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Silvio Humberto, do ativismo ao poder político

Silvio Humberto, do ativismo ao poder político (Imagem: Primeiros Negros)

Vereador da baiana Salvador desde 2012 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), líder da oposição pela segunda vez, Silvio Humberto dos Passos Cunha é professor, servidor público municipal concursado, alguém que acredita no diálogo. Nasceu compreendendo a educação como o alimento principal da vida:

Dentro da estratégia da minha família, educação era a base. Eu não sou oriundo da escola pública. Eu fiz a minha vida escolar estudando em escolas particulares. Meus pais fizeram todo o esforço para que fosse assim. E todos conseguiram chegar à Universidade. Lázaro, meu irmão mais novo, fez Mecânica na escola técnica e, depois, Engenharia Mecânica. Tenho uma irmã que é assistente social e outra graduada em Matemática e Ciências Contábeis.”

O que este artigo responde:

  • Quem é Silvio Humberto?
  • Quais os desafios do político negro?
  • Qual a importância da Bahia no cenário nacional?
  • Os problemas raciais são um problema econômico?
  • Como acabar com o racismo?
  • O que é mais importante: raça ou religião?

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Propostas de atividades didáticas com histórias de personalidades negras e brasileiras de destaque.

A “estratégia da família” está no seu DNA e materializou-se, em 1992, com a fundação do primeiro quilombo educacional do Brasil, o Instituto Cultural Steve Biko, focado na educação inclusiva e antirracista com vistas ao acesso de estudantes negros de baixa renda à carreira acadêmica.

Seu ativismo começa na adolescência, aos 16 anos, logo que entra para o curso de Economia na Universidade Católica de Salvador e, com outros estudantes, funda o Grupo Negro da UCSal, já na luta pela democratização do acesso à universidade.

Compreendendo, desde sempre, a necessidade da representatividade negra nos espaços de poder, Sílvio Humberto se candidata a vereador pela primeira vez em 2012, tendo como pautas principais, além da Educação, a Igualdade Racial, a Cultura, o Direito à Cidade e a Diversidade.

Seu trabalho é reconhecido a nível nacional por conta de seus projetos e ativismo. Destaque para o Estatuto da Igualdade Racial e Combate à Intolerância Religiosa e para o Plano Municipal de Cultura de Salvador.

Mas quem é a pessoa por trás da história? Quem é este representante do povo soteropolitano que está em seu terceiro mandato e pretende continuar representando-o? Nada melhor do que perguntar para ele. 

Silvio Humberto sentado em sua mesa, em poltrona de corou com computador e quadros ao fundo.
Silvio Humberto, durante a entrevista para o artigo "do ativismo ao poder político" (Imagem: Primeiros Negros)

Primeiros Negros: Quem é você?

Silvio Humberto: Eu sou um soteropolitano, 61 anos desde 27 de fevereiro de 2024, o primeiro de quatro irmãos. Tenho um filho de 16 anos, Kiluanji. Estou no Movimento Negro desde 1980.

Kiluanji é um nome angolano, do pai da rainha Ginga, soberana dos reinos de Ndongo e de Matamba, sudoeste da África. “Quanto ao significado, é algo próximo de ‘conquistador’, de corações e mentes, preferencialmente” – projeta o vereador.

Filho de Humberto e Silvia – por isso Silvio Humberto – , nosso entrevistado ainda tem em sua mãe, com 88 anos, uma conselheira e “cabo eleitoral” – hoje ela está com dificuldade de mobilidade, “mas a cabeça dela é uma usina”, afirma o vereador. “Na primeira eleição, ela foi pedir voto. Começou a trabalhar como costureira, nas fábricas, aos 10, 12 anos, fazendo ‘casa’ para os botões”. 

De seu pai, Silvio Humberto lembra como um “visionário”:

“Na vida do meu pai e da minha mãe, aconteceu algo inédito. Quando eles se casaram, já tinham casa própria!”

