heroína.

O bloco afro pioneiro da Bahia recupera a potência africana aos olhos dos brasileiros – com olhos de ver -, incorporando nossos saberes do Berço em práticas educativas, políticas, de reforço da auto estima e da religiosidade negra. 

Ilê Aiyê
Imagem: André Frutuoso/Divulgação

O que este artigo responde:
O que significa Ilê Aiyê?
Qual é o primeiro bloco afro do Brasil?
Quantos anos tem o Ilê Ayê?
Quem fundou o primeiro bloco afro do Brasil?
Ilê Aiyê tem a ver com orixás?
Qual a importância do Ilê Ayê para o povo negro?

A África é o Berço da Humanidade.

O Ilê Aiyê – em iorubá, Mundo Negro, Casa de Negro, Casa da Terra – resgata esta verdade

O Ilê Aiyê é o primeiro bloco afro do Brasil e se consolida em território nacional como expressão cultural do carnaval de Salvador, embora sua existência represente muito mais que quatro, cinco dias de folia. 

Ilê Aiyê é Política Negra!

Inspirado pelas lutas por direitos civis nos Estados Unidos, pela ação dos Panteras Negras, pelo líder Malcom X e pelas guerras de libertação contra o colonialismo na África, o Ilê é uma resposta histórica à segregação de negros do carnaval baiano.

O começo

Entre a sua fundação em 1º novembro de 1974 e o desfile no carnaval de 1975, houve resistência à ideia de Antonio Carlos dos Santos, o “Vovô”, Apolônio de Jesus e outros moradores do entorno da ladeira do Curuzu, no bairro da Liberdade, de formar um bloco de carnaval só de negros e, ainda por cima, chamado “Poder Negro”

A Polícia Federal da Bahia disse “não”

A justificativa?

Conotações negativas e “alienígenas”?!?!?!

Mas os orixás sabiam que isso aconteceria e, não por acaso, Mãe Hilda o batizou como  Ilê Ayê, indicando que o bloco era uma “extensão” do terreiro de candomblé Ilê Axé Jitolu!

E foram cem os primeiros foliões negros – incluindo 15 instrumentistas -, que com cartazes, adereços e cabelos trançados, black power e rastafri saíram pelas ruas do bairro, sob a vigilância da Polícia Federal, cantando:

“Que Bloco é esse? Ilê Ayê

Eu quero saber… Ilê Ayê 

É o mundo negro, que viemos cantar para você…”

Mas a música de Paulinho Camafeu, Que Bloco É Esse, não parava por aí… e, na batida dos tambores, os foliões caprichavam na interpretação dos versos:

 “Branco, se você soubesse, o valor que preto tem

Tu tomava banho de piche, ficava preto também…

Eu não lhe ensino minha malandragem

Nem tampouco a minha filosofia, não

Quem dá luz a cego é bengala branca e santa luzia…”

E para arrematar, o refrão:

“Somos criolo doido. Somos bem legal.

Temos cabelo duro. Somos black power.

Criolo doido. Bem legal.

Cabelo duro. Black power…”

Não faltaram vaias durante o desfile e críticas da imprensa, como a do jornal A Tarde, diário baiano em circulação desde 1912, que, em 12 de fevereiro de 1975, estampou a manchete:

“Bloco Racista, Nota Destoante”

Antes, o mesmo jornal já havia acusado o movimento do bairro da Liberdade de “inconcebíveis intenções subversivas” ao vincular a situação do negro brasileiro à do negro americano.

Vale a leitura do artigo Brasil e Estados Unidos, o racismo nosso de cada dia e suas diferenças na coluna Sem Mordaça.

Com o tempo, a desconfiança cedeu espaço ao ganho econômico. Compreenda-se: “injeção” financeira no turismo baiano, dinheiro para os cofres públicos…

Na folia de 1977, o bloco é um mar de negritude com mil foliões. E o bairro da Liberdade, antes de “suberversivos”,  adquire status de espaço negro de resistência, um quilombo, um “Harlem baiano”. 