No começo, o pai trabalhava na construção civil como mestre ferreiro. Quando sofreu um sério acidente de trabalho, passou a consertar máquinas de escrever e calcular, como mecanógrafo. 

E assim a vida seguiu até a chegada da máquina elétrica e dos computadores… As máquinas de datilografia começaram a perder lugar e Silvio Humberto assumiu o bastão como provedor do lar.

Era 1984, 1985, e nosso entrevistado havia prestado concurso para auditor fiscal na Prefeitura de Salvador. 

Quanto aos avós, Silvio conheceu os pais de sua mãe, Cipriano Passos – pescador e vendedor de mingau – e Palmira Nascimento: “Ela morreu com 92, 93 anos, no dia da final da Copa do Mundo de 2002. O enterro foi no dia de São Pedro, compramos muitos doces…” 

Uma curiosidade: seus avós eram também seus padrinhos. E o motivo tem a ver com o seu pai que ficou órfão ainda criança: “A mãe de meu pai, Claudelina, morreu muito cedo. O pai dele foi embora”. 

O ativista

PN: Como acontece a sua entrada no Movimento Negro?

Silvio Humberto: A questão racial ganha maior visibilidade, para mim, a partir dos anos 1980. Isso não significa que minha família não tinha leitura racial sobre tudo o que vivenciava – tinha e tem. Me lembro do meu pai me dizendo: “Você está estudando em escola de burguês. Mas você é filho de operário. Você não é igual a eles” . Essa fala me deu régua e compasso, porque a minha realidade em escola de classe média era completamente diferente da realidade no bairro onde eu vivia.

PN: Diferente como?

Silvio Humberto: Salvador é diferente do sudeste, de São Paulo, onde a periferia é distante. Em Salvador, a periferia está no centro da cidade. Onde eu morava faltava água, não tinha saneamento básico…

PN: Como era a educação dentro de casa?

Silvio Humberto: Sem distinção. O que era para um, servia para todos. Eu limpava o banheiro.

Receita de sucesso 

O político, hoje, lamenta não ter aprendido a fazer boas comidas. Mesmo assim, ele tem um olhar interessante para a política, voltado à solução das questões do povo preto, que inclui a refeição que mais gosta de preparar, o café da manhã: 

“Se eu proteger melhor o meu coração, consigo fazer um bom omelete. E em nome de um bom omelete, que vai dar para todo mundo, é preciso quebrar o ovo. É isso: com um omelete você consegue repartir mais que com um ovo.”

PN: A sua militância no movimento negro o levou à criação do Instituto Steve Biko. Daí, a ideia de entrar na política, enfrentando as urnas?

Silvio Humberto: Normalmente, não se é eleito na primeira tentativa. Mas, sim, eu já tinha um trabalho de mais de 20 anos com o Instituto Steve Biko, que mudou a vida de muita gente, um trabalho político, onde também falávamos da importância do voto negro. Mas uma amiga, certa vez, me disse: nem todo militante serve para ser político porque são tempos e capacidades de “engolir sapos” diferentes

PN: Capacidades de “engolir “sapos”? 

Silvio Humberto: Alguém fala assim: ‘fica ali para tirar foto…’ Eu vou, mas é do jogo. A política é um jogo em que é preciso autocrítica. Ou você joga ou nada acontece. As pessoas precisam sentir que você é parte do jogo.

PN: Sua cabeça de militante ajuda ou atrapalha na política?

Silvio Humberto: Como militante, muitas vezes, a gente é condescendente, quer acolher. Mas, se a gente pensa com a cabeça do político, tira da frente o que está atrapalhando. É preciso saber jogar e sem esquecer o elemento racial. Muitos não entendem a política. Para quem entende, um olhar resolve. Para quem não entende, você vai ter que resolver o problema material do momento.

PN: Temos uma história de superação permanente. Mas, na grande foto, sempre estamos ausentes. É isso mesmo?

Silvio Humberto: Eu vou responder com algo que ouvi de uma das ativistas do Vidas Negras Importam: “Não são os nossos erros que estão sendo atacados, são as nossas conquistas”. Que sistema é esse que precisa dizer, todo dia, que você é feio pra você não chegar lá! Por que ele não trabalha com as condições objetivas? Por que tem que nos descaracterizar como humanos para dizer que não somos capazes? Isso só conta do tamanho do nosso poder!

PN: Como você avalia as nossas conquistas?

Silvio Humberto: Elas são um fato. Eu tentei disputar a Prefeitura de Salvador. Tive que retirar a candidatura. Não consegui as condições objetivas dentro do partido, o PSB. As pessoas olham pra mim e dizem: ‘Você é inteligente, tão bom…’ Mas a questão é que Salvador é o Haiti do Brasil, o que der certo aqui pode ter um efeito multiplicador. Não tem lugar no mundo igual a Salvador. Quando você chega aqui, algo sempre lhe toca. Eles – os brancos, os poderosos – sabem disso.

Cartaz com fundo azul e letras coloridas, com a escrita "Salvador Capital Afro - Carnaval 2024"
Cartaz da ação "Salvador Capital Afro", no carnaval de 2024 (Imagem: Primeiros Negros)

PN: “Salvador, capital afro” tem a ver com isso?

Silvio Humberto: Salvador, a capital afro, da afroconveniência, slogan do Carnaval 2024, não é por acaso, mas é só pelo simbólico. Isso atrai pessoas e negócios, negócios onde as pessoas pretas não são as protagonistas. Quer dizer, um caminho para a roda continuar girando só para o lado deles. Aí, você ouve o prefeito dizer: ‘Poxa, a gente trouxe Beyoncé’. Só que ela ficou 10 horas e foi embora! Quer dizer, ela volta para a cidade de Salvador, mas onde estão os negros?

PN: A presença de Beyoncé em Salvador não afetou em nada a vida da maioria da população da cidade. É isso?

Silvio Humberto: Se Salvador correspondesse a uma Atlanta, nos Estados Unidos, não era só a Beyoncé que viria. Todos os investimentos de quem acredita em diversidade viriam para a cidade. Aqui dá para testar produtos para cabelo, para pele, tecnologias sociais que gerem inovação, que gerem inclusão… O que der certo aqui, se exporta para o mundo. Mas a gente não consegue se posicionar internacionalmente porque aqui funciona a lógica da exclusão, de incluir a maioria de forma subalternizada, de oferecer pouco dizendo que está oferecendo muito. E não são coisas dignas que são oferecidas à população. 

PN: Como seria com o prefeito negro economista?

Silvio Humberto: A Economia permite você entender como funciona o sistema e não se iludir. Se no primeiro dia eu sou um negro que se torna prefeito, no dia em que eu assumir, eu vou ser o prefeito negro. As pessoas vão querer que eu resolva primeiro os problemas da Prefeitura, enquanto a cidade continua de costas para a maioria da população, a serviço do privilégio branco – que recebe suporte não só das pessoas brancas, mas também das pessoas negras.

PN: E isso se repete em todas as esferas de poder?

Silvio Humberto: É só olhar a estratégia do presidente da Repúbica quando declarou que não ia escolher juiz para o Supremo Tribunal Federal, baseado em critério racial. Alguns disseram que a sua fala estava desatualizada, mas não. A fala de Lula está atualizadíssima com o que eles pensam – que o governo dele resolveu todo problema da questão racial, como se fosse o fim da história. E não é. Quem é que morre? Quem está sem acesso a serviços básicos?… 

Silvio Humberto sendo entrevistado pela jornalista Tania Regina Pinto (Imagem: Primeiros Negros)
Silvio Humberto sendo entrevistado pela jornalista Tania Regina Pinto (Imagem: Primeiros Negros)

PN: Como acabar com o racismo?

Silvio Humberto: Se tem um erro, do ponto de vista conceitual, é confundir racismo com preconceito. O racismo é o fenômeno e o preconceito é a manifestação do racismo. Eles acham que a gente é inferior. Por isso, a gente pode avançar na redução da desigualdade racial, mas pode não acabar com o racismo. 