No mesmo ano, Gilberto Gil grava a música tema do Ilê – Que Bloco É Esse.

“Sagrado” e “Profano”

Conhecido como “o mais belo dos belos”, o chamado carinhosamente de Ilê  tem um ritual de padê antes de iniciar o seu carnaval. Neste dia, o bairro todo e a ladeira do Curuzu, em especial, se transformam em palco de um ato cultural-religioso. 

O bloco se reúne – com a orquestra de  percussionistas e o coral negro, em cortejo real – para pedir permissão aos donos da rua para sair e faz a oferenda de milho branco cozido e pipoca para Oxalá, o orixá da paz, e Obaluaiê, patrono da saúde.

Bênção dada, uma revoada de pombas brancas anuncia a saída da Deusa do Ébano, “divindade” eleita durante a Noite da Beleza Negra, a rainha do bloco, e o desfile começa.

Todo o trabalho religioso do Ilê – desde o início até 2009 – teve à frente Mãe Hilda Dias do Santos (1923-2009), sacerdotisa do terreiro Ilê Axé Jitolu – uma espécie de “madrinha” do bloco e mãe biológica de Antonio Carlos dos Santos, o Vovô, um dos seus idealizadores. 

Ela quem lá no começo aprovou a ideia do filho do bloco negro, mas impôs a condição de participar do cortejo, a fim desestimular a repressão aos foliões. 

E o seu terreiro, por aproximadamente 20 anos, serviu ao bloco como diretoria, secretaria, salão de costura e recepção de associados. 

Deusa do Ébano

No terreiro de Mãe Hilda, também, se pensaram as estratégias para o resgate da nossa história ancestral, dos nossos valores.

A Noite da Beleza Negra,  por exemplo, é  uma resposta à não inserção da mulher negra nos concursos de Miss Universo que existem até hoje.

Leia o artigo sobre os clubes de preto Aristocrata e Renascença, que também surgiram como resposta à segregação negra.

Mas o Ilê não queria uma versão preta da mesma festa e, sim, subverter a proposta dos concursos de beleza tradicionais, tornando a Noite da Beleza Negra um exercício de autovalorização, de desconstrução dos discursos racistas e de celebração da raça negra, com a eleição da rainha do bloco.

Rainha do Ilê Deusa do Ébano 2019
Concurso Deusa do Ébano de 2018 (Imagem: Mauro Akin Nassor/Arquivo CORREIO)

Assim, para a escolha da Deusa do Ébano, até hoje, não se usam padrões como idade, estado civil ou medidas de cintura, mamas e bumbum.  O que faz valer a vitória é a força da “deusa” em envolver a plateia e os jurados com sua simpatia e performance.

A consciência de pertencimento étnico-racial e suas reverberações no campo político são quesito fundamental para registro de candidatura.

A festa é um espetáculo com cortejo coreografado, figurinos, adereços e participação do Grupo de Dança do Ilê Aiyê, criado em 1985. As candidatas se apresentam com roupas do Ilê e fantasias individuais. Desde que foi idealizada, em 1979, esta é a festa mais importante para o Ilê antes do carnaval. Sem contar que, neste mesmo ano, seguindo seus passos, surgem mais blocos com inspiração africana em Salvador, como o Olodum, nossa primeira escola de tambores.

Divisor de águas

Na Bahia, a vida negra é uma antes do Ilê e outra depois do Ilê. E isso pode ser percebido visualmente: antes do bloco, pessoas negras não usavam vestes coloridas nem penteados com cabelo natural ou maquiagem que chamasse atenção – todos sabiam “o seu não lugar”, “a sua não-existência”. 

Querendo africanizar o carnaval, o Ilê transformou a autoimagem e o cotidiano da população negra da Bahia e do Brasil. Traz para a vida real, em 1975, a palavra da moda do século XXI: empoderamento.

Cultura e histórias africanas cantadas em prosa-e-verso modificam nosso modo de nos ver no espelho.

Tranças, cabelo black power, rastafari, batas, búzios… passam a fazer parte de nossas estratégias de resistência e re-existência.