PN: Não tem solução? 

Silvio Humberto: Com a permanência das ações afirmativas, praticando a diversidade na escolha dos cargos, atacando as condições da pobreza, é possível reduzir a desigualdade de renda. Precisamos das medidas que atacam a desigualdade de renda combinadas com as medidas que atacam as desigualdades raciais. Ao se atacar as desigualdades raciais, se distribui melhor a renda – mas o contrário, não necessariamente. 

PN: E a religião? Religião é política? É economia? Faz parte do sistema racista? Qual o seu olhar para a questão?

Silvio Humberto: A religião é parte do sistema que aí está. A religião tem moldado a vida humana, mas não mede o caráter de ninguém. A forma como cada um se religa ao que acredita é individual, mas existe um uso político disso. Eu sou de religião de matriz africana, mas acredito que vivenciar a própria espiritualidade é muito maior do que qualquer religião. Agora, o uso político disso é variável… No sul do país, você não tem dúvida da sua cor. Lá, as pessoas que não têm o padrão branco, são pretas. Mas aqui na Bahia, em Salvador principalmente, não. Tanto que a estratégia do movimento negro foi juntar todo mundo. Tinha uma camiseta onde se lia: “O negro será sempre negro, afirmando-se como ser humano na luta pela vida” . Isso para se contrapor ao preto, pardo… Se falasse “cafuso”, a gente dizia, brincando, “confuso”…

PN: O colorismo também chega à Bahia?

Silvio Humberto: A armadilha é que o colorismo vem para nos dividir. Eu não vou ficar discutindo grau de negritude. A nossa é uma sociedade pigmentocrática – quanto mais claro você for, maiores as suas chances de ascensão. E isso é muito mais forte em uma sociedade de pessoas pretas retintas. Aqui na Bahia não tem branco suficiente. Então, vai-se pescando aqui e ali os pretos de pele clara. É o dilema do mulato da “Missa dos Quilombos”, de Dom Pedro, Casaldáliga e Pedro Tierra, no disco de Milton Nascimento, de 1982:

Mulato iludido, fica do teu lado, do lado do Negro. Não faças, Mulato, a branca traição”. 

PN: Como tratar o assunto?

Silvio Humberto: A negritude é uma construção mental e uma atitude política, vai além da cor, tem a ver com a gente se juntar. Se tem diferenças, a gente vai ver depois. Deixa a gente chegar primeiro. Mas enquanto esse dia não chega, passou de meio-dia, é tudo meia-noite. 

PN: E quando a questão racial e a questão religiosa se confrontam?

Silvio Humberto: Não me importa se uma pessoa bate o joelho no chão, se toca tambor, acredita na pedra, na força da natureza… Não me importa se a pessoa diz “amém”, “aleluia”, “axé”… O que eu sei é que a gente não pode se dividir. Temos algo que nos une que é ser negro. Caso contrário, caímos na armadilha de pular o quesito cor para discutir religião. Na Bahia, quem pratica o racismo religioso – contra pessoas negras de religião de matriz africana – são outros negros com ideal de fé que considera que tem que catequisar todo mundo

O político

PN: Na sua opinião, espiritualidade e política dialogam? 

Silvio Humberto: Aprendi a fazer política com a espiritualidade. E isso é de tempos imemoriais. Todas as civilizações faziam isso. Quando se ia para a guerra se consultava a espiritualidade. Esse outro mundo que a gente não vê está aqui. Eu chegar neste lugar, como político, também advém das escutas desse outro mundo que a gente não vê. 

PN: Ser político é uma missão?

Silvio Humberto: Nunca imaginei estar neste lugar… Dizem que a quem muito é dado, muito é pedido. Às vezes, acho que tem uma coisa de missão. Mas cuido para não cair no ‘culto ao herói’. Oscilo. Tem dias que me sinto muito só na luta. Só não é pior porque eu acredito no que não vejo, acredito no que eu sinto.