Perfil Azeviche Ilê Aiyê
Perfil Azeviche (Imagem: Ilê Aiyê)

Um perfil azeviche – máscara africana do mineral que simboliza a pele negra – , com quatro búzios abertos formando uma cruz na testa, aliás, representam a identidade visual do Ilê, criada pelo artista Jota Cunha. Insígnias do candomblé – como o opaxorô de Oxalá e o tridente de Exu – também compõem os elementos gráficos do grupo. 

No batuque do tambor

O Ilê transforma a estética baiana, o carnaval, a música preta brasileira e, ainda, cria um gênero musical denominado samba afro, que muda tudo!

A base é o ijexá,  que deriva da religião dos orixás, calcada no batuque dos tambores e na potência das vozes. Só que tem mais: o samba afro promove a fusão da batida das escolas de samba com o samba duro e a cabila (ou cabula),  tradicional ritmo executado nos terreiros de candomblé da nação Angola, misturados a ritmos do candomblé Queto, tais como opanijé, savalu e daró.

A riqueza plástica e sonora do Ilê retoma todas as formas expressadas na evolução dos movimentos de renascimento africano e afro-americano,  as decodifica para o contexto específico da realidade baiana, sem perder de vista a relação de identificação entre todos “os negros que se querem negros” em qualquer parte do mundo, ressaltando sempre o caráter comum da origem ancestral, de um passado comum que nos irmana.

E o bloco invade as ruas de Salvador, canta a histórica revolta dos malês, o quase um século de resistência do Quilombo dos Palmares… Músicas que se transformam em nossos primeiros discos didáticos e na batida do tambor.Assim, ficamos sabendo que os nossos existiam 6.000 anos antes de Cristo em Kemet, Egito Antigo. Que Cleópatra e todos os faraós eram pretos e tiveram sua cor roubada, assim como Iemanjá! Acessamos informações sobre os primeiros  inventores negros,  sobre  povos africanos nunca exaltados, como os de Ruanda e Azânia – o nome africano da África do Sul.

Para além do Carnaval

No lugar da folia, a contestação, o colocar o negro como sujeito da própria história, da história do Brasil, sua construção social, cultural, racial. O Ilê propõe a transformação dos símbolos, do discurso da branquitude a respeito dos afrodescendentes e de seu continente original.

Todo seu trabalho tem como princípio a discriminação positiva, o enaltecer  as raízes africanas na cultura nacional, retirando da negritude a condição de marginalidade no existir.

E, para além do carnaval, ressignifica atributos negros, investe na autoestima da população 85% preta da capital da Bahia.

Escola Mãe Hilda Ilê Aiyê
Registo da Escola Mâe Hilda funcionando no terreiro do Ilê Axé Jitolu (Imagem: Acervo Ilê Aiyê)

Expandido sua ação, em 1988, abre uma escola comunitária de Ensino Fundamental, que tem por eixo temático a equidade racial e de gênero. 

Quatro anos depois, em 1992, inaugura uma escola de percussão, formando jovens instrumentistas para a Band’Ayê,  atualmente com 100 músicos e que já teve Carlinhos Brown como mestre de percussão e está presente em obras de artistas como Martinho da Vila.

A partir de 1995, ainda, inicia a publicação anual dos Cadernos de Educação, com textos sobre a história negra.

Cinquentão!

Em 2024, o pioneiro Ilê celebra 50 anos, período durante o qual passou de cem para três mil associados, transformou o carnaval em manifestação política e tornou-se “patrimônio da cultura baiana”, reconhecido como local de resistência, militância e ações de combate ao racismo.

À exceção dos anos de pandemia do Coronavírus – em 2020, 2021 e 2022 – nunca deixou de sair no Carnaval, tampouco parou suas atividades.

Premiado diversas vezes como melhor bloco afro do carnaval baiano, teve seu primeiro registro musical em 1984, com o álbum Canto Negro.

Canto Negro Ilê Aiyê
Álbum Canto Negro (Imagem: Reprodução/Vinil Records)

Durante cinco anos, de 1974 a 1979, o Ilê foi o único bloco afro. Tempo suficiente para difundir a experiência e motivar a formação de vários outros grupos como o Olodum, em 1979, o Araketu, em 1980, e o Muzenza, em 1981, entre outros.

De todos, o Ilê é o que mais resiste e insiste na militância como foi concebida quando da sua criação. Só no Carnaval de 1996 criou o  bloco alternativo Eu também sou Ilê, abrindo espaço para a participação de  associados brancos.

Mãe Hilda

Em 6 de janeiro de 2023, no centenário de Mãe Hilda, o Instituto da Mulher Negra Mãe Hilda Jitolu, lança selo comemorativo em homenagem à matriarca, criado pelo artista plástico baiano Wilton Bernardo.

Celebrar o centenário de Mãe Hilda é fundamental pela importância que ela tem para a cultura baiana e para a religiosidade afro-brasileira. O trabalho dela contribuiu para a formação de crianças da comunidade do Curuzu e Liberdade. Sem ela o Ilê Aiyê não existiria. Ela deu a base para a criação do Ilê. Foi ela quem incentivou os filhos a criarem o primeiro bloco afro do Brasil.

(Valéria Lima, neta da religiosa e diretora-executiva do Instituto)

Fontes: Ilê Ayê – site oficial,  Brasil de Fato, G1Wikipedia-Ilê-Ayê, Itau Cultural, jornal A Tarde, Wikipédia-Samba afro

Atualizado em 17/3/2024

Ruby Bridges: A Jornada de Uma Pequena Heroína Contra a Segregação no Sul dos EUA

Aos 6 anos, Ruby Bridges tornou-se a primeira criança negra a frequentar uma escola de brancos no sul dos Estados Unidos, marcando um momento crucial na luta contra a segregação racial. Em 1960, desafiando protestos violentos e isolamento, Ruby foi escoltada por agentes federais até a William Frantz Elementary School em Nova Orleans, onde estudou sozinha, ensinada pela dedicada professora Barbara Henry. A coragem de Ruby e de sua família não apenas pavimentou o caminho para outras crianças negras, mas também se tornou um marco na história dos direitos civis, inspirando mudanças e promovendo a igualdade.

Quem foi Ruby Bridges? Ruby Bridges foi a primeira criança negra a frequentar uma escola de brancos no sul dos EUA, tornando-se um ícone da luta contra a segregação racial.

Qual escola Ruby Bridges frequentou? Ruby Bridges frequentou a William Frantz Elementary School em Nova Orleans.

Como Ruby Bridges foi recebida na escola? Ruby foi recebida com hostilidade, protestos violentos e isolamento, com todas as outras crianças sendo retiradas da escola por seus pais.

Quem ensinou Ruby Bridges durante seu primeiro ano? Durante seu primeiro ano, Ruby foi ensinada sozinha pela professora Barbara Henry, a única educadora disposta a ensiná-la.

Qual foi o impacto da história de Ruby Bridges? A história de Ruby Bridges teve um impacto profundo na luta pelos direitos civis, inspirando outras famílias negras a desafiar a segregação e promovendo a integração escolar no sul dos EUA.

4 comentários em “Ilê Aiyê, o mundo negro resiste”

  1. Parabéns Tânia Regina pelo belo relato histórico dos avanços adquiridos das comunidades negras de Salvador por intermédio dos blocos afros, suas culturas, resistência, força e fé. Tive uma breve passagem quando morei em Salvador e pude presenciar e participar de algumas manifestações e dos movimentos dos blocos afros em crescente ascensão. Grato por compartilhar e fortalecer a história do nosso povo. Axé. Saudações Rastafari! Jahfla

  2. Pingback: Afrofuturismo, segundo Morena Mariah

  3. Que texto lindo, consistentes nas informações, bem ilustrado e cheio de sentimentos bons.
    Acalmou a saudade que tenho da minha mãe Bahia e do querido colo ancestral, Salvador. Salvador meu amor .
    Gracias, pela escrita, Axé

  4. Pingback: Lázaro Ramos: Artista, Ativista, Pessoa

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