PN: Quais os seus planos como político?

Silvio Humberto: No início do ano, meu plano era disputar a Prefeitura de Salvador. Eu retirei a candidatura, mas não desisti. Mais dia, menos dias, vai acontecer. Cada dia eu marcho um pouco em direção ao que eu quero. Atualmente, se fala em eu trabalhar para renovar o mandato de vereador. Mas existem tentativas para eu disputar na chapa para o cargo de vice-prefeito

PN: Que aprendizados a política traz? 

Silvio Humberto: Eu aprendi que, na política, você não nasce nada, você se torna. Nestes 12 anos, ouvi muito: ‘Não faça política com o fígado’ e criei uma convicção: nós políticos temos que passar por cima de algumas questões para crescer… Os caminhos nem sempre são uma reta. Às vezes, de maneira sinuosa é mais fácil chegar. Tem sempre uma coisa cristã, na nossa cabeça, que diz: ‘quer saber quem é a pessoa, dê poder a ela’. Só que não é assim. Podem até acontecer mudanças, mas transformações profundas na vida das pessoas negras, os brancos não vão fazer nunca! Ou estamos neste lugar com essa cabeça de quem pensa coletivamente, ou nada vai acontecer. Eu estou diferente de quem eu era em 2012 porque entendo mais o jogo político.

PN: Como cidadão negro você também considera que está melhor?

Silvio Humberto: Eu continuo acreditando que a nossa construção é coletiva. Esse é o princípio que me rege, que me ajuda a transitar pela cidade sem guarda-costas, dar minhas aulas, ir às festas… É verdade que nunca mais brinquei na lavagem da escadaria da Igreja do Bonfim, que eu gosto. No Carnaval, eu saio num bloco ou noutro – antes eu tinha mais liberdade, ia porque queria. Agora, eu tenho que ir. Mas continuo sendo o mesmo Silvio Humberto. Até Silvio, para quem me conhece há mais tempo. Mas sei o peso que é estar onde estou e fico atento para não cair na “armadilha da ego-esclerose”.

PN: Qual a importância da família no meio de tudo isso?

Silvio Humberto: A família conhece a gente por dentro e fala o que tem de falar. Minha família é muito parceira. Estão todos dentro da política, não no gabinete, mas do ponto de vista de sofrer junto, de ficar indignado, de trabalhar sem receber porque acredita.

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O economista das relações raciais

Silvio Humberto dos Passos Cunha é doutor em Economia. Graduou-se na Universidade Católica de Salvador; fez mestrado na Universidade Federal da Bahia (UFBa) e doutorado na Universidade de Campinas (Unicamp). Estabeleceu o diálogo, inédito à época, entre sua área de formação profissional e sua existência preta.

É sobre desigualdades sociais, desrespeito religioso, desumanização, preconceito, racismo, política e economia que conversamos com o vereador, que sonha ser prefeito de Salvador, na segunda parte desta entrevista. 

PN: A história dos que vieram antes reverbera na sua vida? 

Silvio Humberto: A introdução da minha tese de doutorado é uma carta in memoriam ao cidadão Humberto Ribeiro da Cunha, meu pai. Um diálogo entre a história de vida e de trabalho dele, em que discuto a transição do trabalho escravo para o trabalho livre no recôncavo açucareiro. Tenho um capítulo que é “Negros em Movimento”, sobre as estratégias de sobrevivência.

À pergunta sobre a escolha da profissão, Silvio Humberto conta que queria fazer Engenharia Química, mas quando falou para a sua mãe, ela “do alto de sua sabedoria”, lembra ele, deu a medida da impossibilidade: 

“Filho de pobre e preto ou vai ser advogado, ou vai ser médico ou vai ser engenheiro. São essas as três profissões que a gente conhece”

Eu respondi: “Mas, minha mãe, eu não tenho nada a ver com isso”.

Ela retrucou: “Não tem não? Então peça a Deus”.

Silvio Humberto: Minha escolha foi divina. Eu tinha 16 anos. Teve palestra sobre Economia no Colégio e na UFBa. E eu não fui assistir. Se assistisse, certamente ia mudar de opção. Mas foi a Economia que eu aprendi na Universidade Católica – um pouco diferente da Economia da UFBa -, que permitiu passar no concurso público da Prefeitura, onde estou até hoje. Tenho 39 anos como funcionário público municipal.

PN: Antigamente, não fazíamos mestrado, doutorado… 

Silvio Humberto: Da minha turma de 20, dois entregaram a dissertação de Mestrado. Levei um bocado de tempo para fazer. Naquela época, Mestrado se fazia em quatro anos – era para eu terminar em 1989, terminei em 1991. Fui orientando do professor Milton Santos. Eu queria falar de Brasil-África, mas terminei escrevendo sobre Brasil-Angola. Aí que fui entender política internacional. Até passou pela minha cabeça seguir a carreira diplomática.

PN: No que a Economia ajuda você a olhar a questão racial?

Silvio Humberto: Eu sou também professor de Economia. Dou aula em uma disciplina chamada História do Pensamento Econômico e Desenvolvimento Sócio-econômico e dentro de um tópico especial, peguei um capítulo da minha tese de doutorado neste semestre, que é Economia Política das Relações Raciais. É o meu primeiro experimento com essa disciplina.

Tania Regina e Silvio Humberto posam para foto após entrevista
Tania Regina e Silvio Humberto (Imagem: Reprodução)

PN: Professor, do que trata a disciplina Economia Política das Relações Raciais?

Silvio Humberto: Economia tem várias entradas: tributária, matemática, filosófica, científica, história… E, a depender do filtro, da lente, é possível fazer um recorte. Eu entendo que, quando se vive em um sistema capitalista, a economia dá a possibilidade até de se questionar que a base é econômica para resolver tudo.

PN: Quer dizer, entre a Política e a Economia, é a Economia primeiro?

Silvio Humberto: A Economia é Política. Eu dou aula de Economia Política do Desenvolvimento porque quando se estuda desenvolvimento, esse desenvolvimento não é uma escolha totalmente técnica, é uma escolha política. A política escolhe as técnicas. Isso eu uso para entender as discussões sobre as relações raciais. 

PN: É a questão racial compreendida como questão social?

Silvio Humberto: Diziam para nós, enquanto militantes, que a questão era social. Só que nunca foi. A lógica do econômico sempre presidiu tudo. Antes, o econômico estava submetido às relações sociais. É no capitalismo que ele ganha outro contorno – o que era acessório para a sociedade torna-se a sociedade, tanto que se fala em ‘sociedade de mercado’. O ‘mercado’ tornou-se uma entidade. E foi a Economia Política que revelou a “nudez do imperador” – a burguesia tinha o poder econômico mas não tinha o poder político. Quando a burguesia assume, muda o status quo. Mas sempre foi a Política e a Economia. Isso porque é a partir da forma como você produz, sobretudo como distribui o que se produz, que se faz política. É a política que escolhe se você vai incluir ou excluir pessoas.

A imagem mostra 4 homens, cada um representando as esferas do poder, oprimindo gradativamente o indivíduo.
Representação da ação dos poderes econômico, político e público sobre os indivíduos (Imagem: Rasta Vegano)

PN: Economia, uma escolha divina, ok. Mas quanto de sua formação familiar influenciou nos seu caminho acadêmico? 

Silvio Humberto: Indiretamente – e demorou para eu perceber – que na minha tese de doutorado eu respondo a uma pergunta que meu pai me fazia com seu jeito muito brincalhão, sarcástico: “Você está estudando isso aí e eu queria que você me explicasse o que os negros fizeram no passado para estar pagando até hoje? Eu estava escrevendo a introdução da minha tese de um jeito bem formal. No meio do processo, eu percebi que não estava respondendo à pergunta do meu pai. E tudo mudou, como se um livro se abrisse na minha frente e eu só tivesse de copiar. Estava tudo na minha cabeça.

PN: A sua tese em Economia responde uma pergunta de seu pai?!

Silvio Humberto: Sim. E começo pelo fim. O capítulo 5 dialoga com a história de vida do meu pai, dos controles sociais e raciais, dos negros em movimento e assim vou até o 1. No fim, escrevo que o meu trabalho tem o papel de organizar o pensamento social brasileiro dentro da economia. E é o primeiro a fazer esse diálogo a partir da história econômica, questionando a discussão sobre desenvolvimento com um olhar para a questão racial, uma questão sempre negada, considerada inexistenteSe não existe problema racial, não se discute o atraso econômico do país. Só que a escravização produziu muita riqueza.

PN: Economia e Racismo. Qual a lógica?

Silvio Humberto: O racismo, no meu entender, tem uma lógica própria, que ultrapassa o econômico em alguns momentos. E na minha tese, quando eu questiono por que Salvador, de maioria negra, não se faz representar no poder, a resposta que eu encontro é: ‘Por que a questão não é só quantitativa. Porque o racismo, como estrutura, transforma a maioria em minoria e, mais ainda, com comportamento de minoria! 

PN: Exemplifica.

Silvio Humberto: Os nossos cabelos… Por que os nossos cabelos são considerados exóticos se somos a maioria na cidade? Os brancos têm o cabelo louro e não são exóticos e, em Salvador, eles são a minoria. Por que somos os diferentes se a maioria da sociedade parece com a gente? Isso é socialmente construído. Repetido várias vezes, impede avanços. A pessoa não deve ser excluída pelo fator raça, porque é homem, porque é mulher, porque é velho… E a gente é excluído por justamente ter essas características e as pessoas que não têm essas características não são excluídas. 

PN: A história poderia ser outra?

Silvio Humberto: Salvador tem quase 3 milhões de pessoas. É o 14° PIB – Produto Interno Bruto, o menor índice entre todas as capitais. Se essa cidade tratasse o povo financeiramente de modo digno, a riqueza seria maior. Em Salvador, se vê a cultura negra. Mas quem se apropria financeiramente, economicamente, da cultura negra são aqueles que, no passado, tinham horror a Salvador ser comparada a uma velha mulata a se arrastar pelas ruas… As relações raciais não desaparecem com a abolição. A escravidão, enquanto instituição, regulava as relações raciais. Quando ela termina formalmente, fica a questão: Quem vai regular esta relação? 

PN: Quem regula as relações raciais?

Silvio Humberto: Nada ocorre de forma homogênea. Para a comunidade negra, principalmente no sul, o fato de ter a forma de dominação e exclusão muito mais explícita gera um tipo de organização. No Nordeste, em 1974, acontece o Ilê Ayê de 1974. Mas o sistema engoliu o potencial explosivo do primeiro bloco afro do Brasil. Ele continua tendo um papel, segue revolucionando pela estética, mas é preciso ocupar a política, usar essa estética para alcançar a mente das pessoas. 

PN: A gente pode considerar o racismo um sistema político? 

Silvio Humberto: Eu diria que o racismo também se materializa na política, com sua lógica própria. Mas o econômico sempre vai puxar as demais interseccionalidades. E o racismo desumaniza, não considera o que a pessoa negra produz.

PN: Eu tive esta percepção no Carnaval, no como o povo preto está no lugar da servidão, vendendo cerveja para a patrocinadora da festa, garantindo a limpeza, a organização, o trabalho pesado nos trios… 

Silvio Humberto: Eu fui entender muito Salvador olhando Campinas, no interior de São Paulo. Em Campinas, se chegou a ter até um coreto para os homens pretos. Em Salvador, eu não tenho isso explícito, mas eu sei onde as pessoas negras estão. 

PN: O Carnaval na Bahia foi sempre assim?

Silvio Humberto: Quando o Ilê Ayê saiu pela primeira vez – há 50 anos – era a “mancha negra” no Carnaval da Bahia. Os blocos famosos, que estão com as cordas baixas, levantavam as cordas para os pretos não saírem..Usavam também o local onde os pretos moravam como forma de excluir. A gente sempre soube como funcionava o Carnaval na Bahia… O tratamento desumano dos “cordeiros” – trabalhadores que separam as pessoas que estão com o bloco (de abadá) dos “pipocas”, aqueles que acompanham livremente a folia – é um exemplo. O problema é que a necessidade é maior do que outra coisa. Isso enfraquece a luta. 

PN: Aí a gente volta para a economia e a política…

Silvio Humberto: Eu, sendo parte do universo político, começo a entender porque também a gente não chega. Quando eu paro a maioria pela pobreza, os brancos chegam e oferecem as condições materiais (?)… Como dá meio-dia na casa de todo mundo, a consciência tem um limite. 

Vote Preto

PN: Por isso a gente não vota preto?

Silvio Humberto: Não é que a massa não tenha consciência, mas as condições são tão duras… Aqui é um lugar onde as pessoas trabalham muito e ganham muito pouco… Andando na rua a gente vê a quantidade de pessoas vendendo água, a condição dos ambulantes… Se os ambulantes levarem em consideração o tempo que pegam a mercadoria, o tempo que levam para vender… Enquanto isso, lá em cima, o privilégio branco continua fazendo a roda girar. 

PN: O que mais impede que nos façamos representar? 

Silvio Humberto: Tem o efeito do racismo entre nós negros – a tolerância com os brancos é lá em cima e a tolerância conosco, com os negros, não existe. Errou, fora! O fato de eu ser um vereador negro com consciência negra faz com que as pessoas abusem, achando que eu vou resolver tudo. A bola vem quadrada e eles pensam: ‘pode deixar que ele vai arredondar e tocar!’ Só que tem hora que não dá. Às vezes, as pessoas nem percebem como o racismo está atuando nisso, mas este é outro exercício. O fato também de você pleitear coisas mais para a frente leva as pessoas a terem medo do que viráAí, elas preferem o certo ao duvidoso e não percebem que a gente não tem nada!

PN: Qual a estratégia para sair deste lugar de impossibilidade?

Silvio Humberto: A economia permite desvendar as coisas e, junto com a política, a gente começa a entender que para se chegar a esse sonho de governar a cidade, de dar poder para o povo negro, a gente precisa de formação política e também entender que política é acúmulo. Se eu não tivesse conseguido na primeira tentativa que fiz para ser vereador, eu não tentaria uma segunda vez. 

PN: Qual a sua opinião sobre alternância no poder?

Silvio Humberto: Eu carrego um bastão, não um cetro. Agora é a minha vez. E vou trabalhando assim. Algo bom que aconteceu na minha vida profissional, independente da política, é que eu posso me aposentar como auditor fiscal da Prefeitura, continuar dando minha aula… Isso me dá segurança. Eu não dependo da política para absolutamente nada. Luto porque a gente negra precisa ter inserção política. É a política que identifica a porta, que abre a porta, que tranca a porta, que joga a chave fora… E é neste lugar que eu me encontro hoje, com capacidade para fazer pontes. Eu faço o que tem de ser feito. Não gasto energia à toa e, por isso, também, defendo que a gente precisa ter alternância no poder e limite para os cargos. 

PN: Qual deve ser o perfil do político preto?

Silvio Humberto: Ter um olhar enraizado, conhecimento espiral, que traz os elementos da encruzilhada, que traz a cosmovisão afro-indígena, o peso da espiritualidade que faz as conexões com quem veio antes. A política não é o espaço do coração militante, que sempre acolhe. O político tem que proteger o próprio coração e apostar no que está vendo à distância. Se é dado a você ver o que os outros não estão vendo, você tem que fazer o que é necessário.

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Para encerrar esta entrevista, duas expressões de dona Silvia, a matriarca da família Passos, ao seu filho mais velho:

“Não é você que precisa da política. É a política que precisa de você.” e “Vá, Silvio Humberto, fazer o que você veio para fazer.”

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